Faltava o élan de antigos encontros exemplares: Unamuno, V. Larbaud, Supervielle: – uns pela funda influência (Unamuno), outros pelas veleidades literárias, do tempo das ambições de morgado de Fafe em Paris. Como a nossa alma muda! E como me deixo arrastar! Por baixo das personagens corria-me o filme da infância. Quem sou é muito outro. Cada qual seja fiel ao que em verdade o informou. A alta civilização suíça a tantos níveis provoca-me a imagem da minha humildade traída. [...] Será mesmo para isto que cedemos à tentação do «diário»? Onde está a coragem e a entranha da verdade vivida? [...] Se tivesse juízo fazia o romance do Tempo Achado... O cinzeiro ali está para símbolo. E o quarto de hotel do viajante desconsolado...
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Diário, 27 Nov. 1969]
Eu tenho o virus da escrita, mas já pouco a virose. Em viagem, ataca-me.
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Diário, 29 Nov. 1969]
[Diário : fragmento : Suíça, 1969 / Vitorino Nemésio]. – 1969 Nov. 27. – [2] p. em [2] f. ; 30 cm.
Autógrafo com emendas. – Fragmento respeitante ao conjunto por nós intitulado [Diário : 1935-1977] [89]. Descrição da ida a Neuchâtel. – Papel timbrado do hotel TOURING AU LAC [...].
BN Esp. E11/cx. 62
A escrita também é viagem. Quem nunca sentiu a tentação de escrever uma espécie de diário quando viaja? O registo da experiência que a viagem é, integra-a, completando-a. Mais ou menos todos o sentimos. Quanto mais não o sentiria Nemésio? O ataque do vírus é uma boa imagem quando nos referimos à escrita. À leitura também.
ResponderEliminarEncontrei ocasionalmente este blogue e quero felicitar o seu autor pela ideia, pela persistência e pela qualidade e variedade dos textos que nele publica (o que inclui as imagens, afinal também elas dando corpo a uma espécie de texto). Quero felicitar também os ou as comentadoras mais assíduas. Elas fazem deste afinal um blogue de dupla leitura: o texto convocado pelo prof. J. Serra e o texto invocado ou criado pelos comentários. Parabéns a todos. Tornei-me um leitor regular deste blogue, duas vezes por dia.
ResponderEliminarDavid F. Metrass
Obrigado, caro David, pelas suas palavras. Subscrevo integralmente as que dirige aos autores de comentários do blogue. Esses comentários honram-me e sobretudo acrescentam ao blogue uma qualidade intelectual de que ele não dispunha, evidentemente.
ResponderEliminarO TEMPO ACHADO
ResponderEliminarE mal reconheci o gosto do pedaço de madalena ensopado na tília que a minha tia me dava ( se bem que então ainda não soubesse e tivesse que deixar para muito mais tarde a descoberta de porque é que aquela recordação me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta sobre a rua, onde ficava o seu quarto, veio, como um cenário de teatro, juntar-se ao pequeno pavilhão que dava para o jardim, que havia sido construído para os meus pais nas traseiras (aquela superfície truncada, a única que até então tinha tornado a ver); e com a casa, a cidade, desde manhã até à noite e com toda a espécie de tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas onde ia fazer compras, os caminhos que se tomavam quando estava bom tempo. E, tal como naquele jogo em que os Japoneses se divertem a molhar numa tigela de porcelana cheia de água pedacinhos de papel até então indistintos e que, logo depois de ensopados, se estendem, torcem, tomam cor, se diferenciam, se transformam em flores, em casas, em personagens consistentes e reconhecíveis, assim também, agora, todas as flores do nosso jardim e as do parque do senhor Swann, e os nenúfares do Vivonne, e a boa gente da aldeia, e as suas casinhas, e a igreja, e Combray inteira mais os arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá.
M. Proust, EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO. DO LADO DE SWANN, Tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio d'Água, 2003, pp. 54-55.