Que nome te darei, austera imagem,
Que avisto já num angulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cansaço e do tédio da viagem?
Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recua apavorada…
Mas eu confio em ti, sombra velada,
E cuido perceber tua linguagem…
Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos…
Dormirei no teu seio inalterável,
Na comunhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolável.
Antero de Quental. Os sonetos completos de Antero de Quental. Porto, Livraria Portuense, 1886.
COMO UM CANSAÇO FELIZ
ResponderEliminarEntão ele recostou na anca dela a cabeça e, de olhos fechados, ficou assim demoradamente, sem pensar em nada, sem sentir nada, apenas dado ao calor que o penetrava suavemente e era só ternura. No sono que o envolvia como um cansaço feliz, a sua ama, com a voz dela, cantava-lhe um velho cantar que, pouco a pouco, foi deixando de ouvir, na deriva em que se afastava de tudo e de si mesmo, com a sensação de que não estava só na barca que descia o rio. E a segurança de que jamais estaria só, nunca, nunca, em parte alguma.
Jorge de Sena, O FÍSICO PRODIGIOSO, Lisboa, Edições 70, 1986, p. 54.
O poema me levará no tempo
ResponderEliminarQuando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê
O poema alguém o dirá
Às searas
Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento
O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento
No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas
(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)
Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas
E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo
Sophia de Mello Breyner
Livro Sexto (1962)
Os blogues estão em recuo junto dos cibernautas, dizem-me. Porventura porque outras formas de comunicação, mais imediatas e menos consumidores de tempo e reflexão, se lhe sobrepuseram. Talvez porque o voyeurisme que o ciberespaço tanto estimulou já considere o intimismo dos blogues obsoleto. Ou ainda, porque os autores dos blogues, com honrosas excepções, não tenham logrado justificar a diferença, pelo rigor, pela qualidade e pela pertinência informativa, deste media relativamente aos medias clássicos, com os quais concorreriam.
ResponderEliminarA continuidade deste blogue questiono-a todos os dias. Justificar-se-á este esforço para fazer do tema da viagem um exercício de imaginação, e surpreender os leitores? Terei leitores?
O google há muito que fornece aos autores informações pormenorizadas sobre a origem e movimento do consumo dos blogues, pelo que uma parte das dúvidas posso esclarecê-las nessa fonte. Mas ainda assim, um largo espectro de interrogações sobre a pertinência deste caminho subsiste.
Certo é, porém, que em prol da persistência milita um argumento poderosíssimo, qual seja o da qualidade e riqueza dos comentários que diariamente este blogue suscita. Muitas vezes verifico, aliás, que os textos com que os comentadores dialogam com os do blogue são mais interessantes, mais vivos, sublinham ou destacam melhor aspectos para os quais as minhas escolhas, menos informadas, procuravam remeter.
É a pensar neles, nos comentadores mais assíduos, entre os quais conto duas grandes amigas identificadas e um anónimo frequentador deste espaço, que muito me honra com a sua discreta presença inteligente e culta, que diariamente vou respondendo afirmativamente à pergunta: vale a pena continuar?
Muito grata, João. Pela delicadeza do seu texto, dos argumentos invocados. Embora eu não tenha comentado este post, sinto-me incluída no seu comentário pelas suas próprias palavras. Confesso que também eu gosto muito dos comentários que surgem neste blogue, para além dos posts, mas não me parece justo considerá-los mais informados (pelo menos os meus, mais simples do que outros, não são de certeza) do que os seus. Afinal, quem comenta é que recebeu da sua parte, João, o desafio original.
ResponderEliminarUm beijo.
Ah, esqueci-me de outra coisa! O mais importante, afinal. Ainda bem que a resposta à questão que se coloca é afirmativa!
ResponderEliminarAs suas palavras são de muita simpatia e grande gentileza, como sempre. Que outras nunca lhe conheci e eu agradeço a parte da sua boa vontade que a mim possa caber. Não reconheço contudo aos meus comentários as qualidades que lhes atribui e por isso, permita-me que confesse, que me sinto muito mais lisonjeada por me considerar sua amiga. E nesse campo sim, estou em condições de garantir que não será defraudado. Incondicionalmente, poderá contar sempre com a minha amizade.
ResponderEliminarTambém eu tenho seguido com extraordinário interesse o seu comentador anónimo (ou comentadora), não pensando contudo que não soubesse de quem se tratava. Acredito que esteja curioso, dada a cultura que evidencia e que no fundo este seu comentário em jeito de reflexão, contenha em si uma forma muito subtil de pedir à pessoa em questão que se identifique. Se em vez de homem o meu caro amigo fosse mulher, teria a coragem fazer o pedido de forma direta, que é a forma mais simples de se obter uma resposta inequívoca.
