Começara, pois, por tirar a fronha a uma das almofadas que durante a noite secretamente escorregara para fora da cama. Assim, ir-se-ia para sempre a imagem de Alberto, a lembrança do seu corpo apressado junto ao meu, as manhãs vazias e silenciosas que a sua ausência começava a tecer antes mesmo de abandonar a casa, de sair da cama onde cada um de nós dormira com duas almofadas, ele porque assim se acostumara e eu apenas para o poder olhar, durante a noite, enquanto não conseguisse adormecer. Porém, depois da almofada, haveria muito mais a fazer. Deitar fora os remédios que não fora eu a tomar e, com eles, duas escovas de dentes que não me pertenciam, uma bisnaga velha de creme para a barba, um par de meias pretas de algodão, um pente de metal, uma caneta verde, um frasco de perfume quase no fim, uma agenda com três anos, as fotocópias de um original de um livre de Filipe que já tinha sido publicado, um convite para o lançamento, os recortes de jornal com as críticas, vários bilhetes de combóio e de avião, contas de hotéis, guardanapos de papel escritos pela mão de Javier à mesa dos restaurantes, vamos sair daqui agora e fazer amor?, a terceira semana de Janeiro de alguns anos antes recortada de um calendário, um ramo de alecrim seco arrancado no cabo Espichel, um postal de Finisterra, outro da Irlanda, um com o rosto de Eliot quando jovem e ainda outro com o de Lenine, muitos iguais, a preto e branco, da cancela de um jardim em França, uma planta da cidade do Porto, fotografias de viagens, uma bala, uma nota de cem escudos rasgada ao meio, uma carteira de fósforos que dizia às vezes é muito difícil olhar para ti, um folheto turístico do Faial, uma marca de livro com um trevo, um pé de azálias que não pegara e ainda assim ficara enterrado no vaso, uma caixa de cigarrilhas incompleta, a embalagem cilíndrica verde e dourada de uma garrafa de malte comprada no aeroporto de Dublin, vários livros que nunca descobriria exactamente do quem eram, um isqueiro que já não acendia, um panfletos que me tinham dado na estação de Euston havia muito tempo, papel de carta de todos os lugares por onde passara, um cartão de sócio de um clube de vinhos, o programa de um espectáculo de música galesa, um autocolante do festival de cinema se Tróia, uma dúzia de revistas literárias, uma madeixa loura do cabelo do meu amante, um livro de versos dedicados a uma outra mulher, mais versos nunca publicados, dezenas deles, mais retratos que ainda cheiravam bem como os lugares onde tinham sido tirados, e o meu nome espalhado pelos muitos envelopes das cartas que um dia dividira por vários montes, como se também o meu amor se tivesse sempre dividido por esses homens que agora eu queria esquecer, e esqueceria, para sempre.
Maria do Rosário Pedreira, Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu, Lisboa, Gradiva, 1993, p. 149-150.
PELO CONTRÁRIO...
ResponderEliminarSeja como for, é perturbante que um homem em certas horas, e não das menos sombrias, se empenhe até à alucinação em recriar umas frágeis raízes que o mar deu à costa, pedras de um rosa delicado, folhas onde o oiro da manhã se refugiou, pálpebras ainda com restos de sono. É que nesses azuis debruados a carmim, nesse rumor de longínquos carros de feno, nessas palavras hesitantes entre obediência e rebeldia, o homem aprisionou a luz e a sombra do verão, a fragrância da juventude, os arabescos do vento nas dunas - tudo o que estaria condenado a perecer se não fora acolhido pelas suas mãos como a terra acolhe a semente.
Eugénio de Andrade, "Tudo é só um puro dizer no tempo" IN OS AFLUENTES DO SILÊNCIO, Porto, Assírio & Alvim, 2013, p. 147.