domingo, 10 de novembro de 2013

Essa nossa espécie de inocência. Eduardo Lourenço

Tal como a própria Grécia considerava aqueles que não falavam grego, os outros foram vistos primeiro como bárbaros, selvagens, como se dizia. Ora, quando lemos a Carta de Pero Vaz de Caminha ficamos muito admirados porque os portugueses não se espantaram com coisa nenhuma. Contrariamente àquilo que aconteceu com os conquistadores espanhóis, os portugueses nunca duvidaram que aqueles sujeitos  - sobretudo as sujeitas - que eles encontraram fosse seres humanos: não só seres humanos, como seres humanos maravilhosos.
Começou aí uma espécie de leitura que vai criar muitas desilusões a uns e a outros, mas na verdade podemos considerar uma benção o facto de essa nossa espécie de inocência - nossa, dos portugueses, menos hipercultivados e sofisticados em relação ao que já era a grande cultura europeia -, o facto de essa nossa ignorância divina não ter excluído da humanidade aqueles primeiros sujeitos com que nos encontrámos.
E não só os encontrámos humanos - e as expressões disso duraram anos através da outra Europa -, não só os considerámos divinos, mas achámos, como diz a carta de Pero Vaz de Caminha, que essas jovens brasileiras, que ainda não tinham nome, eram mais belas que as mulheres (peço desculpa) de Entre Douro e Minho.

Eduardo Lourenço, Conferência proferida em Guimarães, na Sociedade Martins Sarmento, a 23 de Janeiro de 2010, publicada com o título Pequena Meditação Europeia. Lisboa, Guimarães, 2011. p 29-30.

3 comentários:

  1. ALI ANDAVAM...

    Andavam ali muitos deles ou quase a maior parte que todos traziam aqueles bicos d'osso nos beiços.
    E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles bicos, a saber: um na metade e os dous nos cabos. E andavam aí outros quartejados de cores, isto é: deles a metade da sua própria cor e a metade de tintura negra, maneira d'azulada, e outros quartejados d'escaques.
    Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos, pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas e tão çarradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha.

    A CARTA DE PÊRO VAZ DE CAMINHA, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 11.

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  2. Sem dúvida, seja por “uma espécie de inocência” ou não, o povo português possui esse extraordinário dom da universalidade. Costumo dizer que somos ótimos em extensão e péssimos em profundidade. Vejamos por exemplo, casos como o da Esmeralda, ou como o da menina russa(?) que acompanhou a mãe para o país natal. Todos se envolvem, todos opinam, geram-se enormes movimentos de solidariedade, escrevem-se livros, fazem-se peditórios para se resolverem os problemas dos outros, muitas vezes, para não dizer sempre, decidindo a favor de quem parece mais simpático e contra a lei vigente. E eu pergunto quantos problemas pessoais facilmente resolvíveis não carregarão nos ombros, tantas daquelas pessoas sem que os consigam ou queiram solucionar?
    Será a proximidade do mar, a névoa e a bruma, que Agustina diz moldar-nos a alma, que nos cria esta predisposição para transbordarmos de nós e sermos melhor a resolver a vida dos outros do que a nossa?
    Quanto à beleza, E.L. Nem precisaria de pedir desculpa. Primeiro porque é um conceito, depois porque entra também nesta predisposição nossa para aceitar como melhor tudo o que vem de fora e é diferente.
    Não me parece que se possa generalizar e dizer quais, se as brasileiras, se as portuguesas são mais bonitas. A diferença não está aí. A diferença reside no modo de estar na vida. Elas são mais alegres, despreocupadas e por isso também mais simpáticas do que nós.

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  3. Não sei dizer onde obtive a informação, possivelmente incorreta, mas li ou ouvi algures que o texto de Pêro Vaz de Caminha é pouco fiável, forjado numa fase mais tardia da nossa História, ou seja, falso.
    Se calhar, trata-se de mais um dos casos em que aos portugueses custa a crer e a aceitar que uma atitude de compreensão e aceitação do outro tão invulgar para a época, nos possa ser atribuída com justiça.
    Quanto mal dizemos de nós mesmos!

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