segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Nunca teve vontade de partir? Milan Kundera

O jovem olha-a nos olhos, ouve-a e depois diz-lhe que aquilo a que ela chama recordação é, na realidade, oura coisa muito diferente: enfeitiçada, vê-se a esquecer.
Tamina aprova.
E o jovem continua: o olhar triste  que ela lança para trás já não é a expressão da fidelidade a um morto. O morto desapareceu do seu campo visual e ela olha apenas para o vazio.
Para o vazio? Mas então o que é que lhe torna o olhar tão pesado?
Não está pesado de recordações, explica o jovem, mas de remorsos. E Tamina nunca se perdoará o ter esquecido.
- E o que é que tenho de fazer? - pergunta Tamina.
- Esquecer o seu esquecimento - diz o jovem.
Tamina sorri com amargura:
- Explique-me como é que consigo.
- Nunca teve vontade de partir?
- Sim - confessa Tamina. - Tenho uma terrível vontade de partir. Mas para onde?  
- Para qualquer sítio onde as coisas são leves como uma brisa. Onde as coisas perderam o peso. Onde não há remorsos.

Milan Kundera, O Livro do Riso e do Esquecimento. 9ª edição. Lisboa, Dom Quixote, 2001, p. 156-157.

4 comentários:

  1. A propósito, um poema que a certa altura fala em "vontade de partir":

    Amo tudo aquilo que se assemelha ao jogo
    Como olhar que com olhar se cruza
    Vencida distância que se consome em fogo
    Chave de porta que não se abrindo se usa.

    Amo a distância que de ti me separa
    E não me deixa em mim senão sonhar-te
    Amo a saudade de um tempo que pára
    À força de não te tendo, amar-te.

    Amo a ausência de algo que me falta
    Como se me fosse essa a razão da vida
    Amo o momento que passando tarda
    Como tardando na tarde a despedida.

    Amo a impossibilidade, o sentimento
    Que vagueia entre o ser e o existir
    Lugar cativo que consome o tempo
    Cansaço de tudo, vontade de partir.

    Amo de um céu com nuvens a altura
    Que a elas me impede de chegar
    Medo constante, alegria pura
    Ou só a certeza de o maor se amar.

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  2. PARTIR!!! SEM OLHAR ATRÁS?

    Um dia, quando passeava na margem de uma ribeira da Trácia, Eurídice foi perseguida por Aristeu, que a pretendia violentar. Na fuga, picou uma serpente escondida na erva, que a mordeu causando-lhe a morte. Orfeu, inconsolável, desceu aos Infernos, a fim de procurá-la. Com a sua lira, encanta os monstros e os deuses que aí habitam. Os poetas rivalizam em imaginação para descrever os efeitos da sua música divina: a roda de Ixíon deixa de girar, a pedra de Sísifo equilibra-se por si própria imobilizando-se, Tântalo esquece a fome e a sede, as Danaides já não tentam encher de água o tonel perfurado. Hades e Perséfone consentem em devolver Eurídice a um esposo que dá uma tal prova de amor. Mas impõem uma condição: Orfeu atingirá de novo a luz do dia, seguido da mulher, sem se voltar para trás, para a ver, antes de ter deixado o reino das trevas. Orfeu aceita e põe-se a caminho. Estava quase a ver a luz do dia quando uma dúvida terrível lhe veio ao espírito: Perséfone não o teria enganado? Logo se volta para trás vendo Eurídice desaparecer e morrer pela segunda vez. Em vão tenta voltar aos Infernos para a procurar: Caronte é agora inflexível e é-lhe recusada a entrada no mundo subterrâneo.
    É, então, obrigado a voltar para junto dos humanos.

    Pierre Grimal, "orfeu" IN DICIONÁRIO DA MITOLOGIA GREGA E ROMANA, Lisboa, Difel, 1992, pp.340-341.

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  3. Fernando Pessoa diz que "O mito é o nada que é tudo".

    Se há uma verdade própria dos mitos, uma verdade que só os mitos contêm, a do mito de Orfeu consistirá em alertar para o perigo da dúvida porque ela ocorre exatamente no ponto (a única condição posta por Perséfone) que impede o milagre de acontecer.

    É sempre muito perigoso olhar atrás...

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  4. E Eurídice, depois de Orfeu?

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