terça-feira, 31 de dezembro de 2013

E esquecer-me de mim

Termina hoje uma longa viagem pela cidade de Guimarães que iniciei em Setembro de 2009. A despedida foi inevitavelmente solitária. Não é hora nem de balanços (alguns já foram feitos, outros surgirão mais tarde), nem de lenços. Todas as partidas são recomeços. Lembrei-me da canção de Luis Pedro Fonseca cantada por Lena D'Água, a que fiz uma troca de palavras:

Sempre que a cidade me quiser
Basta fazer-me um sinal 
Soprado na brisa do mar 
Ou num raio de sol

Sempre que a cidade me quiser 
Sei que não vou dizer não 
Resta-me ir para onde ela for 
E esquecer-me de mim 
E esquecer-me de mim



segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ela ia de baía em baía. Corsino Fortes

Antes da manhana
Ela ia
De baía em baía
peregrina
Amando 
no útero das veias
a voz uterina dos navios

Na ilha
A minha mãe é ilha nua
Por Dezembro rasgando
o seu inverno de chita

Corsino Fortes, A Cabeça Calva de Deus. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, p. 31

domingo, 29 de dezembro de 2013

É porque acreditava nas coisas. Marcel Proust

Ao sair deste parque, o Vivonne punha-se a correr de novo. Quantas vezes eu vi, e desejei imitar quando fosse livre de viver a meu jeito, um remador que, largado o remo, se deitara de costas, com a cabeça em baixo, no fundo do seu bote, e que, deixando-o flutuar à deriva, apenas podendo ver o céu que desfilava lentamente por cima de si, levava na cara o antegosto da felicidade e da paz.  
[...]
E por certo, quando eram longamente contemplados por aquele humilde passeante, por aquele menino que sonhava - como um rei o é por um memorialista perdido na multidão -, este recanto da natureza ou esta ponta do jardim não poderiam pensar que seria graças a ele que seriam chamados a sobreviver nas suas particularidades mais efémeras; e, contudo, aquele perfume de espinheiro que recolhe ao longo da sebe, onde as rosas bravas não tardarão a substituí-lo, um ruído de passos sem eco no saibro de uma alameda, ou uma bolha formada contra uma planta aquática pela água do rio e que logo rebenta, a minha exaltação trouxe-os e conseguiu fazê-los atravessar tantos anos sucessivos, enquanto, em redor, os caminhos se apagaram, e morreram os que os pisaram, e a memória dos que os pisaram. Às vezes, este trecho de paisagem trazido assim até hoje destaca-se tão isolado de tudo, que flutua incerto no meu pensamento como uma Delos florida, sem que eu possa dizer de que país, de que tempo - talvez simplesmente de que sonho - chega. Mas é sobretudo como sendo jazidas profundas do meu solo mental, como terrenos resistentes em que me apoio ainda, que devo pensar no lado de Méséglise e no lado de Guermantes. É porque acreditava nas coisas, nos seres, enquanto os percorria, que as coisas e os seres que eles me fizeram conhecer são os únicos que ainda levo a sério e que ainda me dão alegria. Ou porque a fé que cria se esgotou em mim, ou porque a realidade só se forma na memória, as flores que hoje me mostram pela primeira vez não me parecem verdadeiras flores.
O lado de Méséglise, com os seus lilases, os seus espinheiros, as suas cinerárias, as suas papoilas, as suas macieiras, o lado de Guermantes com o seu rio cheio de girinos, os seus nenúfares e os seus ranúnculos constituíram para sempre, para mim, a imagem das terras onde gostaria de viver, onde exijo antes de mais nada poder ir à pesca, passear de canoa, ver ruínas de fortificações góticas e encontrar no meio dos trigos aquilo que era Saint-André-des-Champs, uma igreja monumental, rústica e dourada como uma meda; e as cinerárias, os espinheiros, as macieiras que, quando viajo, me acontece encontrar ainda nos campos, porque estão situados à mesma profundidade, ao nível do meu passado, estão imediatamente em comunicação com o meu coração. E no entanto, porque existe algo de individual nos lugares, quando me assalta o desejo de tornar a ver o lado de Guermantes, ninguém o satisfaria levando-me à beira de um rio onde houvesse nenúfares tão belos ou mais belos do que os do Vivonne, tal como ao fim da tarde, ao regressar - à hora em que em mim despertava aquela angústia que mais tarde emigra para o amor, e que pode tornar-se para sempre inseparável dele -, não teria desejado que me viesse dar as boas-noites uma mãe mais bela e mais inteligente que a minha.

Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, I, Do lado de Swann, Trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio d'Água, 2003, pp. 194-196.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Do outro lado a margem era baixa. Marcel Proust

O maior encanto do lado de Guermantes era que tínhamos quase sempre a nosso lado o curso do Vivonne. Era forçoso atravessá-lo pela primeira vez dez minutos depois de sair de casa, por um passadiço a que se chamava a Ponte Velha. Logo no dia seguinte à nossa chegada, no dia de Páscoa, depois do sermão, se o tempo estava bom, eu corria para lá, para ver, naquela desordem de uma manhã de grande festa em que alguns preparativos sumptuosos fazem parecer mais sórdidos os utensílios domésticos que ainda por lá andam, o rio que passeava já, azul-celeste, entre as terras ainda negras e nuas, acompanhado apenas de um bando de cucos que tinham chegado cedo de mais e de prímulas adiantadas, enquanto aqui e além uma violeta de bico azul vergava a sua haste sob o peso da gota de aroma que guardava no seu cálice. A ponte velha desembocava num caminho de sirga que naquele local, no Verão, se atapetava das folhas azuis de uma avelaneira, debaixo da qual tomara raízes um pescador de chapéu de palha. Em Combray, onde eu sabia que espécie de ferrador ou de marçano se disfarçava sob a farda do suiço das cerimónias da igreja ou da sobrepeliz do menino de coro, aquele pescador é a única pessoa cuja identidade nunca descobri. Ele devia conhecer os meus pais, porque soerguia o chapéu quando passávamos; queria então perguntar-lhe o nome, mas faziam-me sinal para me calar para não assustar o peixe.
Íamos pelo caminho de sirga que seguia acima da corrente com um talude de vários pés; do outro lado a margem era baixa, estendida em vastos prados até à aldeia e até à estação, que era longe dali. Estavam semeados dos restos, meio mergulhados entre as ervas, do castelo dos antigos condes de Combray, que na Idade Média tinha deste lado o curso do Vivonne como defesa contra os ataques dos senhores de Guermantes e dos abades de Martinville. Eram já só alguns fragmentos, que mal se viam, de torres corcovando a pradaria, algumas ameias donde outrora o besteiro lançava pedras, donde o vigia espiava Novepont, Clairefontaine, Martinville-le-Sec, Bailleau-l'Exempt, tudo terras tributárias de Guermantes, no meio das quais estava encravada Combray, e hoje rentes à erva, dominadas pelos meninos da escola dos frades que vinham ali estudar as lições ou brincar no recreio - um passado quase descido à terra, estendido à beira da água como um passeante a apanhar o fresco, mas que me dava muito que sonhar, fazendo juntar no nome de Combray, à cidadezinha de hoje, uma cidade muito diferente, retendo os meus pensamentos pelo seu rosto incompreensível e de outras épocas que tinha meio escondido debaixo dos ranúnculos. Eram muito numerosos naquele local, que tinham escolhido para as suas brincadeiras de ar livre, isolados, dois a dois, em bandos, amarelos como gemas, brilhando mais, julgava eu, porque, como não podia derivar para alguma veleidade de apreciação, o prazer que a sua visão me causava, acumulava-o eu na sua superfície dourada, até se tornar suficientemente poderoso para produzir inútil beleza; e isto desde a minha mais tenra infância, quando do caminho de sirga estendia os braços para eles sem poder soletrar completamente o seu lindo nome de príncipes de contos de fadas franceses, porventura chegados há muitos séculos da Ásia, mas enraizados para sempre na aldeia, satisfeitos com aquele modesto horizonte, amantes do sol e da beira de água, fiéis à pequena paisagem da estação ferroviária, porém conservando ainda, como algumas das nossas velhas telas pintadas, um poético brilho do Oriente.

Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, I, Do lado de Swann. Tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio d'Água, 2003, pp. 177-178.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Como aquela igreja era francesa. Marcel Proust

