Vou tomar banho a uma praia defendida do vento e a água é cristalina e pura, quase fria, sem ondas. Estendo-me na praia e oiço Debussy, a mais completa imagem-som que senti na vida - oiço o piano de muitos prelúdios a ritmarem-se em escalas diferentes. Vêm quase silenciosos, falam em frases muito curtas, aparecem e desaparecem, vêem-se no desdobrar de sons minúsculos trazidos por uma onda que se recolhe cada vez que se abre. É uma praia deserta onde um barco lembra a existência de qualquer coisa pareci da com a raça do Homem. É um barco que me liga de som à existência, é a única imagem que tem nome. Oiço mais atentamente, oiço horizontal, para sentir o som vindo da melodia que se esvai e renasce naquele portinho tão cheio de tonalidades perceptíveis. Uma grandeza enche-me, completa-se na alvura da ilha - estou horas a ouvir qualquer coisa de extraordinário que fica gravado na minha imaginação como o recordar harmonioso um piano afinado pelo próprio teclado da natureza. É um Debussy monstro que se agiganta no microcosmos, trânsito de uma nota cromática que penetra suave nos poros audíveis da minha sensibilidade.
Volto a pé a Myconos. Volto à baía, ver os amigos que nas mesas me esperam. Ainda não chegaram os turistas, os ilhéus andam todos cá por fora e o palhabote nem entra na baía, as lanchas vão fora da barra apinhadas de gente. Basta o barco uivar para ser uma correria. Não consigo cabine. Nada tem importância, não há dificuldades, tudo se arranja. É tudo fácil e simples. A minha partida da ilha tem de ser clandestina, pela calada da noite, com senha e contra-senha. Escala um barco grande de turistas - entra às seis e sai à meia-noite. Da ilha só vêem o cais, e alguns o branco, mas, como turistas, lêem de cor a natureza. Pela lei dos códigos marítimos não pode receber passageiros em portos intermediários. Mas tudo se arranja. Metem-me num grupo de excursionistas, e um dos gregos amigos escreve logo uma carta para o comissário de bordo e fornece-me um bilhete de visita ao navio. A bagagem lá irá parar - eu que não me preocupe, nada de agitação. Calma, conversa e mais um anis com gelo. Nada de pressas, mais um cigarro. O grego confia, posso pagar quando quiser, a bordo ou à chegada a Atenas, ou mandar o dinheiro de Portugal. Não há pressas, tudo é à base de confiança.
A minha saída de Myconos reveste-se de aspectos rocambolescos, sou metido a bordo em manada de excursionistas com guia à frente - cá vou eu de cabeça baixa, clandestino na igualdade de direitos humanos dada pelos Gregos a todos os homens.
Antes da última aventura fui despedir-me de Joseph à sua mesa, já batida pela lua oscilando entre restos de batatas fritas e um molho prateado de combustível oleoso. Abraçou -se, deu-me um beijo, e comunicou a todos os estranhos e aos já conhecidos a minha partida. Mirou-me de alto a baixo e em francês disse-me apenas - au revoir et bonne santé - toujours bonne santé - Fiquei com a língua enjaulada. Mas no súbito lembrei-me a estupenda palavra grega para o saudar: IASÚI.
Ao subir a escada daquele portaló de luxo olhei para a correnteza de casario e mirei emocionado toda a simplicidade que o branco deixara pendurado na noite prateada da baía. Olhei mais. Vi que todos eram amigos e agarrado à manada, sentindo as varas dos picadores, de saco debaixo do braço, ouvia a voz do intérprete que divagava ao som da orquestra de bordo, mal sonhando que levava mais um no rebanho, parido de geração espontânea ali em Myconos ao pé da ilha sagrada. Misturado como choca em praça de touros flutuante, dei entrada nos salões como agente clandestino dos deuses. Arrepiavam-me os ossos, sentia tonturas ao ouvir palmas de fim de dança. No entanto tudo se passava normal, os gregos amigos, e amigos dos deuses lá puseram a minha bagagem, a carta entregue e logo a cabine pronta para me acolher até ao Pireu. Simples, sem complicações, sem nada, tudo branco. Posso dizer que abandonei a ilha como mais poderia desejar, mas como nunca havia pensado.
O breu imergia-me no azul, caldeado na imagem branca do balouçar via calças e mais calças a serem cortadas para os deuses e a afogarem os últimos sons que Debussy lançava num S.O.S. à minha procura.
Ruben A., "Viagem para Delos e Myconos", do livro Um Adeus aos Deuses. Edição Parque Expo, 1997.
DE ILHA EM ILHA
ResponderEliminarPesca, cabotagem, pequenos negócios de ilha em ilha, rapinas e piratarias, todo um microcosmo agitado de marinheiros, de tratantes e de corsários vivia aí, de uma vida medíocre e salubre, muito mesquinha à vista das vastas empresas comerciais e das grandes explorações que os Fenícios empreendiam. A sua indústria cheirava a mar. Com os pés na água e o rosto ao vento, levavam o pescado e a azeitona aos traficantes de Sidónia e de Tiro que acabavam de entrar no porto com suas velas azuis, verdes, vermelhas, em barcos pintados de plantas marinhas, de pólipos, de algas de toda a vida ondulante, gorgolada e viscosa dos fundos. Foram precisos séculos, sem dúvida, para que as tribos de uma mesma ilha ou de uma mesma margem reconhecessem um chefe, consentissem em segui-lo longe, em expedições astutas e sangrentas às cidades do continente de onde se traziam jóias, baixelas de ouro, tecidos ricos, mulheres.
E foi somente então que os Aqueus, os Daneus dos velhos poemas, amontoaram nos promontórios fortificados essas pesadas pedras, muralhas ciclópicas, muralhas pelágicas à sombra das quais os Átridas coroados de ouro, semelhantes aos reis bárbaros que dois mil anos mais tarde sairiam das florestas do Norte, abancavam diante da carniça e do vinho com seus familiares e soldados.
Élie Faure, HISTÓRIA DA ARTE. A ARTE ANTIGA, Trad. de Vitorino Nemésio, Lisboa, Estúdios Cor, 1951, pp. 82-3.