quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

As palavras são as primeiras a chegar. Rosa Alice Branco

Passos sem memória

Olho a janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom-dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário
nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.

Risa Alice Branco, Soletrar o Dia (Obra Poética). Vila Nova de Famalicão, Edições Quasi, 2002, p. 17.

1 comentário:

  1. Um rio nos habita
    desde o mais remoto barro...

    Mas sabemos acaso
    que águas o compõem,
    que ventos o orientam,
    qual o destino do seu curso?

    Já humanos pés pisaram
    a areia do seu leito,
    ou subtis ouvidos entenderam
    o seu murmúrio?

    Conhece alguém
    os barcos que o percorrem,
    ou a cor da pele
    e as canções e as guitarras
    dos marinheiros?

    Liberto Cruz, ITINERÁRIO, Covilhã, Liv.ª Nacional, 1962, p. 15.

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