Ainda sobre "isto" da poesia, segundo Herberto Helder:
"Mas penso que tudo isto é uma interminável preparação, uma aproximação. Porque o prestígio da poesia é menos ela não acabar nunca do que propriamente começar. É um início perene, nunca uma chegada seja ao que for. E ficamos estendidos nas camas, enfrentando a perturbada imagem da nossa imagem, assim, olhados pelas coisas que olhamos. Aprendemos então certas astúcias, por exemplo: é preciso apanhar a ocasional distração das coisas, e desaparecer; fugir para o outro lado, onde elas nem suspeitam da nossa consciência; e apanhá-las quando fecham as pálpebras, um momento, rápidas, e rapidamente pô-las sob o nosso senhorio, apanhar as coisas durante a sua fortuita distração, um interregno, um instante oblíquo, e enriquecer e intoxicar a vida com essas misteriosas coisas roubadas. Também roubámos a cara chamejante dos espelhos, roubámos à noite e ao dia as suas inextrincáveis imagens, roubámos a vida própria à vida geral, e fomos conduzidos por esse roubo a um equívoco: a condenação ou condanação de inquilinos da irrealidade absoluta. O que excede a insolvência biográfica: com os nomes, as coisas, os sítios, as horas, a medida pequena de como se respira, a morte que se não refuta com nenhum verbo, nenhum argumento, nenhum latrocínio. Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência."
[...] Há dez, quinze anos, não me recordo já, cheguei a estas solidões, fundei a minha casa na perdida areia, e como a areia fui esmiuçando as horas desta vida grão a grão: luz, sombra, sangue, trigo, repulsão ou doçura. [...] Pablo Neruda, "Ode ao Espaço Marinho", IN ANTOLOGIA BREVE, Trad. de Fernando Assis Pacheco, Lisboa, Dom Quixote, 1974, pp. 74-5.
"Este lugar não existe", mas é. Poeticamente. Como o Génesis ou o deserto.
ResponderEliminarAinda sobre "isto" da poesia, segundo Herberto Helder:
ResponderEliminar"Mas penso que tudo isto é uma interminável preparação, uma aproximação. Porque o prestígio da poesia é menos ela não acabar nunca do que propriamente começar. É um início perene, nunca uma chegada seja ao que for. E ficamos estendidos nas camas, enfrentando a perturbada imagem da nossa imagem, assim, olhados pelas coisas que olhamos. Aprendemos então certas astúcias, por exemplo: é preciso apanhar a ocasional distração das coisas, e desaparecer; fugir para o outro lado, onde elas nem suspeitam da nossa consciência; e apanhá-las quando fecham as pálpebras, um momento, rápidas, e rapidamente pô-las sob o nosso senhorio, apanhar as coisas durante a sua fortuita distração, um interregno, um instante oblíquo, e enriquecer e intoxicar a vida com essas misteriosas coisas roubadas. Também roubámos a cara chamejante dos espelhos, roubámos à noite e ao dia as suas inextrincáveis imagens, roubámos a vida própria à vida geral, e fomos conduzidos por esse roubo a um equívoco: a condenação ou condanação de inquilinos da irrealidade absoluta. O que excede a insolvência biográfica: com os nomes, as coisas, os sítios, as horas, a medida pequena de como se respira, a morte que se não refuta com nenhum verbo, nenhum argumento, nenhum latrocínio.
Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência."
Herberto Helder, Servidões, (2013). Porto: Assírio & Alvim Editores (p. 12)
Eis um texto pelo qual vale a pena a vida que vivemos!
NESTA SOLIDÃO
ResponderEliminar[...]
Há dez, quinze anos,
não me recordo já,
cheguei a estas solidões,
fundei a minha casa
na perdida areia,
e como a areia fui esmiuçando
as horas desta vida
grão a grão:
luz, sombra, sangue, trigo,
repulsão ou doçura.
[...]
Pablo Neruda, "Ode ao Espaço Marinho", IN ANTOLOGIA BREVE, Trad. de Fernando Assis Pacheco, Lisboa, Dom Quixote, 1974, pp. 74-5.