Testamento
Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos
Se eu morrer
quero que a minha filha se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas e somar
e a descascar batatas
Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras
Ana Luisa Amaral, Inversos. Poesia 1990-2010. Lisboa, Dom Quixote, 2010, p. 51.
SINGELINHA
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Ali singela me achei
porquanto pura me achavam
que modos de flor ganhei
no nome que me botaram.
- Minha mãe, tredo vapor
que à má-fila aqui passou
pediu-me peitinho em flor.
Minha Mãe, dou ou não dou?
- Filha, já no coletinho
rosas de cachinho estreitas.
Ai que te leva o destino!
Para isso filhas são feitas.
- Minha Mãe, treda escotilha
que à má-fé aqui passou
puxou-me pela sapatilha.
Minha Mãe, vou ou não vou?
- Filha, já desse corpete
te vão rosas aos quadris.
Ai que te leva o paquete!
Para isso, filha, te fiz.
[...]
Natália Correia, POESIA COMPLETA, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1999, pp. 440-441.