Como o passeio do lado de Méséglise era o menos comprido dos dois que fazíamos à volta de Combray, e por causa disso o reservávamos para quando o tempo estava inseguro, o clima do lado de Méséglise era bastante pluvioso e nunca perdíamos de vista a orla das matas de Roussainville, em cuja espessura nos poderíamos abrigar.
Muitas vezes o sol ocultava-se por detrás de uma nuvem, que deformava a sua forma oval e cujos bordos amarelava. O brilho, mas não a claridade, era roubado ao campo, onde toda a vida parecia suspensa, enquanto a aldeiazinha de Roussainville esculpia no céu o relevo das suas arestas brancas com uma precisão e um acabamento esmagadores. Um pouco de vento fazia um corvo levantar voo para voltar a poisar ao longe e, contra o céu esbranquiçado, a distância das matas parecia mais azul, como que pintada naqueles camafeus que ornamentam os vãos das antigas mansões.
Mas de outras vezes começava a cair a chuva com que nos tinha ameaçado o frade capuchinho que o oculista tinha na montra; as gotas de água, como aves migratórias que levantam voo ao mesmo tempo, desciam do céu em filas apertadas. Não se separam, não vão à aventura durante a rápida travessia, antes, mantendo cada uma o seu lugar, chama a si a que a segue, e o céu fica mais escuro que à partida das andorinhas. Refugiávamo-nos na mata. Quando a viagem das gotas parecia ter terminado, chegavam ainda algumas, mais fracas, mais lentas. Mas nós tornávamos a sair do nosso abrigo, porque as gotas comprazem-se na folhagem, e já a terra estava quase seca quando várias delas se demoravam a brincar nas nervuras de uma folha e, suspensas na ponta, descansadas, brilhando aos sol, deixavam-se de repente deslizar de toda a altura do ramo e caíam-nos em cima do nariz.
Íamos também muitas vezes abrigar-nos, misturados com os santos e os patriarcas de pedra, sob o pórtico de Saint-André-des-Champs. Como aquela igreja era francesa! Por cima da porta, estavam representados os santos, os reis-cavaleiros com uma flor-de-lis na mão, cenas de bodas e de funerais, exactamente como o estariam na alma de Françoise. O escultor narrara também certas historietas relativas a Aristóteles e a Virgílio, do mesmo modo que a Françoise na cozinha falava facilmente de São Luís como se o tivesse conhecido pessoalmente, e em geral para envergonhar os meus avós, menos "justos", pela comparação. Sentia-se que as noções que o artista medieval e a camponesa medieval (sobrevivente no século XIX) tinham da história antiga ou cristã, e que se distinguiam por tanta inexactidão como bonomia, as recebiam, não dos livros, mas de uma tradição ao mesmo tempo antiga e directa, ininterrupta, oral, deformada, desfigurada e viva.
[...]
Já não pegada à pedra como aqueles anjinhos, mas destacada do pórtico, de estatura mais que humana, de pé num pedestal como que num banquinho que lhe evitasse poisar os pés no chão húmido, havia uma santa que tinha as faces cheias, o seio firme inchando o seu panejamento como um cacho de uvas maduras num saco de crina, a testa estreita, o nariz curto e resoluto, olhos fundos, o ar saudável, insensível e corajoso das camponesas da região. Esta semelhança, que insinuava na estátua uma doçura que eu não esperava ali, era com frequência certificada por uma qualquer rapariga do campo, vinda como nós abrigar-se, e cuja presença, semelhante à daquelas folhagens parietais que cresceram ao lado das folhagens esculpidas, parecia destinada a permitir, por uma confrontação com a natureza, ajuizar da verdade da obra de arte. Diante de nós, na distância, terra prometida ou maldita, Roussainville, em cujos muros nunca penetrei, Roussainville ora continuava, depois de a chuva ter cessado já para nós, a ser castigada como uma aldeia da Bíblia por todas as lanças do temporal que flagelavam obliquamente as moradas dos seus habitantes, ora estava já perdoada por Deus Pai, que para ela fazia descer, desigualmente longas, como os raios de um ostensório de altar, as hastes de ouro desfiadas do seu sol reaparecido.
 
Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, I, Do lado de Swann, trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio d'Água, 2003, pp. 160 a 162.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Para compreender o mundo é preciso mudarmos de posição. Albert Camus


Já não existem desertos, já não existem ilhas. Mas sentimos a sua falta. Para compreender o mundo, é preciso mudarmos de posição, para melhor servir os homens colocá-los por momentos à distancia. Mas onde encontrar a solidão necessária à força, a longa respiração na qual se revê o espírito e se mede a coragem? Restam as grandes cidades. Há, porém, condições a garantir.
As cidades que a Europa nos oferece estão demasiado preenchidas com rumores do passado. Um ouvido aplicado poderá perceber o bater de asas, uma palpitação de almas. Sentimos nisso a vertigem dos séculos, das revoluções, da glória. Lembramo-nos de que o Ocidente se forjou entre clamores. Não dispomos de silêncio bastante.
Paris é muitas vezes um deserto para o coração, mas a certas horas, do alto do [cemitério] do Père-Lachaise, sopra um vento de revolução que enche repentinamente esse deserto de bandeiras e grandezas vencidas. O mesmo acontece com algumas cidades espanholas, Florença ou Praga. Salzburgo seria agradável sem Mozart. Mas, de longe em longe, corre pelo Salzach o grande grito de Don Juan mergulhando nos infernos. Viena parece mais silenciosa, é uma jovem entre as cidades. As suas pedras não têm mais de três séculos e essa juventude ignora a melancolia. Mas Viena situa-se numa encruzilhada da história. Em seu redor ressoam choques de impérios. Em certas tardes, em que o céu se cobre de sangue, os cavalos de pedra dos monumentos do Ring parecem voar. Neste instante fugitivo, em que tudo fala de poder e de história, podemos ouvir distintamente, sob a marcha dos esquadrões polacos, a queda retumbante do reino otomano. O que já não produz suficiente silencio.

Albert Camus, L'Été. Paris, Gallimard, 1954 [Le Minotaure ou la Halte d'Oran, 1939]

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Espero o regresso dos navios. Albert Camus


Cresci no mar e a pobreza foi-me favorável, depois perdi o mar, todas os luxos a partir daí me pareceram cinzentos, a miséria intolerável. Desde então espero. Espero o regresso dos navios, a casa das águas, o dia límpido. Sou paciente, estou preparado com todas as minhas forças. Vêem-me passar em belas ruas sábias, admiro as passagens, aplaudo como toda a gente, dou a mão, não sou eu que falo. Sou alugado, sonho um pouco, ofendem-me, mal me espanto. A seguir esqueço e sorrio a quem me ultraja, ou saúdo com excessiva cortesia aquele que amo. Que fazer, se não disponho de memória para mais do que uma imagem? Resta-me enfim dizer que existo. "Nada mais, nada mais..."

Albert Camus, L'Été. Paris, Gallimard, 1954 [La Mer au Plus Prés, 1953]

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A procurar de novo esse ardor. Albert Camus


Ao longo de todos estes anos, obscuramente, alguma coisa no entanto me faltava. Quando se tem a oportunidade de amar fortemente, passa-se a vida a procurar de novo esse ardor e essa luz. A renuncia à beleza e à felicidade sensual que lhe está associada, o serviço exclusivo da infelicidade, pede uma grandeza de que não sou capaz. Mas, no fim de contas, não é verdadeiro senão o que obriga a excluir. A beleza isolada acaba por se tornar caricatura, a justiça solitária acaba a oprimir. Quem quer servir uma com exclusão de outra não serve ninguém, nem a si próprio, e por fim serve em duplicado a injustiça. Virá um dia em que, à força de rigidez, já nada nos encanta, tudo etário conhecido, passa-se-vida a recomeçar. É o tempo do exílio, da vida seca, das almas mortas. Para voltar a viver, será necessária uma graça, o esquecimento de si próprio, ou uma pátria. Certas manhãs, no voltar duma rua, um delicioso orvalho cai sobre coração, para em seguida se evaporar. A frescura no entanto permanece, sempre, porque o coração assim o exige. Precisei de partir de novo.

 Albert Camus, L'Été. Paris, Gallimard, 1954 [Retour à Tipassa, 1953]

domingo, 22 de dezembro de 2013

Pediram a Deus que os guardasse do desejo herético de quererem saber mais do que os seus pais. Mark Twain

Suponho que na América pouco se sabe dos Açores. De todos os passageiros do nosso paquete, não havia um único que soubesse o que fosse sobre estas ilhas. Alguns de nós, extremamente versados na maioria das outras terras, nada sabiam sobre os Açores, a não ser que se tratava de um arquipélago com nove ou dez pequenas ilhas perdidas no Oceano Atlântico, mais ou menos a meio caminho entre Nova Iorque e Gibraltar. Só isso. Estas observações levam-me a incluir aqui um parágrafo sobre os factos puros e duros.
A comunidade é principalmente portuguesa – ou seja, pobre, apática, modorrenta e preguiçosa. Têm um governador civil, designado pelo rei de Portugal, além de um governador militar, que pode assumir plenos poderes e e dissolver o governo cicil, a seu bel-prazer. A população das ilhas perfaz cerca de duzentas mil almas, quase todas portuguesas. Tudo está perfeitamente estabelecido, visto que a região já tinha cem anos quando Colombo descobriu a América. A colheita principal é o milho, que eles cultivam e moem tal e qual faziam os seus tetravós. Usam um arado de uma tábua com uns grampos de ferro; os seus regos insignificantes são escavados pelos homens e pelas mulheres; pequenos moinhos moem o milho, a dez alqueires por dia, e há um moleiro-assistente que alimenta o moinho e outro moleiro-chefe que fica de sentinela não vá o outro adormecer. Quando o vento muda, atrelam umas mulas e dão-se ao trabalho de rodar toda a parte superior do moinho até terem as velas na posição certa, em vez de arranjarem uma maneira de serem as velas a  mudar em vez do moinho. Os bois pisam os espigas de trigo, segundo o costume do tempo de Matusalém. Não há um único carrinho de mão em toda a terra: levam tudo à cabeça, ou em cima das mulas, ou numa carroça com caixa de vime e rodas de madeira maciça cujos eixos giram em simultâneo com as rodas. Não há qualquer arado moderno naquelas ilhas, e nem uma só debulhadora. Todas as tentativas de introduzir essas ferramentas agrícolas falharam. Os bons católicos dos portugueses benzeram-se e pediram a Deus que os guardasse do desejo herético de quererem saber mais do que os seus pais antes deles. O clima é ameno; nunca têm neve ou gelo, e não há uma única chaminé em toda a povoação. Os burros e os homens, as mulheres, e as crianças da família comem e dormem todos na mesma casa, e apresentam-se sujos, cheios de bichos e extremamente felizes. As pessoas mentem e enganam os estrangeiros, e são terrivelmente ignorantes e não têm quase nenhum respeito pelos mortos. Por esta última característica bem se vê que são pouco melhores do que os burros com que dormem e comem. Os únicos portugueses bem vestidos que por lá andam fazem parte de meia dúzia de famílias abastadas, ou então são padres jesuítas ou soldados do pequeno regimento. O ordenado de um trabalhador rural é de vinte a vinte e quatro cêntimos por dia, e o de um bom artífice é cerca do dobro. Contam o dinheiro em réis, a mil por dólar, o que os faz sentirem-se ricos e satisfeitos.

Mark Twain, A Viagem dos Inocentes ou a Nova Rota dos Peregrinos. Lisboa, Tinta da China, 2010, p. 64-65 [1ª edição: 1869].

sábado, 21 de dezembro de 2013

Muitas vezes, ingenuamente, tiramos fotografias. Antonio Tabucchi

"Reconheces-me tu, ar, cheio dos lugares que um dia foram meus!" É um verso de Rainer Maria Rilke que neste livro é recorrente. Alguém está a regressar a um lugar que conheceu noutros tempos e pede ao ar  (o espírito do lugar?) que o reconheça, porque ele próprio não reconhece já esses lugares. Não reconhece o que contemplou noutros tempos nem o que nesse tempo sentia ao contemplar: as suas emoções, o seu eu de então. Cada lugar a que chegamos de viagem é uma espécie de radiografia de nós próprios. Muitas vezes, ingenuamente, tiramos fotografias com a ilusão de levarmos alguma coisa connosco. Mas as imagens são apenas a pele, pura aparência: o que esse lugar provoca em nós ao contemplá-lo e vivê-lo não é fotografável. Acontece o mesmo que com os sonhos. Impelidos pelo desejo de comunicar a emoção sentida a alguém e quase com espanto damo-nos conta de que a história daquele sonho era banal, era um sonho como qualquer outro: assim, ao contá-lo, não comunica nenhuma emoção, nem em quem nos escuta nem em nós próprios que o contamos. O que é que tinha então de tão especial para ter provocado tanta emoção? Nada. O importante daquele sonho não era o que acontecia, mas a maneira como o estávamos a viver: o sonho era a nossa própria emoção. Cada lugar é a mesma coisa. Contá-lo não significa descrevê-lo, mas conseguir transmitir, mesmo numa ínfima parte, as emoções que nos suscitou.

