Então, tirou-lhe o lençol de cima e ela não só não se opôs
como o atirou para longe do beliche com um movimento rápido dos pés, porque já
não aguentava o calor. O seu corpo era ondulante e elástico, muito mais do que
quando estava vestida, e com um cheiro próprio a animal do campo que permitia
distingui-la entre todas as mulheres do mundo. Indefesa em plena luz, uma onde
de sangue a ferver subiu-lhe à cara e a única coisa de que se lembrou para o
ocultar foi pendurar-se ao pescoço do seu homem e beijá-lo profundamente, até
gastarem no beijo todo o ar que tinham para respirar.
Ele tinha consciência de que não a amava. Tinha casado com
ela porque gostava da sua altivez, da sua seriedade, da sua força, e também por
um grão de vaidade, mas, enquanto ela o beijava pela primeira vez, teve a
certeza de que não haveria nenhum obstáculo para que inventassem um grande
amor. Não falaram disso nessa primeira noite em que falaram de tudo até
amanhecer, nem haveriam de falar disso nunca. Mas, com o decorrer do tempo,
nenhum dos dois se enganou.
Ao amanhecer, quando adormeceram, ela continuava virgem, mas
não havia de ser por muito tempo.
Gabriel Garcia Marquez, O Amor em Tempos de Cólera. Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1987, p. 173.
O amor, essa grande invenção. A melhor de todas. A que sustenta todas as outras.
ResponderEliminarQue de invenções a vida se faz. Que de invenções se faz a vida.
Saberás que não te amo e que te amo
ResponderEliminarposto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.
Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.
Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.
Meu amor tem duas vidas para amar-te. Por isso te amo quando não te amo e por isso te amo quando te amo.
Pablo Neruda
PUDORES DE NATUREZA DIVERSA
ResponderEliminarEis a graça e a desgraça do comentário anónimo!
Como poderá o destinatário identificar, entre anónimos vários, o "seu" anónimo, digamos, o habitual, sem arriscar o equívoco?
Sugerimos um levantamento lexical centrado nos vocábulos da família de AMAR e a correlação com um "amado" poema de Garcia Lorca, há tempos introduzido neste blog a título de comentário.
Residirá aí uma pista apta a converter-se em chave do enigma..
Anónimo, de sua graça
Há muitas maneiras de identificar anónimos. Mas nenhuma é totalmente fiável. Não é, no entanto, tema que me preocupe muito, porque a diversidade é um valor e a surpresa não é coisa que me moleste. Obrigado anónimo(s) comentador(es).
ResponderEliminarREGRAS SÃO COISAS DE DEUSES
ResponderEliminarAo avistar Marfisa, endireitou o tronco e caminhou com segurança. Marfisa tinha-se ajoelhado, tinha a cabeça inclinada. Viu diante dos seus olhos a mão fina do Rei, e beijou-a.
- Levantai-vos.
Ficaram frente a frente: o Rei, magricela e um pouco assustado; ela, firme, mas de cabeça baixa.
- Tem que esperar um pouco, Majestade.
- A Rainha está lá dentro?
- Está, mas acaba de entrar.
- E por que tenho eu de esperar?
- É sempre conveniente, senhor, dar tempo ao tempo. As coisas devem fazer-se com calma.
- A que coisas te referes?
- A todas, Majestade. Eu sei como são as mulheres. Preferem esperar e ser desejadas. Vossa Majestade deve ser terno e cauteloso, não ter pressa. Uma mulher, por muito rainha que seja, não se entrega à primeira, e atrever-me-ia a dizer a Vossa Majestade que, depois de entrar nessa cela, não haverá Rei nem Rainha, apenas uma mulher e um homem. Que sejam esposos, pouco importa. O amor não sabe de leis nem de bênçãos.
-Porque me dizes isso?
- Porque me ordenaram que lho dissesse.
- E disseram-te mais alguma coisa?
- Sim, Majestade: que não se precipite, que se porte com comedimento e que não desanime se a Rainha se fizer rogada. Tudo isso faz parte do ritual.
- Não será porque a predispuseram contra mim?
- Vossa Majestade não tira conclusões do facto de que a Rainha o espere aqui?
- Tens razão. Como faço para entrar?
- Espere um pouco, acabo de lhe dizer. E também lhe aconselho comedimento. Essa pressa quer dizer que não me prestou atenção.
- A um Rei, custa-lhe bastante obedecer.
- E que faz Vossa Majestade, senão obedecer constantemente? Ao Valido, aos amigos, às leis do Reino. Deve estar acostumado.
- Tens razão de novo.
Afastou-se um pouco de Marfisa, aproximou-se da porta da cela e aplicou o ouvido.
- Não se ouve nada.
- Nós, as mulheres, costumamos despir-nos em silêncio, senhor.
- Achas que se terá despido?
- Para quê, senão para isso, vieram Vossas Majestades a este sítio tão incómodo? E não era isso o que Vossa Majestade pretendia?
- Sabe-o demasiada gente.
- Sabe-o toda a gente, até eu.
Marfisa não se tinha mexido, e mantinha a cabeça baixa.
- Gostaria de saber quando falas por ti própria e quando dizes o que te ordenaram.
- Vão misturados, senhor, os ditames.
- Posso ver-te a cara?
- A regra proíbe-o.
- Mas eu sou o Rei.
- Sim, Majestade, mas a regra é coisa de Deus.
O Rei afastou a mão que dirigira para o véu.
- É o que dizem... - Tornou a escutar, o Rei, através da porta. - Já deve ter acabado, não achas?
- Nesse caso, senhor, aqui vai o meu último conselho: seja meigo e vagaroso, e não se esqueça de que quem o acompanha na cama é um ser de carne e osso, mas, sobretudo, de carne.
- E quem te disse essas coisas?
- Um passarinho, Majestade.
Gonzalo Torrente Ballester, CRÓNICA DO REI PASMADO, Lisboa, Caminho, 1992, pp. 151-153