Ao sair deste parque, o Vivonne punha-se a correr de novo. Quantas vezes eu vi, e desejei imitar quando fosse livre de viver a meu jeito, um remador que, largado o remo, se deitara de costas, com a cabeça em baixo, no fundo do seu bote, e que, deixando-o flutuar à deriva, apenas podendo ver o céu que desfilava lentamente por cima de si, levava na cara o antegosto da felicidade e da paz.
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E por certo, quando eram longamente contemplados por aquele humilde passeante, por aquele menino que sonhava - como um rei o é por um memorialista perdido na multidão -, este recanto da natureza ou esta ponta do jardim não poderiam pensar que seria graças a ele que seriam chamados a sobreviver nas suas particularidades mais efémeras; e, contudo, aquele perfume de espinheiro que recolhe ao longo da sebe, onde as rosas bravas não tardarão a substituí-lo, um ruído de passos sem eco no saibro de uma alameda, ou uma bolha formada contra uma planta aquática pela água do rio e que logo rebenta, a minha exaltação trouxe-os e conseguiu fazê-los atravessar tantos anos sucessivos, enquanto, em redor, os caminhos se apagaram, e morreram os que os pisaram, e a memória dos que os pisaram. Às vezes, este trecho de paisagem trazido assim até hoje destaca-se tão isolado de tudo, que flutua incerto no meu pensamento como uma Delos florida, sem que eu possa dizer de que país, de que tempo - talvez simplesmente de que sonho - chega. Mas é sobretudo como sendo jazidas profundas do meu solo mental, como terrenos resistentes em que me apoio ainda, que devo pensar no lado de Méséglise e no lado de Guermantes. É porque acreditava nas coisas, nos seres, enquanto os percorria, que as coisas e os seres que eles me fizeram conhecer são os únicos que ainda levo a sério e que ainda me dão alegria. Ou porque a fé que cria se esgotou em mim, ou porque a realidade só se forma na memória, as flores que hoje me mostram pela primeira vez não me parecem verdadeiras flores.
O lado de Méséglise, com os seus lilases, os seus espinheiros, as suas cinerárias, as suas papoilas, as suas macieiras, o lado de Guermantes com o seu rio cheio de girinos, os seus nenúfares e os seus ranúnculos constituíram para sempre, para mim, a imagem das terras onde gostaria de viver, onde exijo antes de mais nada poder ir à pesca, passear de canoa, ver ruínas de fortificações góticas e encontrar no meio dos trigos aquilo que era Saint-André-des-Champs, uma igreja monumental, rústica e dourada como uma meda; e as cinerárias, os espinheiros, as macieiras que, quando viajo, me acontece encontrar ainda nos campos, porque estão situados à mesma profundidade, ao nível do meu passado, estão imediatamente em comunicação com o meu coração. E no entanto, porque existe algo de individual nos lugares, quando me assalta o desejo de tornar a ver o lado de Guermantes, ninguém o satisfaria levando-me à beira de um rio onde houvesse nenúfares tão belos ou mais belos do que os do Vivonne, tal como ao fim da tarde, ao regressar - à hora em que em mim despertava aquela angústia que mais tarde emigra para o amor, e que pode tornar-se para sempre inseparável dele -, não teria desejado que me viesse dar as boas-noites uma mãe mais bela e mais inteligente que a minha.
Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, I, Do lado de Swann, Trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio d'Água, 2003, pp. 194-196.
LEVANDO-ME À BEIRA DE UM OUTRO RIO
ResponderEliminarO Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
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Alberto Caeiro, O GUARDADOR DE REBANHOS, XX.