Há largos anos, eu saía de casa às oito horas para ir para a escola e um dia, às sete horas e cinquenta e cinco minutos o telefone tocou e uma voz masculina disse: “Isabel, gosto muito de si. Um bom dia para si, Isabel.” E este telefonema começou a acontecer todos os dias, sempre à mesma hora, com a mesma conversa. Confesso que de início achei divertido. Então quando contei às colegas foi um delírio, embora mais velhas do que eu, ainda acreditavam em contos de fadas e nem queira saber as hipóteses que começaram a engendrar, mas todas passavam por conhecer o sujeito e eu senhora daquela malfada parte cerebral que tilinta quando algo não bate certo, achava que se o sujeito quisesse conhecer-me não me faria telefonemas anónimos e se, tal como elas sugeriam, fosse o príncipe encantado, não precisava de se esconder, por muito tímido que fosse.
Devido à minha avultada dose de paciência, durante quatro meses recebi todas as manhãs o dito telefonema, mas quando comecei a sentir-me limitada na minha liberdade arranjei uma forma simples de acabar com eles e resultou. Ainda hoje não sei quem foi e nunca desejei saber.
Conto-lhe isto, porque acredito que o João anda intrigado com o tal anónimo e até ansioso por não saber de quem se trata. Convença-se que anónimo que se não identifica não pretende, a não ser incomodá-lo.
Desejo que o “seu” anónimo se identifique para seu sossego de alma.
Abraço fraterno.
Isabel
PS. Não precisa de publicar este comentário, embora possa fazê-lo se quiser. O objetivo era animá-lo um pouco, dando-lhe a conhecer a minha experiência.
VALE AS PENAS
ResponderEliminar"E tu, Padre, de grande fortaleza,
Da determinação que tens tomada
Não tornes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-seda cousa começada."
Camões, OS LUSÍADAS, I, 40.
Obrigado, Isabel Soares, pelas suas palavras gentis e generosas. Gostei da sua história, embora seja mais vaga e imprecisa do que pretende. Não vou seguir o seu conselho porque é da natureza de um comentadores anónimo ... precisamente o ser anónimo. E, claro, eu respeito muito a natureza dos comentadores, de todos eles.
ResponderEliminarQuisera ter a capacidade de lhe copiar a atitude. Logo eu que passo a vida a proclamar o meu desejo de vir a ser santa, dado que de ser rainha se me foram as hipóteses com a abolição da monarquia, e a imaginar-me da linda arcada ogival do castelo de Leiria a cobrir a cidade de rosas. Consegue visualizar a imagem? Santa Isabel Soares, loura como a lenda conta que era a moura Zara (a quem o meu amigo Orlando Cardoso – quem diria que é poeta?! E ruivo! – devolveu o cabelo negro – que falta de imaginação (nem queira saber o que ele me tem aturado por causa desse ataque de realismo despropositado). Pois, mas não tenho! É que aliada a uma coloridíssima emoção tenho uma razão implacável e como muito bem sabe, o seu “amigo” Gaston Bachelard garante que esta “não é de forma alguma uma faculdade de simplificação. É uma faculdade que se esclarece enriquecendo-se. Desenvolve-se no sentido de uma complexidade crescente,…” (A Filosofia do Não, Editorial Presença, 6.ª Ed., pág. 29, 3.ª l. e seg.) vai daí, de premissa em premissa, com umas cadeiras de Direito à mistura, resulta que para mim tudo o que não tem nome nem rosto, não existe. Insere-se no mesmo princípio a minha experiência, descrita com imprecisão, como considera, mas creia que, por si, para exemplo, gastei com ela mais palavras do que acho que mereceu.
ResponderEliminarPerdi todo o interesse pelo elevado humanismo (qualidade incontestável) do seu amigo anónimo. Por muito estimulante que possa ser para si. Não tem rosto, não tem nome. Não sei se é só um se um grupo. Quem não confia, não é confiável.
Já não acredito no Pai Natal, embora ele bata todos os anos à minha porta. Condescendências de avó que não se furta à figurinha triste de gritar à noite, em cada Natal que lhe cabe a sorte de usufruir do neto, antes de recolher as prendas da varanda: Obrigada Pai Natal! Não queres arroz doce? (Oh! Se calhar com a pressa nem ouviu…) Adeus Pai Natal! Volta para o ano!