Antonio Tabucchi, Viagens e Outras Viagens. Lisboa, Edições Dom Quixote, 2013, p. 178-179.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Devagar te amo e às vezes depressa. Manuel António

Amor como em casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina, Poesia Reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 36

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Circe está outra vez ali no sorriso das ondas. Albano Martins

Em Poros, com Seféris

Talvez Seféris
esteja de regresso
a casa. É a hora
em que todas as cigarras
emudecem, em que ao sol
abre o coração
duma rosa
de cem pétalas. Circe
está outra vez ali no sorriso
das ondas, e talvez
Ulisses, no cansaço
dos dias, venha agora
receber numa taça
de espuma as últimas vogais
do alfabeto das estrelas.

Albano Martins, Oficio e Morada. Antologia Poética. Blumenau, Letras Contemporâneas, 2011, p. 68.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

As palavras são as primeiras a chegar. Rosa Alice Branco

Passos sem memória

Olho a janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom-dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário
nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.

Risa Alice Branco, Soletrar o Dia (Obra Poética). Vila Nova de Famalicão, Edições Quasi, 2002, p. 17.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Mas, por lei, eu carecia de nudezes de mulher. João Guimarães Rosa

Digo mesmo de meu expor, falante de mulheres. Quando se viaja varado avante, sentado no quente, acaba o coxim da sela fala de amores. E eu surgia em sossego assim, passo compasso, o chapadão tão alargante. Lá o ar é repousos. Os Hermógenes andavam por bem longe. E nunca que pelotão de soldados havia de ali vir, por cima de nossas batidas. Sossego traz desejos. Eu não lerdeava; mas queria festa simples, achar um arraial bom, em feira-de-gado. Queria ouvir uma bela viola de Queluz, e o sapateado de pés dançando. Mas, por lei, eu carecia de nudezes de mulher. Nesses dias, moderei minha inclinação. Baixei ordens severianas: que todos pudessem se divertir saudavelmente, com as mulheres bem dispostas, não deixando no vai-vigário; mas não obrassem brutalidades com os pais e irmãos e maridos delas, consoante que eles ficassem cordatos. Estatuto meu era esse. Por que destruir vida, à-toa, à-toa, de homem são trabalhador? Zé Bebelo não teria outro reger... E vejo, pergunto: donde era que estava então o demo, perseguição? Devo redizer, eu queria delícias de mulher, isto para embelezar horas de vida. Mas eu escolhia – luxo de corpo e cara festiva. O que via com um desprezo era moça toda donzela, leiga do são-gonçalodo-amarante, e mulher feiosa, muito mãe-de-família. Essas, as bisonhas, eu repelia. Mas, daí então, me deram notícia do Verde-Alecrim. Joguei de galope. Torei o cavalo para lá.
Guia era um exato rapaz, vaqueiro goiano do Uruú. Esse me discriminou – o Verde-Alecrim formava somente um povoado: sete casas, por entre os pés de piteiras, beirando um claro riozinho. Meia-dúzia de cafuas coitadas, sapé e taipa-de- sebe. Mas tinha uma casa grande, com alpendre, as vidraças de janelas de malacacheta, casa caiada e de telhas, de verdade, essa era a das mulheres-damas. Que eram duas raparigas bonitas, que mandavam no lugar, aindas que os moradores restantes fossem santas famílias legais, com suas honestidades. Cheguei e logo achei que lugar tal devia era de ter nome de Paraíso.

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. In Ficção Completa. Editora Nova Aguilar, 1994, p. 752-753.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Parados, de mão dada. David Mourão-Ferreira

Secreta viagem

No barco sem ninguém, anónimo e vazio, 
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podemos só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figura de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre as nossas mãos, o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós  olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos.

David Mourão-Ferreira, Obra Completa. Lisboa, Presença, 2006, p. 44.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Véspera da partida. Raul de Carvalho

Todas as horas, todos os minutos,
São para mim a véspera da partida.

Preparo-me para a morte, como quem
Se prepara para a vida.

Em qualquer parte eu disse que a Beleza
Não nasce só mas sim acompanhada.

Não são palavras as que eu digo.
A minha boca pertence aos que me amam.

Mudos e sós.
À nossa volta todos os amantes
Sentir-se-ão tranquilos.
Um coração puro
É como o sol:
Brilha todos os dias.

Raul de Carvalho, Realidade Branca. Lisboa, Ed. do Autor, 1968, p. 31.


quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Vou partir de avião. Ana Luisa Amaral

Testamento

Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos

Se eu morrer
quero que a minha filha se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas e somar
e a descascar batatas

Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras

Ana Luisa Amaral, Inversos. Poesia 1990-2010. Lisboa, Dom Quixote, 2010, p. 51.



quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Onde um braço teu me procura. Mário Cesariny de Vasconcelos

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny de Vasconcelos, Pena Capital. Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 30

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Procurar o amor neste deserto. Carlos de Oliveira

Soneto do regresso

Volto contigo à terra da ilusão,
mas o lar de meus pais levou-o vento
e se levou a pedra dos umbrais
o resto é esquecimento:
Procurar o amor neste deserto
onde tudo me ensina a viver só
e a água do teu nome se desfaz
em silabas de pó
é procurar a morte apenas,
o perfume daquelas
longínquas açucenas
abertas sobre o mundo como estrelas:
Despenhar no meu sono de criança
inutilmente a chuva da lembrança.

Carlos de Oliveira, Poesias: 1945-1960. Lisboa, Portugália, 1962, p. 163.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

No mar e no navegar está o sonho de chegar. José Cardoso Pires

Iam de rota traçada com destino às Bermu­das, esse arquipélago de esmeraldas depostas sobre um banco de corais que Álvaro Vaz co­nhecia de leituras e que durante a viagem an­tecipava aos companheiros numa geografia de surpresas. No mar e no navegar está o sonho de chegar, e o skipper do Ponta de Sagres sempre que demandava portos desconhecidos figurava-os para lá da proa do veleiro em re­presentações que conhecera deles através de álbuns, vídeos e enciclopédias ou das repor­tagens do National Geographic. Navegava  assim a duas cartas, a duma Imago Mundi umas vezes científica, outras vezes aventurei­ra, e a da Orbis Rigorosa da arte de marear, e nada disto serviria de estorvo à sua navega­ção, uma vez que um comandante de mão pensada é capaz de levar o navio até ao cume duma montanha. Adiante, portanto, e que São Cristóvão Viajante lhes abrisse caminho com o bastão da sua augusta providência.
Adiante, isto é, rumo a SW, logo ao largo da costa apanharam dois dias de nortada com ondas de quatro metros e vento de força cin­co que os obrigou a amuras curtas. Dois dias em cavalgada de vaga alta é coisa medonha de vencer, mas felizmente que, de garras ao leme e velas firmes, se guardaram de estragos e desesperos e entraram de consciência cum­prida em mar de feição, mar brando, mar es­tanhado e sempre mais brando à medida que se aproximavam do paralelo 30 entre a Madeira e as Canárias e guinavam para oeste co­mo mandava a carta de bordo. Deus abrira a sua mão de luz sobre o oceano, apaziguando­-o, e conduzia o veleiro num chão de mila­gres donde de levantavam bandos de peixes voadores, escreveu o monge de Singeverga, sentado na cabine frente à imagem duma Vir­gem de Neptuno que ele jamais conhecera do Livro dos Benditos.

José Cardoso Pires, Breve noticia do achamento da ilha de Santanás e dos verdadeiros sucessos que nela ocorreram agora postos a escrito segundo os testemunhos dos navegantes e dos registos que os certificam. Lisboa, Parque Expo 98, 1997, p. 15-17.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Outros sentidos. Mário da Sá-Carneiro

[...]
É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d'irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.
É suscitar côres endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção d'alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.
[...]
Mário de Sá-Carneiro, Dispersão.

sábado, 30 de novembro de 2013

Viagem sem paisagem. Maria Gabriela Llansol

O barco balouçou e vazou-o no mar (um copo a vazar o seu con­teúdo num tanque). Macário contraiu-se, de medo e de frio, e pensou: «Por agora estou salvo.» Opôs o corpo ao mar e, sobretudo, à escuridão. Bracejou, à procura da carne líqui­da das ondas, e do sentido da ilha, no seu on­dear oculto. Começou a viagem dolorosa em que os braços e as pernas tinham de vestir a resistência da madeira e comportar-se como remos. Era uma viagem sem paisagem, através da ausência. Macário apavorava-se nela, agu­damente servo de si próprio. Media, braçada a braçada, a água que o exilava da ilha, até que os joelhos tocaram os rochedos e as casas apareceram levantadas ao alto sobre a nebli­na. Ultrapassou as rochas e estendeu-se no princípio da praia, desamparado como uma concha.

Maria Gabriela Llansol, A Terra Fora do Sítio, Edição Parque Expo 98, 1997. p. 22-23.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

As viagens são uma boa cura para doentes de amor. Ortega y Gasset

Sólo salva al enamorado un choque recibido violentamente de fuera, un tratamiento a que alguien le obligue. Se comprende que la ausencia, los viajes sean una buena cura para enamorados. La lejanía del objeto amado lo desnutre atencionalmente; impide que nuevos elementos de él mantengan vivo el atender. Los viajes, obligando materialmente a salir de sí mismo y resolver mil pequeños problemas, arrancándonos del engaste habitual y apretando contra nosotros mil objetos insólitos, consiguen forzar la consigna maniática y abren poros en la conciencia hermética, por donde entra, con el aire libre, la perspectiva normal.

