Hélder Macedo, Camões e a Viagem Iniciática. Lisboa, Morais, 1980, p. 33-34.
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
É sempre necessário que regresse e se reintegre na comunidade de que tinha partido. Hélder Macedo
Dizer que Os Lusíadas representam uma viagem é óbvio ao ponto de irrelevante. Mas talvez já não seja tão óbvio, nem terá sido suficientemente acentuado, qual a natureza simbólica da viagem que a obra representa. Um poema épico tende a significar, como discurso de segundas intenções, um percurso espiritual, uma viagem iniciática personalizada num herói. E há um esquema básico subjacente a toda a viagem iniciática, o qual por sua vez corresponde a uma magnificação da fórmula cristalizada nos ritos de passagem. Este esquema define três momentos fundamentais: a chamada, a viagem propriamente dita, e o regresso. Depois de ter reconhecido a chamada à aventura (e recusá-la seria iniciar um processo inverso de autodestruição), o herói separa-se do mundo familiar da comunidade a que pertence e parte para o mundo desconhecido. Encontra aí forças fabulosas, umas que o ajudam e outras que se lhe opõem, e que ele pode ou não reconhecer pelo que são, mas cujos efeitos inevitavelmente sente. Para a sua aventura se tornar uma verdadeira iniciação, terá de conseguir expandir a sua identidade pessoal, ao ultrapassar sucessivos obstáculos, até que, no encontro com a Magna Mater - momento indispensável e objecto implícito da sua demanda -, tenha assumido o poder paterno de que depende a renovada continuidade da própria comunidade nele personalizada. Terá então merecido a apoteose que consagra o seu triunfo e a última benesse que simboliza em si a imortalidade colectiva que conquistou. Por esse razão é sempre necessário que regresse e se reintegre na comunidade de que tinha partido, de modo a assegurar, dentro dela, a circulação da regeneradora energia espiritual que a sua aventura libertou. Com efeito, do ponto de vista da comunidade, o regresso do herói constitui o propósito e é a única justificação da sua longa ausência. A viagem de todos os grandes heróis da aventura religiosa - Buda, Cristo, Maomé - corresponde, no essencial, a este esquema, sendo o propósito regenerador da sua demanda evidente nas religiões que trouxeram para as suas respectivas comunidades e na promessa literal de imortalidade que essas religiões contêm.
Hélder Macedo, Camões e a Viagem Iniciática. Lisboa, Morais, 1980, p. 33-34.
Hélder Macedo, Camões e a Viagem Iniciática. Lisboa, Morais, 1980, p. 33-34.
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Mais do que por regresso à "comunidade", n' "Os Lusíadas" o regresso é fundamental. Só quando se supunha ter atingido o objetivo da viagem - a chegada à Índia - já no regresso, os nautas chegaram à Ilha dos Amores, verdadeiro propósito da viagem.
ResponderEliminar"DE QUEM AS QUILHAS...?" DE QUEM A VOZ?
ResponderEliminarEis aqui, quasi cume da cabeça
de Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no oceano.
[...]
Esta he a ditosa patria minha anada,
Aa qual se o Ceo me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
[...]
Luís de Camões, OS LUSÍADAS, Canto III, Edição Comemorativa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1972, pp. 42-43.
Antigamente, poucos eram os discursos oficiais que não referiam a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Sempre que os ouvia, não conseguia deixar de pensar “tal não é a canseira que ainda não voltámos”. Entretanto aconteceu o dia 25 de Abril de 1974 e a conversa mudou. “Finalmente, chegámos da Índia. Agora falamos de revolução” (sem termos feito qualquer revolução dado que o regime “caiu de maduro”). Depois calámo-nos com a revolução e até houve quem voltasse à conversa do caminho marítimo para a Índia. “Afinal ficaram uns para trás, os barcos ainda não estão todos em porto seguro” justificava-os .
ResponderEliminarO povo português nasceu com o vento na alma. É muito inquieto. Falta-lhe o espaço para pôr os pés e o ar para respirar como disse Camões. Nunca parte para não voltar, nem regressa para ficar. Gosta de aventura e sente-se bem onde não está. A vida como sinónimo de viagem é uma metáfora que gosta de levar a sério.
E lembrei Mia Couto (Raiz de Orvalho… )
Ser que nunca fui
Começo a chorar
do que não finjo
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem ter nunca partido
para o norte aceso
no arremesso da esperança
Nessas noites
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objectos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse: o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que não são nunca iguais
Faltou-me viver onde estava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me viu entrar
na cidade que em mim despertava
Houve lágrimas que não matei
porque me fiz
de gestos que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente