sábado, 28 de dezembro de 2013

Do outro lado a margem era baixa. Marcel Proust

O maior encanto do lado de Guermantes era que tínhamos quase sempre a nosso lado o curso do Vivonne. Era forçoso atravessá-lo pela primeira vez dez minutos depois de sair de casa, por um passadiço a que se chamava a Ponte Velha. Logo no dia seguinte à nossa chegada, no dia de Páscoa, depois do sermão, se o tempo estava bom, eu corria para lá, para ver, naquela desordem de uma manhã de grande festa em que alguns preparativos sumptuosos fazem parecer mais sórdidos os utensílios domésticos que ainda por lá andam, o rio que passeava já, azul-celeste, entre as terras ainda negras e nuas, acompanhado apenas de um bando de cucos que tinham chegado cedo de mais e de prímulas adiantadas, enquanto aqui e além uma violeta de bico azul vergava a sua haste sob o peso da gota de aroma que guardava no seu cálice. A ponte velha desembocava num caminho de sirga que naquele local, no Verão, se atapetava das folhas azuis de uma avelaneira, debaixo da qual tomara raízes um pescador de chapéu de palha. Em Combray, onde eu sabia que espécie de ferrador ou de marçano se disfarçava sob a farda do suiço das cerimónias da igreja ou da sobrepeliz do menino de coro, aquele pescador é a única pessoa cuja identidade nunca descobri. Ele devia conhecer os meus pais, porque soerguia o chapéu quando passávamos; queria então perguntar-lhe o nome, mas faziam-me sinal para me calar para não assustar o peixe.
Íamos pelo caminho de sirga que seguia acima da corrente com um talude de vários pés; do outro lado a margem era baixa, estendida em vastos prados até à aldeia e até à estação, que era longe dali. Estavam semeados dos restos, meio mergulhados entre as ervas, do castelo dos antigos condes de Combray, que na Idade Média tinha deste lado o curso do Vivonne como defesa contra os ataques dos senhores de Guermantes e dos abades de Martinville. Eram já só alguns fragmentos, que mal se viam, de torres corcovando a pradaria, algumas ameias donde outrora o besteiro lançava pedras, donde o vigia espiava Novepont, Clairefontaine, Martinville-le-Sec, Bailleau-l'Exempt, tudo terras tributárias de Guermantes, no meio das quais estava encravada Combray, e hoje rentes à erva, dominadas pelos meninos da escola dos frades que vinham ali estudar as lições ou brincar no recreio - um passado quase descido à terra, estendido à beira da água como um passeante a apanhar o fresco, mas que me dava muito que sonhar, fazendo juntar no nome de Combray, à cidadezinha de hoje, uma cidade muito diferente, retendo os meus pensamentos pelo seu rosto incompreensível e de outras épocas que tinha meio escondido debaixo dos ranúnculos. Eram muito numerosos naquele local, que tinham escolhido para as suas brincadeiras de ar livre, isolados, dois a dois, em bandos, amarelos como gemas, brilhando mais, julgava eu, porque, como não podia derivar para alguma veleidade de apreciação, o prazer que a sua visão me causava, acumulava-o eu na sua superfície dourada, até se tornar suficientemente poderoso para produzir inútil beleza; e isto desde a minha mais tenra infância, quando do caminho de sirga estendia os braços para eles sem poder soletrar completamente o seu lindo nome de príncipes de contos de fadas franceses, porventura chegados há muitos séculos da Ásia, mas enraizados para sempre na aldeia, satisfeitos com aquele modesto horizonte, amantes do sol e da beira de água, fiéis à pequena paisagem da estação ferroviária, porém conservando ainda, como algumas das nossas velhas telas pintadas, um poético brilho do Oriente.

Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, I, Do lado de Swann. Tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio d'Água, 2003, pp. 177-178.

1 comentário:

  1. O CORRER DOS RIOS

    Aquela senhora tem um piano
    Que é agradável mas não é o correr dos rios
    Nem o murmúrio que as árvores fazem...
    [...]

    Alberto Caeiro, O GUARDADOR DE REBANHOS, XI.

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