Ortega y Gasset, Estudios Sobre el Amor. Madrid, Revista de Occidente en Alianza Editorial, 1981, p. 19.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Parti então, com muita alegria. Eça se Queirós

Parti então, com muita alegria, para a minha apetecida romagem às Cidades da Europa.
Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, à pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia num wagon, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me escangalhavam a entranha. Quatorze vezes subi derreadamente, atrás de um criado, a escadaria desconhecida dum Hotel; e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma cama desconhecida, donde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas desconhecidas um café com leite que me sabia a fava, um banho de tina que me cheirava a lodo. Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito. Em mais de trinta mesas-redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-a-la-mode, já frio, com molho coalhado - e que o copeiro me trouxesse a garrafa de Bordeus que eu provava e repelia com desditosa carantonha. Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove Catedrais. Trilhei molemente, com uma dor surda na nuca, em quatorze museus, cento e quarenta salas revestidas até aos tectos de Cristos, heróis, santos, ninfas, princesas, batalhas, arquitecturas, verduras, nudezes, sombrias manchas de betume, tristezas das formas imóveis!... E o dia mais doce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho inglês de penca flamejante que habitara o Porto, conhecera o Ricardo, o José Duarte, o Visconde do Bom Sucesso, e as Limas da Boa Vista... Gastei seis mil francos. Tinha viajado.

Eça de Queirós, A Cidade e as Serras.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

É esse o perigo de nos tornarmos ilhéus. D. H. Lawrence

Desta pequena ilha no espaço passava-se, estranhamente, aos grandes domínios obscuros do tempo, onde as almas que nunca morrem passam e repassam, em missões vastas e estranhas. A pequena ilha terrestre diminui, como um trampolim, e reduz-se a nada, porque dela se saltou, sem saber como, para o amplo mistério escuro do tempo onde o passado é vivo e vasto e o futuro não está isolado.
É esse o perigo de nos tornarmos ilhéus. Na cidade, quando se vai de polainas brancas e se evita o trânsito, com o medo da morte metido na espinha, está-se protegido dos terrores do tempo infinito. O momento é a ilhota no tempo de cada um, é o universo espacial que passa vertiginosamente à nossa volta.
Mas, quando nos isolamos numa ilha pequena no mar do espaço e o momento começa a inchar e a expandir-se em grandes círculos, vai-se a terra sólida e a nossa alma escura, nua, escorregadia, acha-se no mundo intemporal, onde os carros da chamada morte se precipitam pelas velhas ruas dos séculos e as almas se apinham nos caminhos a que nós, no momento, chamamos anos passados. As almas dos mortos estão vivas, de novo, e pulsam activamente em redor de nós. Estamos perdidos no outro infinito.

D. H. Lawrence, Amor no Feno e Outros Contos. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010. Edição Biblioteca Editores Independentes, p. 127-128.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Nitzsche. Claudio Magris

É cada vez mais difícil, na actual irrealidade do mundo, responder à questão de Nietzsche: "onde é que me posso sentir em casa?"

Claudio Magris, Trois Orients. Récits de Voyage. Paris, Rivages, 2006

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Nunca teve vontade de partir? Milan Kundera

O jovem olha-a nos olhos, ouve-a e depois diz-lhe que aquilo a que ela chama recordação é, na realidade, oura coisa muito diferente: enfeitiçada, vê-se a esquecer.
Tamina aprova.
E o jovem continua: o olhar triste  que ela lança para trás já não é a expressão da fidelidade a um morto. O morto desapareceu do seu campo visual e ela olha apenas para o vazio.
Para o vazio? Mas então o que é que lhe torna o olhar tão pesado?
Não está pesado de recordações, explica o jovem, mas de remorsos. E Tamina nunca se perdoará o ter esquecido.
- E o que é que tenho de fazer? - pergunta Tamina.
- Esquecer o seu esquecimento - diz o jovem.
Tamina sorri com amargura:
- Explique-me como é que consigo.
- Nunca teve vontade de partir?
- Sim - confessa Tamina. - Tenho uma terrível vontade de partir. Mas para onde?  
- Para qualquer sítio onde as coisas são leves como uma brisa. Onde as coisas perderam o peso. Onde não há remorsos.

Milan Kundera, O Livro do Riso e do Esquecimento. 9ª edição. Lisboa, Dom Quixote, 2001, p. 156-157.

domingo, 24 de novembro de 2013

sábado, 23 de novembro de 2013

Cada um segue caminho. René Barjavel

Cada um segue o seu caminho, que não é semelhante a nenhum outro, e ninguém chega ao mesmo lugar, nem na vida nem na morte.

René Barjavel, Chemins de Karmandou, 1969.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Raros mortais que tinham a curiosidade dos caminhos. Vitorino Nemésio

Quando hoje falamos de turismo, de pousadas, de auto-estradas e de pérgolas, mal cuidamos nos tratos que passavam, há cem ou duzentos anos, os raros mortais que tinham a curiosidade dos caminhos. É verdade que essa espécie de sexto sentido, o dos horizontes laços, a poucos era dado. Andava-se de macho ou de liteira por dura necessidade. Os ricos afundavam-se em churriões ou cadeirinhas, confiando-se aos solavancos das parelhas de muda e à guarda dos criados de libré, de bacamarte aperrado. Os mais comodistas ou decrépitos nem precisavam de apear-se, em certos extremos: tinham no no assento da carruagem o beliche de wagon-lits e a cabine-lavabo. Assim, geralmente, não conservavam da jornada mais do que os ossos moídos.
Nós portugueses, grandes navegadores e escuteiros de continentes, fomos sempre fracos conhecedores dos cantos da própria casa, dando-se o caso espantoso de termos batido a Abissínia, o Tibé, o inferno, deixando intactos os recessos fragosos da Serra da Estrela e do Barroso. A não ser  o bom do D. Frei Bartolomeu dos Mártires, o santo Arcebispo de Braga, que a crermos Frei Luis de Sousa, jornadeou precisamente pelas Alturas do Barroso e desvios interamnenses, as primeiras notícias que temos de peregrinos de terrinhas escondidas são de viajantes estrangeiros dos séculos 
XVIII e XIX.
13-10-1948

Vitorino Nemésio, Viagens ao Pé da Porta. Lisboa, Editorial Pórtico, S/d, p. 29/30.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Uma viagem sentimental sobre uma mula tordilha. Ortega y Gasset

Por terras de Sigüenza e Berlanga do Douro, nos dias de Agosto lancinados pelo sol, fiz eu - Rubin de Cendaya, [pseudónimo de Ortega y Gasset] místico espanhol - uma viagem sentimental sobre uma mula tordilha de altas orelhas inquietas. São as terras que o Cid cavalgou. São, além disso, as terras onde surgiu o primeiro poeta castelhano, o autor do poema chamado Myo Cid.
Não se julgue por isto que sou de temperamento conservador e tradicionalista. Sou um homem que ama verdadeiramente o passado. Os tradicionalistas, pelo contrário, não o amam: querem que não seja passado, mas sim presente. Amar o passado é alegrar-se de que efectivamente tenha passado e de umas coisas, perdendo essa rudeza com a qual ao estarem presentes arranham os nossos olhos, os nossos ouvidos e as nossas mãos, ascendam à vida mais pura e essencial que têm na reminiscência.
O valor que damos a muitas das realidades presentes não é merecido por estas em si mesmas; se nos ocupamos delas é porque existem, porque estão aí, diante de nós, ofendendo-nos ou servindo-nos. A sua existência, não elas, tem valor. Pelo contrário, daquilo que foi interessa-nos a sua qualidade íntima e própria. De modo que as coisas, ao penetrar no âmbito do pretérito, ficam despojadas de toda a aderência utilitária, de toda a hierarquia fundada nos serviços que enquanto existentes nos prestaram, e assim, absolutamente despidas, é quando começam a viver do seu vigor essencial.
Por isso, é conveniente lançar, de vez em quando, um longo olhar em direcção à profunda alameda do passado: nela aprendemos os verdadeiros valores - não no mercado do dia.

Ortega y Gasset, Notas de Andar e Ver (Viagens, Gentes e Países). Lisboa, Fim de Século, 2007, p. 29-30.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Mujer de mi gran viaje. Vicente Huidobro

Te amo mujer de mi gran viaje
Como el mar ama al agua
Que lo hace existir
Y le da derecho a llamarse mar
Y a reflejar el cielo y la luna y las estrelas

Vicente Huidobro, El Pasajero de Su Destino. Sevilha, Sibilina, 2008, p. 263.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sou mau viajante. Somerset Maugham

Embora seja muito viajado, sou mau viajante. O bom viajante tem o dom de surpreender-se. Tem um interesse perpétuo pelas diferenças que encontra entre o que conhece no seu país e o que vê no estrangeiro. Se possuir um sentido apurado do absurdo, encontra constantemente motivo para se rir do facto de as pessoas que o rodeiam não se vestirem como ele e não consegue deixar de se espantar por aquelas pessoas comerem com pauzinhos e não com garfos ou escreverem com um pincel e não com uma caneta. Como tudo lhe é estranho, repara em tudo o que, consoante o seu estado de espírito, pode ser divertido ou edificante. Já eu tomo tudo por certo tão rapidamente, que deixo de ver o que seja de invulgar no meu novo ambiente. Parece-me tão evidente que o birmanês use um paso colorido, que só com um esforço deliberado da minha parte consigo fazer a observação de que ele não usa calças como eu. A mim, parece-me igualmente natural andar de riquexó ou de carro e sentar-me no chão ou numa cadeira, e assim me esqueço quando estou alguma coisa estranha ou insólita. Eu viajo porque gosto de andar de um lado para o outro, aprecio a sensação de liberdade que isso me dá, agrada-me estar livre de laços, responsabilidades, deveres, e gosto do desconhecido. Conheço pessoas invulgares que me divertem por um momento e que, por vezes, me sugerem um tema para um texto. Sinto-me muitas vezes cansado de mim mesmo e tenho a impressão de que, viajando, posso enriquecer a minha personalidade e assim mudar um pouco. Nunca regresso de uma viagem exactamente com o mesmo eu que levei comigo.

