segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

No mar e no navegar está o sonho de chegar. José Cardoso Pires

Iam de rota traçada com destino às Bermu­das, esse arquipélago de esmeraldas depostas sobre um banco de corais que Álvaro Vaz co­nhecia de leituras e que durante a viagem an­tecipava aos companheiros numa geografia de surpresas. No mar e no navegar está o sonho de chegar, e o skipper do Ponta de Sagres sempre que demandava portos desconhecidos figurava-os para lá da proa do veleiro em re­presentações que conhecera deles através de álbuns, vídeos e enciclopédias ou das repor­tagens do National Geographic. Navegava  assim a duas cartas, a duma Imago Mundi umas vezes científica, outras vezes aventurei­ra, e a da Orbis Rigorosa da arte de marear, e nada disto serviria de estorvo à sua navega­ção, uma vez que um comandante de mão pensada é capaz de levar o navio até ao cume duma montanha. Adiante, portanto, e que São Cristóvão Viajante lhes abrisse caminho com o bastão da sua augusta providência.
Adiante, isto é, rumo a SW, logo ao largo da costa apanharam dois dias de nortada com ondas de quatro metros e vento de força cin­co que os obrigou a amuras curtas. Dois dias em cavalgada de vaga alta é coisa medonha de vencer, mas felizmente que, de garras ao leme e velas firmes, se guardaram de estragos e desesperos e entraram de consciência cum­prida em mar de feição, mar brando, mar es­tanhado e sempre mais brando à medida que se aproximavam do paralelo 30 entre a Madeira e as Canárias e guinavam para oeste co­mo mandava a carta de bordo. Deus abrira a sua mão de luz sobre o oceano, apaziguando­-o, e conduzia o veleiro num chão de mila­gres donde de levantavam bandos de peixes voadores, escreveu o monge de Singeverga, sentado na cabine frente à imagem duma Vir­gem de Neptuno que ele jamais conhecera do Livro dos Benditos.

José Cardoso Pires, Breve noticia do achamento da ilha de Santanás e dos verdadeiros sucessos que nela ocorreram agora postos a escrito segundo os testemunhos dos navegantes e dos registos que os certificam. Lisboa, Parque Expo 98, 1997, p. 15-17.

1 comentário:

  1. PEIXES VICIOSOS

    Com os Voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, Voadores, não vos fez Deus para peixes; pois porque vos meteis a aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar, e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas, e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois ave, senão peixe, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, Voador, que vos deu Deus maiores barbatanas, que aos outros do vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas? Mas ainda mal porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhores que os outros peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes do alto mata-os o anzol, ou a fisga; a vós, sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção, e o vosso capricho. Vai o navio navegando, e o Marinheiro dormindo, e o Voador toca na vela, ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome, e engana-os a isca, ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento.

    Pe António Vieira, SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES, IN SERMÕES DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA, Apresentação crítica de Margarida Vieira Mendes, Lisboa, Ed. Comunicação, 1987, p. 76.

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