Suponho que na América pouco se sabe dos Açores. De todos os passageiros do nosso paquete, não havia um único que soubesse o que fosse sobre estas ilhas. Alguns de nós, extremamente versados na maioria das outras terras, nada sabiam sobre os Açores, a não ser que se tratava de um arquipélago com nove ou dez pequenas ilhas perdidas no Oceano Atlântico, mais ou menos a meio caminho entre Nova Iorque e Gibraltar. Só isso. Estas observações levam-me a incluir aqui um parágrafo sobre os factos puros e duros.
A comunidade é principalmente portuguesa – ou seja, pobre, apática, modorrenta e preguiçosa. Têm um governador civil, designado pelo rei de Portugal, além de um governador militar, que pode assumir plenos poderes e e dissolver o governo cicil, a seu bel-prazer. A população das ilhas perfaz cerca de duzentas mil almas, quase todas portuguesas. Tudo está perfeitamente estabelecido, visto que a região já tinha cem anos quando Colombo descobriu a América. A colheita principal é o milho, que eles cultivam e moem tal e qual faziam os seus tetravós. Usam um arado de uma tábua com uns grampos de ferro; os seus regos insignificantes são escavados pelos homens e pelas mulheres; pequenos moinhos moem o milho, a dez alqueires por dia, e há um moleiro-assistente que alimenta o moinho e outro moleiro-chefe que fica de sentinela não vá o outro adormecer. Quando o vento muda, atrelam umas mulas e dão-se ao trabalho de rodar toda a parte superior do moinho até terem as velas na posição certa, em vez de arranjarem uma maneira de serem as velas a mudar em vez do moinho. Os bois pisam os espigas de trigo, segundo o costume do tempo de Matusalém. Não há um único carrinho de mão em toda a terra: levam tudo à cabeça, ou em cima das mulas, ou numa carroça com caixa de vime e rodas de madeira maciça cujos eixos giram em simultâneo com as rodas. Não há qualquer arado moderno naquelas ilhas, e nem uma só debulhadora. Todas as tentativas de introduzir essas ferramentas agrícolas falharam. Os bons católicos dos portugueses benzeram-se e pediram a Deus que os guardasse do desejo herético de quererem saber mais do que os seus pais antes deles. O clima é ameno; nunca têm neve ou gelo, e não há uma única chaminé em toda a povoação. Os burros e os homens, as mulheres, e as crianças da família comem e dormem todos na mesma casa, e apresentam-se sujos, cheios de bichos e extremamente felizes. As pessoas mentem e enganam os estrangeiros, e são terrivelmente ignorantes e não têm quase nenhum respeito pelos mortos. Por esta última característica bem se vê que são pouco melhores do que os burros com que dormem e comem. Os únicos portugueses bem vestidos que por lá andam fazem parte de meia dúzia de famílias abastadas, ou então são padres jesuítas ou soldados do pequeno regimento. O ordenado de um trabalhador rural é de vinte a vinte e quatro cêntimos por dia, e o de um bom artífice é cerca do dobro. Contam o dinheiro em réis, a mil por dólar, o que os faz sentirem-se ricos e satisfeitos.
Mark Twain, A Viagem dos Inocentes ou a Nova Rota dos Peregrinos. Lisboa, Tinta da China, 2010, p. 64-65 [1ª edição: 1869].
O PAÇO DO MILHAFRE
ResponderEliminarÀ beira de água fiz erguer meu Paço
De Rei-Saudade das distantes milhas:
Meus olhos, minha boca eram ilhas;
Pranto e cantiga andavam no sargaço.
Atlântico, encontrei no meu regaço
Algas, corais, estranhas maravilhas!
Fiz das gaivotas minhas próprias filhas,
Tive pulmões nas fibras do mormaço.
Enchi infusas nas salgadas ondas
E oleiro fui que as lágrimas redondas
Por fora fiz de vidro e, dentro, de água.
Os vagalhões da noite me salvavam
E, com partes iguais de sal e mágoa,
Minhas altas janelas se lavavam.
Vitorino Nemésio, POESIA (1935-1940), Lisboa, Bertrand, 1986, p. 130.