Somerset Maugham, Um Gentleman na Ásia. Lisboa, Edições Tinta da China, 2013, p. 26-27.

domingo, 17 de novembro de 2013

Viagem a Myconos (3). Ruben A

Vou tomar banho a uma praia defendida do vento e a água é cristalina e pura, quase fria, sem ondas. Estendo-me na praia e oiço Debussy, a mais completa imagem-som que senti na vida - oiço o piano de muitos prelúdios a ritmarem-se em escalas diferentes. Vêm quase silenciosos, falam em frases muito curtas, aparecem e desaparecem, vêem-se no desdobrar de sons minúsculos trazidos por uma onda que se recolhe cada vez que se abre. É uma praia deserta onde um barco lembra a existência de qualquer coisa pareci­ da com a raça do Homem. É um barco que me liga de som à existência, é a única imagem que tem nome. Oiço mais atentamente, oiço horizontal, para sentir o som vindo da melodia que se esvai e renasce naquele portinho tão cheio de tonalidades perceptíveis. Uma grandeza enche-me, completa-se na alvura da ilha - estou horas a ouvir qualquer coisa de extraordinário que fica gravado na minha imaginação como o recordar harmonioso um piano afinado pelo próprio teclado da natureza. É um Debussy monstro que se agiganta no microcosmos, trânsito de uma nota cromática que penetra suave nos poros audíveis da minha sensibilidade.
Volto a pé a Myconos. Volto à baía, ver os amigos que nas mesas me esperam. Ainda não chegaram os turistas, os ilhéus andam todos cá por fora e o palhabote nem entra na baía, as lanchas vão fora da barra apinhadas de gente. Basta o barco uivar para ser uma correria. Não consigo cabine. Nada tem importância, não há dificuldades, tudo se arranja. É tudo fácil e simples. A minha partida da ilha tem de ser clandestina, pela calada da noite, com senha e contra-senha. Escala um barco grande de turistas - entra às seis e sai à meia-noite. Da ilha só vêem o cais, e alguns o branco, mas, como turistas, lêem de cor a natureza. Pela lei dos códigos marítimos não pode receber passageiros em portos intermediários. Mas tudo se arranja. Metem-me num grupo de excursionistas, e um dos gregos amigos escreve logo uma carta para o comissário de bordo e fornece-me um bilhete de visita ao navio. A bagagem lá irá parar - eu que não me preocupe, nada de agitação. Calma, conversa e mais um anis com gelo. Nada de pressas, mais um cigarro. O grego confia, posso pagar quando quiser, a bordo ou à chegada a Atenas, ou mandar o dinheiro de Portugal. Não há pressas, tudo é à base de confiança.
A minha saída de Myconos reveste-se de aspectos rocambolescos, sou metido a bordo em manada de excursionistas com guia à frente - cá vou eu de cabeça baixa, clandestino na igualdade de direitos humanos dada pelos Gregos a todos os homens.
Antes da última aventura fui despedir-me de Joseph à sua mesa, já batida pela lua oscilando entre restos de batatas fritas e um molho prateado de combustível oleoso. Abraçou­ -se, deu-me um beijo, e comunicou a todos os estranhos e aos já conhecidos a minha partida. Mirou-me de alto a baixo e em francês disse-me apenas - au revoir et bonne santé - toujours bonne santé - Fiquei com a lín­gua enjaulada. Mas no súbito lembrei-me a estupenda palavra grega para o saudar: IASÚI.
Ao subir a escada daquele portaló de luxo olhei para a correnteza de casario e mirei emocionado toda a simplicidade que o branco deixara pendurado na noite prateada da baía. Olhei mais. Vi que todos eram amigos e agarrado à manada, sentindo as varas dos picado­res, de saco debaixo do braço, ouvia a voz do intérprete que divagava ao som da orquestra de bordo, mal sonhando que levava mais um no rebanho, parido de geração espontânea ali em Myconos ao pé da ilha sagrada. Misturado como choca em praça de touros flutuante, dei entrada nos salões como agente clandestino dos deuses. Arrepiavam-me os ossos, sentia tonturas ao ouvir palmas de fim de dança. No entanto tudo se passava normal, os gregos amigos, e amigos dos deuses lá puseram a minha bagagem, a carta entregue e logo a cabine pronta para me acolher até ao Pireu. Simples, sem complicações, sem nada, tudo branco. Posso dizer que abandonei a ilha como mais poderia desejar, mas como nunca havia pensado.
O breu imergia-me no azul, caldeado na imagem branca do balouçar via calças e mais calças a serem cortadas para os deuses e a afogarem os últimos sons que Debussy lançava num S.O.S. à minha procura.

Ruben A., "Viagem para Delos e Myconos", do livro Um Adeus aos Deuses. Edição Parque Expo, 1997.

sábado, 16 de novembro de 2013

Viagem a Myconos (2). Ruben A.

Joseph manda vir outra rodada e de garfo em punho todos metem o bedelho no prato. Começam a chegar os turistas, são seis da tarde, Joseph está na ponta da ilha por onde eles entram. Primeiro olha à distância, depois fixa-se nas calças e de olho caído por uma le­ve distracção nem as persegue. «Calças de terceira classe» - digo eu. - «Nem de quarta», responde-me com ar de ligeira constipação. Passam mais turistas e Joseph continua a olhar para as calças com interesse clínico, repara no corte da rabada, «mal feitas», «pouca altura de anca», «estreitas no rabo». Joseph comanda o andamento da ilha, todos o adoram, todos vêm ter com ele. A casa de Joseph é um museu de dedicatórias de todos os costureiros de Paris, de todas as mulheres célebres do universo. E ele é um homem simples, o único na ilha de Myconos que usa colete. Se alguém passa de calças mais bem feitas, Ju­pien levanta-se da cadeira, olha atento, e devagar vai à sua loja. É ele que tem a chave no bolso e a bicha de pessoas espera o curandeiro, o homem que indiferente à celebridade, corta as melhores calças do mundo. Na loja manda logo vir café para todos, dá cigarros, faz preços para voltar, corta logo, risca e começa a trabalhar, depois entrega o resto às costureiras. Terminada a operação, as enfermeiras que se divirtam com os restos dos clientes - ele nada mais faz. Volta à baía. Senta-se. Manda vir nova rodada de anis, café e um prato de tiras de perna de carneiro e batatas fritas. Outra vez muitos garfos e ele comanda novamente. Faz o corte, risca os bocados e oferece o garfo para cada um provar o original.
É uma ilha em que cada homem tem uma história e cada casa é branca e só branca. Português de paleio, em carne e osso, que quisesse provar o sabor de Myconos, só eu ainda tinha por lá pairado! Novos amigos sentam-se à mesa: gregos que viajaram oceanos e passaram por Lisboa. Contam histórias em várias línguas. São famílias sobre famílias, primos todos uns dos outros - o capitão Luigio Guarouni que me tinha levado a Delos era sogro de um personagem de Ulisses - um homenzarrão que estava no cais quando eu cheguei. Estava a receber malas e carregar fruta. De aspecto brutal. Depois encontrei um tipo parecido, sentado numa mesa da baía, olhei, passei e continuei. A seguir entrei numa bou­tique e apareceu-me esse homem já transformado em capitão de barco, proprietário do melhor caíque que leva a Delos. Cada homem naquela terra é tudo - carregador, capitão de barco, amigo, e nesta palavra vai a melhor gratidão aos Gregos - eles são amigos, acolhedores, benvindos. Perdidos em arquipélagos sentem-se reconfortados pelos bens de outras gentes que os vêm visitar..
Na ilha há três táxis e uma camioneta, há várias praias, há vento e moinhos brancos, há capelinhas por toda a parte. Dá a impressão de que em certo momento da vida deste povo de Myconos logo que nascia alguém pagavam de tributo uma capelinha, erguiam a Deus o seu agradecimento.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Viagem a Myconos (1). Ruben A.

As histórias contam-se no cais - a ilha vive para quem vem. Chegar é ser recebido de braços abertos como tendo há pouco partido - a língua que se fala não impor­ta, uma pessoa senta-se à mesa e aparece logo quem oferece uma roda de resina ou de anis mergulhado em gelo, talvez mesmo estejam sentados os que só bebem água gelada, copos cheios a acompanhar o café turco, me­lado, doce de azedar o paladar. A vida é ali no cais que está e a ilha vem à baía ver quem chega. Quando não há visitantes a ilha descansa, alguns trabalham e outros falam. Na Grécia está sempre tudo a falar, percebe-se que gostam de falar e não dizer nada, falam, falam. Toda a gente fala e bebe qualquer coisa, fuma, oferece, dá.
Quando chegam as carradas, ou melhor as barcadas de turistas, só se vêem os turistas, os de Myconos vão a correr abrir as lojas, pôr o estendaI dos teares colado às janelas, às portas e escadas - as célebres escadas de Myconos que são todas exteriores. Vivem então os de Myconos dentro de casa e continuam a oferecer café, água, anis, cigarros a todo aquele que lá entra, mesmo que não compre nada, que não perceba patavina do artigo. Os de Myconos dão-se de amizade, de imediato, sem rodeios, sem protocolo. O único protocolo da ilha é não haver protocolos! Tudo é simples, corrido falado, acolhedor em grande escala. Há aqui em absoluto uma gran­de felicidade de viver, de contar, em troca de nada, de não ligar importância à vida. Tudo é muito simples, tudo se faz, tudo se arranja. Um par de calças e uma camisola encomendados às sete da tarde no célebre Joseph - o Jupien de Proust - está pronto certo, à medida e perfeito, ali às onze e um quarto da manhã do dia seguinte e entregue no hotel para maior conforto da prova final.
Myconos é uma ilha sem horário, está sempre aberta a tudo, fechada só quando os turistas embarcam para outros rumos. Nessa altura fecham-se as casas e na correnteza de todo o cais - que é avenida, rua, praça, monumento, santuário - a ilha continua a falar, a criar estilo, e das ruas estreitíssimas e em labirintos sai a fauna misturada a três sexos - os dois da ilha e um de importação recente, poliglota, hermafrodita e que de juba por tosquiar se ademana aos grupos em boutiques fantasques.
Misturo-me no branco caiado das ruas - as primeiras ruas caiadas e caiadas todas as semanas de lés a lés, ruas e casas vestidas de branco, tudo com degraus brancos numa apoteose em que o colorido dos habitantes sobressai como faúlha em forno de cal. O que me interessa em Myconos é a realidade visível da fé nas suas trezentas e sessenta igrejas e capelas, número magno para quatro mil habitantes. Num largo branco, pequeno, frente ao mar, com o único plátano da ilha, há cinco capelas com uma igreja no cento, tudo atento para branquear a alma. Passeio mais, ruas de uma Alfama imaculada, mais estreitas no cada vez, a um de frente, em bicha, sem cruzamentos. Chega nova barcada de turistas e salpicam momentaneamente a ilha de encarnados, amarelos, azuis, pretos, calças listradas, sacos multicolores. E o branco resiste, é forte, cromático. Continuo estático, indiferente aos que chegam ou partem.
Joseph aparece. Acabou de cortar mais meia dúzia de calças. Aparece e senta-se na ponta da baía, na primeira taberna com mesas e cadeiras frente ao semicírculo do cais. Senta-se e logo uma roda de amigos faz companhia, manda oferecer, - oferece anis com gelo, café turco, oferece o que se quiser tomar. Manda vir um prato com várias tiras de rostbeef com batatas fritas a fazerem de girassol. Um prato, uma faca e cinco garfos. O grande Joseph - Jupien faz o corte da carne e cada um de garfo em punho vai tirando uma lasca. A qualquer hora do dia, tanto faz, Joseph começa numa ponta do cais, às quatro horas já está a meio, e ao fim da tarde acaba no outro extremo, sempre numa mesa grande recheada de amigos e estranhos - melhor, os estranhos também são os amigos em Myconos. Amigos sempre diferentes, de nova colheita, de outros mundos. Ali, sentado como soba da ilha - Joseph, o único católico de Myconos, afirma que é ele quem tem a chave da igreja - ele é tudo - padre, sacristão, confessor, santo missal e a água benta. E é ali, em minoria de um, que a religião católica tem o seu defensor mais acérrimo, o único ser da ilha que pede ao padre de Tinos para três a qua­tro vezes por ano vir dizer missa à sua capela.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Viajava pela primeira vez. Gabriel Garcia Márquez