Ah! Também já não acredito na Fada-dos-dentes, embora ela deixe por aí um desses mostrengos a que agora se chama brinquedo, cada vez que o André perde um dente.
Aproveito para lhe dizer que vou estar um pouco “ausente”. Um amigo pediu-me um texto para ontem, que por muito pequeno que seja exige que busque informação que nem “sonho” onde recolher. Tenho ainda um mês para decorar umas falas que só de escopro e martelo me parece que entrarão nesta cabeça dura – vida de “artista”! Se der pela minha falta, já fica a saber que não me esqueci de si. Ando às voltas sem saber para que lado hei de virar-me, para arranjar tempo para dormir. :)
Abraço fraterno.
Isabel S.
Então não é que hoje mesmo, ao almoço - um almoço por sinal no ambiente historico e magnificente do Convento de Cristo - alguém me garantiu que as ultimas investigações revelaram que a Santa Isabel nem foi santa nem fez o milagre que tardiamente lhe foi atribuído? Fico à espera do seu regresso, Isabel. Se lhe puder ser útil, disponha.
ResponderEliminarEsse "alguém" só pode ser um desmancha-prazeres, mas não pense que com essa novidade me leva a desistir da ideia. Se não houve uma Santa Isabel, não acha que está na altura de se inventar uma? Então agora que não há concorrência... Cada vez me sinto com mais hipótese. Tem coragem de dizer que não concorda comigo?
ResponderEliminarMuito obrigada pela sua disponibilidade. É sempre de uma gentileza extrema. Já abusei tanta vez da sua boa vontade que até tenho vergonha de voltar a pedir alguma coisa, mas não insista muito... :)
Para se ser santa, preciso é fazer milagres previamente, de preferencia originais. Dada a dificuldade - crescente - em vez de santas, pululam as santinhas.
ResponderEliminarUm “passarinho” falou-me deste irresistível comentário. E não pude deixar de vir aqui, num "pulinho".
ResponderEliminarDevido a este sol radioso que nos aquece a alma (valha-nos isso), apesar do frio que já se faz sentir, há muito pólen no ar. Espirra-se muito. E o que lhe dizem a si quando espirra? “Santinho” Veja lá! Quem diria? Até o João… Não veja ironia nas minhas palavras. Não estou a dizer que não mereça o epíteto.
Discordo da sua opinião. Acho que pululam é os santos e santas. Neste país, acordar em cada manhã e sorrir ao dia que nada nos promete, é um milagre que mais que originalidade e coragem exige resiliência. Há santos e santas mártires. Esqueceu? :)
Não restam dúvidas: Santo Antero, como lhe chamou Eça (outro "Santo", à sua maneira) tem inspirado gerações de poetas e continua a produzir resultados inesperados, em pessoas e lugares igualmente inesperados. Pronto, concedo-lhe, Isabel, a santidade pela qual tanto anseia. Ficamos à espera dos milagres, mas aviso que serei muito severo na avaliação dos impactos. Entretanto, se precisar de ajuda nesses trabalhos forçados em que se acha envolvida, disponha.
ResponderEliminarOra pois, quem sabe se em vez de me "escanhoar" cuidadosamente todos os dias, deixasse crescer a barba, a minha cara "grenha, densa e loura" não ficaria também com "lampejos ruivos", como o Santo Antero do Eça?! :) De qualquer modo, mãe de duas filhas que nasceram ruivas e avó de uma endiabrada catraia com cabelos dessa cor, sinto-me "aparentada" com mais esse santo e vejo assim aumentada a minha "santidade". Muito obrigada não só pela sua condescendência como por me ter lembrado essa possível "afinidade".
ResponderEliminarCongratulo-me também com o facto de o João, querendo alcançar igual estado, não dispensar a minha ajuda. Assim e já que "insiste" (já viu que descaramento?) contactá-lo-ei de outro modo, no sentido de o ajudar, da melhor forma possível, a alcançar o céu. Quem sabe, um dia, poderemos encontrar-nos por lá, numa qualquer nuvem jeitosinha a jogar o Micado, o Burro em pé, o Bom dia senhorita, ou outros jogos assim alucinantes. :)
Não me expliquei bem. Não me propus ajudá-la nos esforços pela santidade ou pelo reconhecimento da dita. Nem sou digno nem seria de préstimo. Os trabalhos forçados a que me referia eram aqueles que invocou para justificar uma ausência prolongada do ciberespaço.
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