O barco balouçou e vazou-o no mar (um copo a vazar o seu conteúdo num tanque). Macário contraiu-se, de medo e de frio, e pensou: «Por agora estou salvo.» Opôs o corpo ao mar e, sobretudo, à escuridão. Bracejou, à procura da carne líquida das ondas, e do sentido da ilha, no seu ondear oculto. Começou a viagem dolorosa em que os braços e as pernas tinham de vestir a resistência da madeira e comportar-se como remos. Era uma viagem sem paisagem, através da ausência. Macário apavorava-se nela, agudamente servo de si próprio. Media, braçada a braçada, a água que o exilava da ilha, até que os joelhos tocaram os rochedos e as casas apareceram levantadas ao alto sobre a neblina. Ultrapassou as rochas e estendeu-se no princípio da praia, desamparado como uma concha.
Maria Gabriela Llansol, A Terra Fora do Sítio, Edição Parque Expo 98, 1997. p. 22-23.
Só se morre de si mesmo! Foi a frase que me ocorreu lendo este excerto de Maria Gabriela Llansol. Como a vida. Como a morte. Morremos de nós mesmos! Devo ter lido algures - não me parece que seja eu a autora da ideia - mas não me lembro onde. Deve ser isso a morte; deve ser isso a vida: "viagem sem paisagem, através da ausência". Um pressentimento.
ResponderEliminarNão queria mais nada! Mesmo dizendo que não, duvidando dessa possibilidade, pôr sequer ao de leve a hipótese de ter sido eu autora da frase: "Só morremos de nós mesmos"
ResponderEliminarLembrei-me onde é que a li: Herberto Helder.
Diz assim: "Eu não reconhecia o mundo, aquele. Poderia então morrer, insensível, ali? Só morremos de nós mesmos, e se existe uma figura topográfica, geográfica, talvez seja escolhida ou imposta pela inspiração que dirige profundamente a nossa vida. Esta ilha não se integrava na minha ordem espiritual e fora nela contudo que eu arrecadara os ganhos fundamentais, os primeiros, naquelas imagens, nos acontecimentos por assim dizer nascidos naqueles lugares, nascidos deles, ali concebera como reitoria irreversível e inocente aquilo que, com alguma verdade, alguma retórica, alguma fé, se chamaria destino."
Herberto Helder, Servidões (2013). Porto: Assírio & Alvim Editores (p. 17)
ODE DO DESESPERADO
ResponderEliminarA morte está agora diante de mim
como a saúde diante do inválido,
como abandonar um quarto após a doença.
A morte está agora diante de mim
como o odor da mirra,
como sentar-se sob uma tenda num dia de vento.
A morte está agora diante de mim
como o perfume do lótus,
como sentar-se à beira da embriaguez.
A morte está agora diante de mim
como o fim da chuva,
como o regresso de um homem
que um dia partiu para além-mar.
[...
Egipto: Exorcismos,Versão de Herberto Helder, IN ROSA DO MUNDO, Porto, Assírio e Alvim, 2001, p. 383.