Eram os únicos passageiros da modesta carruagem de terceira classe. Como o fumo da locomotiva continuasse a entrar pela janela, a menina levantou-se do banco e colocou nele os únicos objectos que traziam: um saco de plástico com algumas coisas para comer e um ramo de flores envolvido em papel de jornal. Sentou-se no banco fronteiro, afastada da janela, em frente da mãe. Ambas guardavam um luto rigoroso e pobre.
A menina tinha doze anos e viajava pela primeira vez. A mulher parecia velha de mais para ser mãe dela, por causa das veias azuis das pálpebras, e do corpo pequeno, franzino e sem formas, metido num vestido talhado como uma sotaina. Viajava com a coluna vertebral firmemente apoiada nas costas do assento, segurando no regaço, com ambas as mãos, uma bolsa de verniz sem brilho. Tinha a escrupulosa serenidade de pessoa acostumada à pobreza.

Gabriel Garcia Márquez, "Uma Sesta de Terça-Feira", in Contos Completos, 1947-1992. 6a edição. Lisboa, Publicações D. Quixote, 2013, p. 17-18.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Do cansaço e do tédio da viagem. Antero de Quental

Que nome te darei, austera imagem,
Que avisto já num angulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cansaço e do tédio da viagem?

Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recua apavorada…
Mas eu confio em ti, sombra velada,
E cuido perceber tua linguagem…

Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos…

Dormirei no teu seio inalterável,
Na comunhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolável.

Antero de Quental. Os sonetos completos de Antero de Quental. Porto, Livraria Portuense, 1886.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A nossa última viagem foi aos Açores. Angelina Brandão

A nossa última viagem foi aos Açores numa época (1926) em que quase não se falava ainda nesse lindo arquipélago, e Raul Brandão partiu com o carinho que sempre dispensava a qualquer obra que empreendesse, e alguns milhares de escudos para estas nossas viagens de recreio.
As ilhas são maravilhosas na sua vegetação, encantadoras nos seus costumes, e as famílias açoreanas, quase todas fidalgas, são o mais obsequiadoras possível e de uma gentileza tão cativante que jamais esquece.
Que lindos e deliciosos dias passámos na Gorreana, solar de D. Angelina Gago e de seu marido Jaime Hintze - então governador civil em Ponta Delgada - modelos se educação e gentileza, nobres nos seus pergaminhos e nas suas virtudes.
À ilustre poetisa D. Alice Moderno, ao Dr. S. Bento e a muitas outras famílias, Morrison e Bulcão, no Faial, etc. que nos cumularam de atenções, devemos horas de conforto e amizade. Ms também junto delas, em todas as Ilhas, ficou um pouco do nosso coração.
Foi talvez esta a última viagem, que tanto nos encantou, a causa do avanço mais rápido da doença de Raul Brandão porque a sua saúde já era precária e o trabalho foi exaustivo, a aproximação constante do mar devia ter influído na depressão tão grande do seu coração.

Maria Angelina Brandão, Um Coração e uma Vontade. Memórias. Coimbra, Oficinas, Atlântida, 1959, p. 234-235.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Visitantes. António Osório

Visitantes

A pupila corrupta
fixo nos astros
- forasteiros
como nós
dentro do cosmos
sonâmbulo.

António Osório, Planetário e Zoo dos Homens. Lisboa, Presença, 1990, p. 38

domingo, 10 de novembro de 2013

Essa nossa espécie de inocência. Eduardo Lourenço

Tal como a própria Grécia considerava aqueles que não falavam grego, os outros foram vistos primeiro como bárbaros, selvagens, como se dizia. Ora, quando lemos a Carta de Pero Vaz de Caminha ficamos muito admirados porque os portugueses não se espantaram com coisa nenhuma. Contrariamente àquilo que aconteceu com os conquistadores espanhóis, os portugueses nunca duvidaram que aqueles sujeitos  - sobretudo as sujeitas - que eles encontraram fosse seres humanos: não só seres humanos, como seres humanos maravilhosos.
Começou aí uma espécie de leitura que vai criar muitas desilusões a uns e a outros, mas na verdade podemos considerar uma benção o facto de essa nossa espécie de inocência - nossa, dos portugueses, menos hipercultivados e sofisticados em relação ao que já era a grande cultura europeia -, o facto de essa nossa ignorância divina não ter excluído da humanidade aqueles primeiros sujeitos com que nos encontrámos.
E não só os encontrámos humanos - e as expressões disso duraram anos através da outra Europa -, não só os considerámos divinos, mas achámos, como diz a carta de Pero Vaz de Caminha, que essas jovens brasileiras, que ainda não tinham nome, eram mais belas que as mulheres (peço desculpa) de Entre Douro e Minho.

Eduardo Lourenço, Conferência proferida em Guimarães, na Sociedade Martins Sarmento, a 23 de Janeiro de 2010, publicada com o título Pequena Meditação Europeia. Lisboa, Guimarães, 2011. p 29-30.

Hospitalidade. François Laplantine

As reflexões a seguir apresentadas não dizem respeito às múltiplas figuras de viajante, mas aos modos - eles também extremamente diversificados - pelos quais nós reagimos ao que chega de fora (o imigrado, o estrangeiro, o viajante...) e ao qual oferecemos ou não hospitalidade.
É este último termo que vamos interrogar. Vem do latim hospes e designa simultaneamente o hóspede e o estrangeiro. Pertence à mesma família das palavras hotel, hospedeiro, hoteleiro, hospício, hospital. Quanto à etimologia grega, é muito mais perturbadora. Xénos significa ao mesmo tempo o hóspede/hospedeiro e o estrangeiro, ou seja aquele que é recebido e o que recebe. Mas há mais. Os Gregos designavam pelo verbo xenitzo não só o facto de ser estrangeiro mas também o facto de parecer estranho. Criaram o termo xénosuné para nomear a hospitalidade e a palavra xénoktonia que significa literalmente o acto de matar os hóspedes ou os estrangeiros.
Estamos aqui na presença de uma significação eminentemente contraditória pela qual a hospitalidade pode converter-se em hostilidade e a boa vontade e confiança em má vontade e desconfiança. Jacques Derrida tratou a sobreposição provocada pelo duplo sentido criando um termo estranho: a hostipialidade [Anne Dufourmantelle, Jacques Derrida, De l'Hospitalité, Paris, Calman-Lévy, 1977].
Na hospitalidade, não existe necessariamente alguém que viaja, ou pelo menos chega de qualquer parte, e alguém que acolhe, alguém que convida e alguém que é convidado. Quem convida pode ser um hospedeiro, o dono da casa, mas também o Estado, a nação. O convidado pode ser um visitante, um turista, um nómada, um vagabundo, um imigrado, um exilado, um desenraizado, um apátrida. Pode ser um vivo ou um morto (como na mediunidade espírita que estudei tanto em Lyon como no Brasil), um ser humano ou um ser divino (e neste último caso, falamos na maioria das vezes de possessões).
Seja qual for a figura a reter, xénos, o estrangeiro, não é nunca o Outro absoluto, o heterogéneo, o excluído, mas também já não é o próximo, o familiar, o incluído. Se a distância é demasiado grande entre quem recebe e quem é recebido, não há nenhuma hospitalidade possível, mas ela também já não existe numa relação de excessiva proximidade. "O homem só ao homem oferece hospitalidade", escreve Derrida, e não a um monstro, sequer a uma planta ou a um animal. Dir-se-ia que somos como os animais que só oferecem hospitalidade à sua própria espécie. Ninguém viu um gato acolher um pássaro.
Recorremos ao termo hospitalidade nas seguintes expressões: "pedir hospitalidade", "oferecer hospitalidade", "conceder hospitalidade", "receber hospitalidade". Falamos ainda de "dever de hospitalidade", mas sobretudo de "direito de hospitalidade" (ou de "direito de asilo"). Onde é que convém - se é que convém - parar a expansão desta significação? Podemos deslizar imperceptivelmente para o convite e a recepção (falando então de convívio), o respeito, a tolerância, o socorro, a amizade ou até mesmo o amor? Mas neste último caso, sentimos que já não é a hospitalidade que está em causa [No filme Western, de Manuel Poirier, Nico e Paco são recolhidos, mais do que acolhidos, por diversas mulheres. A hospitalidade supõe de facto uma relação assimétrica criada pelo habitat. Marinette, Sabine e Nathalie abrem as suas portas a Nino e Paco que não têm tecto, nem trabalho, nem dinheiro, nem carro, nem mulher. Mas quando procuram preencher a sua solidão, manifestando disponibilidade para o encontro, já não é propriamente hospitalidade que estão a oferecer].
De facto, esta última situação procede à suspensão das oposições radicais do eu e o outro, do aqui e outro lugar. Ofereço hospitalidade a partir do momento em que percebo que existe uma comum e reciproca condição de estrangeiro entre nós, uma condição de estrangeiro partilhada e através da qual me recuso a designar outros como sendo e sobretudo como devendo continuar a ser "estrangeiros" [peço licença para remeter este ponto para o meu livro Je, Nous et Les Autres, edições Le Pomier, 1999].
A questão da hospitalidade coloca então uma tripla relação: com a língua, com a lei, com o lugar.

