Quando se meteram no eléctrico, ali na rua de S. Domingos (porque eles moravam na rua de Sacramento), encontraram lá a Luzia da Silva, a mãe da Sophia, que ia também para a Baixa com a filha e os seus dois grandes amigos, a Beatriz e o Paulo da Cunha.
Os pequenos ficaram contentíssimos. Felizmente ia muito pouca gente e puderam instalar-se todos uns ao pé dos outros.
A Beatriz e o Paulo tinham doze e treze anos. Ambos falavam já muito bem inglês e alemão e o Paulo era um excelente estudante e estava no segundo ano do liceu, o que não o impedia de ser muito alegre e divertido.
[...] As duas mães sentaram-se ao pé uma da outra.
Sophia
Onde é que vocês vão?
Rita
Vamos fazer compras para a viagem. Fatos, malas, chapéus, e não sei que mais coisas precisas.
[...]
Então separaram-se e a Luisa seguiu com a Sophia e os seus dois amigos pela Rua do Ouro, enquanto a Maria subia com a Rita, o João e o Rodrigo pela rua de S. Nicolau.
Foram primeiro aos Armazéns do Chiado para se escolherem os fatos.
[...]
Foram então escolher as malas. A Maria comprou uma mala de mão para ela, outra para o Dinis e um saco de viagem em forma de rolo.
Entretanto os pequenos passavam revista a todas as coisas da loja.
João, apontando para uma mala enorme que estava a um canto
Ali está uma mala que talvez me sirva.
Rodrigo
Acho-a pequena para mim. Tenho tanta coisa que levar que não sei como hei-de encontrar uma mala bastante grande.
E continuaram ambos a procurar, hesitando entre as maiores que viam. A Rita já tinha fixado a sua escolha e estava encantada ao olhar para ela. Era um baú destes que as criadas costumam comprar todo brilhante de reflexos de cores, com as suas varetas pregadas com pregos amarelos. Não tinha menos de um metro de comprimento.
A Rita abriu-o; tinha dois tabuleiros, todo forrado de azul claro e de cor de rosa e parecia tão grande que ela agora já pensava a sério em levar a cama e a cómoda da sua boneca maior.
Podia mesmo levar o berço da mais pequenina.
E o carrinho para elas passearem.
E a mobília da casa de jantar.
E o fogão.
E a mercearia pequena onde elas faziam as suas compras...
Maria
Rita! O que estás a fazer aí?
Rita, muito satisfeita
Estou a ver a minha mala. Já escolhi, mãesinha
Maria
Mas eu não vejo aí mala nenhuma que possa servir-te.
Virginia de Castro e Almeida, Céu Aberto. Ilustrações de João Alves de Sá. Lisboa, Livraria Clássica Editora, S.d, p. 37-39, p. 63-74. [1ª edição 1907]
Só para destacar:
ResponderEliminar1) a ideia de que o menino não estava impedido de ser alegre pelo facto de ser bom aluno;
2) a ideia de haver, de algum modo, inevitavelmente, alguma afinidade entre meninas e arcas. Por motivo de viagem ou não. Eu tive arca de enxoval a partir dos cinco anos de idade, o mais tardar.
Quantos estereótipos e que divertidos eles são!
PROVIMENTO DE COISAS NECESSÁRIAS
ResponderEliminarEra de manhã quando dei com este meu terceiro amo que atrás dele me levou por grande parte da cidade. Passávamos pelas praças onde se vendiam pão e outras provisões. Eu pensava, e além disso desejava, que ele quisesse carregar-me ali com o que se vendia, por ser hora ideal para as pessoas se proverem do necessário; mas tais coisas a muito largo passo ele ultrapassava. "Se calhar nada vê aqui que lhe agrade", dizia eu, "e quererá que o compremos noutro lugar."
Deste modo andámos até darem as onze. Entrou então na igreja maior, eu atrás dele, e muito devotamente o vi ouvir missa e outros ofícios divinos até tudo acabar e as pessoas terem dali abalado. A bom e largo passo estugado começámos a ir por uma rua abaixo. Eu sentia-me com a maior alegria do mundo por ver que não nos tínhamos ocupado a procurar nada para comer. Achei que o meu novo amo devia ser homem de se prover por atacado e teria comida pronta, que a desejava como eu e também necessitava dela.
Anónimo do século XVI e H. de Luna, O LAZARILHO DE TORMES, trad. de Aníbal Fernandes, Lisboa, Sistema Solar, 2014, p. 56.