François Laplantine, "Voyage et Hospitalité". In Villes, Voyages, Voyageurs. Actes de la Rencontre de Villeurbanne. Paris, L'Harmattan, 2005, p. 55-59.

sábado, 9 de novembro de 2013

Em viagem ataca-me. Vitorino Nemésio

Faltava o élan de antigos encontros exemplares: Unamuno, V. Larbaud, Supervielle: – uns pela funda influência (Unamuno), outros pelas veleidades literárias, do tempo das ambições de morgado de Fafe em Paris. Como a nossa alma muda! E como me deixo arrastar! Por baixo das personagens corria-me o filme da infância. Quem sou é muito outro. Cada qual seja fiel ao que em verdade o informou. A alta civilização suíça a tantos níveis provoca-me a imagem da minha humildade traída. [...] Será mesmo para isto que cedemos à tentação do «diário»? Onde está a coragem e a entranha da verdade vivida? [...] Se tivesse juízo fazia o romance do Tempo Achado... O cinzeiro ali está para símbolo. E o quarto de hotel do viajante desconsolado...
[Diário, 27 Nov. 1969]

Eu tenho o virus da escrita, mas já pouco a virose. Em viagem, ataca-me.
[Diário, 29 Nov. 1969]


[Diário : fragmento : Suíça, 1969 / Vitorino Nemésio]. – 1969 Nov. 27. – [2] p. em [2] f. ; 30 cm.
Autógrafo com emendas. – Fragmento respeitante ao conjunto por nós intitulado [Diário : 1935-1977] [89]. Descrição da ida a Neuchâtel. – Papel timbrado do hotel TOURING AU LAC [...].
BN Esp. E11/cx. 62

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Preparo a minha viagem real a Portugal. Maria Gabriela Llansol

1 de Julho de 1979
[...]
Preparo a minha viagem real a Portugal, mentalmente, num clima de distanciamento progressivo das tartines. Aceito a crise económica que se prepara, a crise cultural permanente numa espécie de onda que me persegue e me põe, por um dia que começou agora, ao abrigo do circunstancial. Olho para mim mesma, sentada, sobrecarregada com estas preocupações que pouco a pouco se distanciam porque, como sempre, quero escrever.

Maria Gabriela Llansol, Numerosas Linhas. Livro de Horas III. Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 91.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

É sempre necessário que regresse e se reintegre na comunidade de que tinha partido. Hélder Macedo

Dizer que Os Lusíadas representam uma viagem é óbvio ao ponto de irrelevante. Mas talvez já não seja tão óbvio, nem terá sido suficientemente acentuado, qual a natureza simbólica da viagem que a obra representa. Um poema épico tende a significar, como discurso de segundas intenções, um percurso espiritual, uma viagem iniciática personalizada num herói. E há um esquema básico subjacente a toda a viagem iniciática, o qual por sua vez corresponde a uma magnificação da fórmula cristalizada nos ritos de passagem. Este esquema define três momentos fundamentais: a chamada, a viagem propriamente dita, e o regresso. Depois de ter reconhecido a chamada à aventura (e recusá-la seria iniciar um processo inverso de autodestruição), o herói separa-se do mundo familiar da comunidade a que pertence e parte para o mundo desconhecido. Encontra aí forças fabulosas, umas que o ajudam e outras que se lhe opõem, e que ele pode ou não reconhecer pelo que são, mas cujos efeitos inevitavelmente sente. Para a sua aventura se tornar uma verdadeira iniciação, terá de conseguir expandir a sua identidade pessoal, ao ultrapassar sucessivos obstáculos, até que, no encontro com a Magna Mater - momento indispensável e objecto implícito da sua demanda -, tenha assumido o poder paterno de que depende a renovada continuidade da própria comunidade nele personalizada. Terá então merecido a apoteose que consagra o seu triunfo e a última benesse que simboliza em si a imortalidade colectiva que conquistou. Por esse razão é sempre necessário que regresse e se reintegre na comunidade de que tinha partido, de modo a assegurar, dentro dela, a circulação da regeneradora energia espiritual que a sua aventura libertou. Com efeito, do ponto de vista da comunidade, o regresso do herói constitui o propósito e é a única justificação da sua longa ausência. A viagem de todos os grandes heróis da aventura religiosa - Buda, Cristo, Maomé - corresponde, no essencial, a este esquema, sendo o propósito regenerador da sua demanda evidente nas religiões que trouxeram para as suas respectivas comunidades e na promessa literal de imortalidade que essas religiões contêm.

Hélder Macedo, Camões e a Viagem Iniciática.  Lisboa, Morais, 1980, p. 33-34.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A Viagem (3). Sophia de Mello Breyner Andersen

A mulher porém entornou a cabeça para trás e respirou profundamente o cheiro das árvores e da terra. Estendeu a mão no ar e na ponta dos seus dedos poisou uma borboleta.
- Ah! - disse ela -, mesmo perdida, vejo como tudo é perfumado e maravilhoso. Mesmo sem saber se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu não sei onde leva, as árvores são verdes e frescas como se as alimentasse uma certeza profunda. Mesmo aqui a luz poisa leve nos nossos rostos como se nos reconhecesse. Estou cheia de medo e estou alegre.
- O ar e a luz - disse o homem - são bons e belos. Se não estivéssemos perdidos, esta caminhada seria uma viagem maravilhosa. Mas o ar e a luz não nos sabem ensinar a estrada.
Ouviram um pequeno murmúrio cristalino e, dando mais alguns passos, encontraram um rio.
Era um pequeno rio estreito e claro em cujas margens cresciam flores selvagens cor-de-rosa e brancas.
O homem e a mulher deitaram-se de bruços no chão, aproximaram a cara da água e começaram a beber.
- Que água tão limpa! - exclamou a mulher. ­- Vamos tomar um banho.
Despiram-se e entraram no rio.
Ora rindo, ora em silêncio, nadaram muito tempo. Mergulhavam de olhos abertos, tocando as pequenas pedras polidas do fundo, atravessando um mundo suspenso, transparente e verde. Trutas azuis deslizavam rente aos seus gestos.
Depois estenderam-se à sombra doirada da floresta sobre as relvas das margens. O perfil da mulher recortava­-se entre as flores.
- Aqui é quase como na terra para onde vamos ­ disse ela.
É - respondeu o homem -, mas aqui é um lugar de passagem.
E ambos se levantaram e se vestiram.
- Vamos? - perguntou ele.
- Espera um momento - respondeu a mulher. ­
Quero primeiro colher flores para levar.
Ajoelhou-se no chão e começou a fazer um ramo. E o homem reparou que ela colhia as flores arrancando-as com a raiz e perguntou:
- Por que é que colhes as flores com a raiz?
- Porque as quero plantar na terra para onde vamos. Não sei se lá há flores iguais a estas - respondeu a mulher.
E seguiram.
Agora o dia começava a cair.
- Tenho fome - disse a mulher.
- Temos as amoras - disse o homem.
Pousou o lenço no chão e desatou os nós.
Mas o lenço estava vazio.
Ficaram uns momentos calados. Depois o homem disse:
- As pontas do lenço estavam com certeza mal atadas e as amoras foram-se perdendo uma por uma à medida que íamos andando. Uma por uma. Nem as senti cair.
- Tenho fome - disse a mulher.
- Vamos para a frente - disse o homem.
Viram ao longe entre as árvores um clarão vermelho.
- É o pôr do Sol! - exclamou a mulher. - Já é o pôr do Sol!
- Vamos depressa - disse o homem. - Vem aí noite e ainda não encontrámos o caminho.
E foram quase correndo.
Entre as sombras do crepúsculo ouviram de repente vozes.
- Gente! - exclamou o homem. - Estamos salvos!
- Salvos? - perguntou a mulher.
E de novo se ouviram vozes:
- Estão para aquele lado - disse a mulher, apontando para a esquerda.
- Não, estão para além - disse o homem, apontando para a direita.                                              
O homem agarrou a mão da mulher e correram os dois para a direita.
Mas à medida que iam correndo, as vozes iam-se tornando-se mais distantes.
- Vão mais depressa do que nós! - queixou-se a mulher.
- Mas - respondeu o homem - se conseguirmos ao menos seguir a direcção que levam estaremos salvos.
Assim foram, escutando e correndo, enquanto as sombras do crepúsculo cresciam. Até que as vozes deixaram de se ouvir e a noite caiu espessa e cerrada.
A Lua ainda não tinha nascido. Por todos os lados os rodeavam sombras, ruídos, murmúrios que eles confundiam com vultos, pessoas, vozes. Mas eram apenas trevas, troncos de árvores, galhos secos que estalavam, sussurrar de folhagens.
- Estamos perdidos? - perguntou a mulher.
- Não sabemos - disse o homem.
Seguiram devagar, de mão dada, em silêncio, encostados um ao outro.
Até que de repente viram que tinham chegado ao fim da floresta.
Cheios de esperança, avançaram para o espaço descoberto, mas, saindo do arvoredo, encontraram à sua frente um abismo.
Debruçados espreitaram. Porém, à luz das estrelas nada viam diante de si senão um poço de escuridão, enquanto um frio de mármore lhes tocava a cara.
- É um precipício - disse o homem. - A terra está separada em nossa frente. Não podemos dar nem sequer mais um passo.
- Olha! - respondeu a mulher.
E apontou um estreito carreiro que seguia rente ao abismo. Tinha à esquerda uma alta arriba de pedra e à direita o vazio.                                                .
- Vamos - disse o homem.
- Tenho medo - disse a mulher.
- Estamos juntos - respondeu o homem -, não tenhas medo.
E seguiram pelo carreiro.
O homem ia à frente e a mulher atrás segurava-se com a mão esquerda aos penedos e com a mão direita ao ombro do homem.
Iam em silêncio sob o brilho escuro das estrelas, medindo cada gesto e cada passo.
Mas de repente o corpo do homem oscilou, rolaram pequenas pedras. Ele gritou à mulher:
- Segura-me!
Mas já o ombro dele escorregava das mãos dela. E a mulher gritou:
- Agarra-te à terra!
Mas nenhuma voz lhe respondeu, pois no grande silêncio nítido e sonoro só se ouvia o rolar das pedras.
Ela estava sozinha, vestida de terror, agarrada ao chão em frente do vazio.
- Responde! - gritou debruçada sobre o abismo. Longe, o eco da sua voz repetiu:
- Responde.
Estava estendida na terra, com as mãos enterradas na terra, e começou a gritar como quem está perdido no meio dum sonho. Depois parou de gritar e murmurou:
- Tenho de o ir procurar.
Seguiu de rastos pelo carreiro, tacteando o chão com as mãos à busca duma passagem por onde pudesse descer para procurar o homem. Mas não havia passagem.
Então tentou descer pela própria vertente do abismo. Agarrando-se a ervas e raízes deixou-se escorregar ao longo do precipício. Mas os seus pés não encontravam nenhum apoio onde pudessem firmar-se. Pois a vertente descia a pique, era uma parede lisa de pedra nua.
- Tenho de voltar para o carreiro - pensou a mulher - e tenho de procurar mais adiante uma passagem.
E, agarrada a ervas e raízes, içou-se para o carreiro.
Mas o carreiro tinha desaparecido. Agora havia apenas um estreito rebordo onde ela não cabia, onde nem os seus pés cabiam. Um rebordo sem saída. Aí ficou, de lado, com os pés um em frente do outro comovas figuras dos desenhos do Egipto, com o lado direito do seu corpo colado à pedra da arriba e o lado esquerdo já banhado pela respiração fria e rouca do abismo. Sentia que as erva se as raízes a que se segurava cediam lentamente com o peso do seu corpo. Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo. Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder.
Compreendeu que lhe restavam somente alguns momentos.
Então virou a cara para o outro lado do abismo. Tentou ver através da escuridão. Mas só se via escuridão. Ela, porém, pensou:
- Do outro lado do abismo está com certeza alguém.
E começou a chamar.

Sophia de Mello Breyner Andersen, "A Viagem". In Contos Exemplares. 9ª edição. Lisboa, Portugália Editora, 1970, p. 135-165.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

A Viagem (2). Sophia de Mello Breyner Andersen

- E agora? - perguntou a mulher.
- Vamos voltar outra vez para a estrada e continuar- disse o homem.
 Saíram e atravessaram o pinhal. Mas a estrada tinha desaparecido.
- Tenho medo - disse a mulher. Agora tenho sempre cada vez mais medo. Tudo desaparece.
- Estamos juntos - disse o homem.
- Mas o que é que vamos fazer sem estrada?
- Vamos voltar para a casa - disse o homem - e lá esperaremos até que os donos cheguem e nos ensinem o caminho e nos ajudem.
E de novo atravessaram os pinhais. Mas no lugar onde tinha sido a casa agora havia só uma pequena clareira e pedras espalhadas.
Ambos ficaram mudos. Depois a mulher deixou-se cair no chão, e, estendida entre as pedras, chorou com a cara encostada à terra.
- Vamos - disse o homem.
- Para onde? - perguntou ela.
- Havemos de encontrar qualquer caminho.
- Para quê? Perdemos tudo quanto encontramos.
O homem ajoelhou ao lado da mulher e limpou na cara dela as lágrimas e a terra.
Depois levantou-a e ambos seguiram para a frente.
Atravessaram o pinhal e encontraram um campo.
Mas não se via nenhum caminho.
No meio do campo havia uma macieira carregada de maçãs vermelhas, polidas e redondas.
- São lindas! - disse a mulher.
Colheu uma para si e outra para o homem. Sentaram-se os dois nas ervas finas sob a sombra sossegada da árvore e a carne firme, fresca e limpa da maçã estalou entre os seus dentes. .
Era já o princípio da tarde, e no dia cheio de luz, encostados ao duro tronco escuro e rugoso, descansaram em silêncio, ouvindo só o levíssimo rumor da terra sob o sol.
Depois o homem disse: - Vamos.
Levantaram-se e seguiram.
Já no extremo daquele campo, junto à sebe que o separava de outro campo, a mulher exclamou:
- Devíamos ter colhido algumas maçãs para trazer. Não sabemos onde estamos, nem quanto teremos de andar até encontrarmos outra vez alguma coisa de comer.
- É verdade - respondeu o homem.
E, voltando para trás, caminharam para a macieira que no meio do campo se desenhava redonda.
Porém, quando chegaram ao pé da árvore, viram que nos ramos, entre as folhas, todos os frutos tinham desaparecido.
- Alguém passou por aqui, passou sem o vermos e colheu as maçãs todas - disse o homem.
- Ah! - exclamou a mulher - tão depressa! Tão depressa desaparece tudo! Encontramos as coisas. Estão ali. Mas quando voltamos já desapareceram. E nem sabemos quem as desfez e as levou.
Baixando a cabeça retomaram em silêncio a caminhada. Atravessaram sucessivos campos mas não encontraram ninguém que os guiasse e lhes respondesse. Junto de uma sebe viram no chão um tarro de cortiça e uma bilha de barro.
A mulher destapou o tarro e espreitou dentro da bilha. - Estão vazios - disse ela.
- Onde estará o dono?
Olharam em redor mas não se avistava ninguém. Chamaram, ninguém respondeu.
- Talvez esteja do outro lado da sebe - disse a mulher.
Atravessaram a sebe mas do outro lado não viram nenhum homem. Viram só um pequeno regato que corria quase escondido entre trevos e agriões. Ajoelhados lavaram as mãos e a cara. Na concha das suas mãos a mulher bebeu e deu de beber ao homem.
- Se tivéssemos trazido a bilha - disse ela - poderíamos levar água connosco.
- E também no tarro poderíamos levar frutos. Vamos buscar a bilha e o tarro.
Atravessaram a sebe.
Mas a bilha estava partida e o tarro estava todo roído.
- Quem a terá partido?
- Talvez a brisa ou algum animal passando.
- Quem o terá roído?
- Os ratos, as serpentes, as toupeiras, os cães selvagens.
- Quebrados e roídos já não servem.
- Vamos embora depressa - disse a mulher.
Era já o meio da tarde quando viram uma grande floresta, de cuja orla partia um carreiro.
- Vamos pelo carreiro. Indo por aqui temos que encontrar gente. Os carreiros são feitos para passarem pessoas. Os carreiros são feitos para levar até aos lugares onde há gente.
E entraram na floresta.
Carvalhos, castanheiros, tílias e bétulas, cedros e pinheiros cruzavam os seus ramos. Grandes raios de luz oblíqua passavam entre os troncos. O ar era verde e doirado.
- Que bonita floresta! - exclamou a mulher.
- Que bonita floresta! - exclamou o homem.
Aqui e além estalava um ramo seco. Às vezes uma pinha caía do alto. Ouvia-se o murmúrio da brisa nas folhas altas. Ouvia-se o canto dos pássaros escondidos. Ouvia-se o silêncio dos musgos e da terra.
E embalados na beleza, na música e no perfume da floresta, o homem e a mulher seguiram de mão dada pelo carreIro.
Até que ouviram ao longe um som de machadadas.
Foram andando e foram-se aproximando do som.
- Vem dali! - disse a mulher.
E saindo do carreiro meteram à direita.
Encontraram um lenhador a rachar lenha.
- Estamos perdidos - disse o homem -, andamos à procura do caminho para a estrada.
- Ide sempre a direito pelo carreira - disse o lenhador - e encontrareis a estrada.
- Obrigado - disse o homem.
E voltaram os dois para trás.
Mas não encontraram o carreiro.
- Como é que o perdemos? - disse a mulher.
- Vamos pedir ao lenhador que nos guie - disse o homem.
Voltaram ao lugar onde tinham falado ao lenhador. Mas só encontraram lenha rachada. O lenhador tinha desaparecido.
- Foi-se embora - disse a mulher.
- Não deve estar longe. Vamos chamar.
Repetidas vezes chamaram. Mas nenhuma voz, nenhum rumor humano lhes respondeu. Só ouviam cantos de pássaros, sons de ramos secos estalando, murmúrios de brisa nas folhas.
- Vamos escutar calados - disse o homem. - Ele não pode ainda estar longe, talvez se possa ainda ouvir o barulho dos seus passos.
E escutaram calados.
Mas só se ouviam os barulhos da floresta.
- Sei uma maneira melhor de escutar - disse a mulher.
E pôs-se de joelhos e encostou, primeiro um, depois outro, os ouvidos à terra.
Mas só ouviu o silêncio palpitante da terra.
- Só oiço a terra - disse ela.
- Vamos para a frente - respondeu o homem.
E seguiram.
Encontraram uma sebe carregada de amoras.
- São maravilhosas! - disse a mulher.
O homem colheu um punhado de amoras e estendeu-as a palma da mão à mulher. Ela provou e tomou a dizer:
- São maravilhosas!
Rindo, começaram os dois a colher amoras e, tendo reunido uma grande quantidade, sentaram-se no chão a comer. A luz oblíqua da tarde passava entre os troncos escuros e acendia o verde das ervas. Quando acabaram de comer, o homem disse:
- Temos de ir. Temos de encontrar a estrada e a terra para onde vamos.
- Como havemos de encontrar essa terra, se nem sabemos onde estamos?
- Temos de procurar - respondeu o homem.
Levantaram-se para partir.
- Espera - disse a mulher. - Quero levar amoras.
E, desatando o nó do lenço que trazia ao pescoço, abriu e estendeu o lenço no chão. Começaram os dois a colher amoras e reuniram uma grande pirâmide dentro do lenço. Depois ataram duas a duas as quatro pontas.
- Vamos - disse o homem passando o dedo entre os dois nós.
E retomaram o seu caminho.
Iam de mãos dadas através do ar doirado e verde. Esta floresta é linda! - disse a mulher.
- É - disse o homem -, mas não encontrámos ainda a estrada.