Então ele soube que tinham dobrado o cabo da boa esperança,
e voltou a pegar-lhe na mão grande e fofa e cobriu-a de beijinhos órfãos,
primeiro o metacarpo áspero, os longos dedos clarividentes, as unhas diáfanas,
e depois o hieróglifo do seu destino na palma suada. Ela não soube como foi que
a sua mão chegou até ao peito dele e tropeçou com alguma coisa que não
conseguiu decifrar. Ele disse-lhe: “É um escapulario”. Ela acariciou-lhe os
pêlos do peito e depois agarrou no matagal todo com os cinco dedos para
arrancar pela raiz. “Com mais força”, disse ele. Ela tentou até onde sabia que
não o magoava e depois foi a sua mão que procurou a mão dele perdida nas
trevas. Mas ele não a deixou entrelaçar-lhe os dedos e agarrou-lhe a mão pelo
pulso e foi-lha conduzindo ao longo do corpo com uma força invisível mas muito bem dirigida, até que ela sentiu o sopro ardente de um animal em carne viva, sem
forma corporal, mas ansioso e arvorado. Ao contrário do que ele imaginou, até
mesmo ao contrario do que ela teria imaginado, não retirou a mão, nem a deixou
inerte onde ele a pôs, e, encomendando-se de corpo e alma à Santíssima Virgem,
apertou os dentes com medo de rir da sua própria loucura, e começou a
identificar pelo tacto o inimigo encabritado, a conhecer o seu tamanho, a força
do seu braço, a extensão das suas asas, assustada com a sua determinação mas
compadecida da sua solidão, fazendo-o seu com uma curiosidade minuciosa que
alguém menos sabedor que o seu marido teria confundido com carícias. Ele apelou
para as suas últimas forças para resistir à vertigem do escrutínio mortal, até
que ela o soltou com uma graça infantil como se o tivesse atirado para o lixo.
- Nunca consegui perceber como é esse aparelho – disse.
Então ele explicou-lhe a sério com o seu método magistral,
enquanto lhe conduzia a mão pelos sítios que ia mencionando e ela deixava-o
levar-lha com uma obediência de aluna exemplar. Ele sugeriu, num momento
propício, que tudo aquilo era mais fácil com a luz acesa. Ia acendê-la, mas ela
deteve-lhe o braço dizendo: “Vejo melhor com as mãos”. Na verdade queria
acender a luz. Mas queria fazê-lo ela, sem que ninguém lho mandasse, e assim
foi. Ele viu-a então em posição fetal, alem de estar coberta pelo lençol, sob a
claridade repentina. Mas viu-a segurar outra vez sem afectações o animal da sua
curiosidade, virou-o do direito e do avesso, observou-o com um interesse que já
começava a parecer mais do que científico, e disse em conclusão: “É tão feio,
tão feio que ainda é mais feio que o das mulheres”. Ele concordou e assinalou
outros inconvenientes mais graves do que a fealdade. Disse: “É como o filho
mais velho: passa-se a vida a trabalhar para ele, a sacrificar tudo por ele, e
na hora da verdade acaba por fazer o que lhe der na real gana”. Ela continuou a
examiná-lo, perguntando para que servia isto e para que servia aquilo e quando
achou que estava bem informada, tomou-lhe o peso com as duas mãos, para
concluir que nem pelo peso valia a pena e deixou-o cair com uma careta de
menosprezo.
- Além do mais, acho que lhe sobram demasiadas coisas –
disse.
Ele ficou perplexo. A proposta original para a sua tese de
licenciatura tinha sido essa: a conveniência de simplificar o organismo humano.
Parecia antiquado, com muitas funções inúteis ou repetidas que foram imprescindíveis
para outras idades do género humano, mas não para a nossa. Sim: podia ser mais
simples e, por essa razão, menos vulnerável. Concluiu: “É uma coisa que só pode
ser feita por Deus, é claro, mas de qualquer maneira seria bom deixá-lo
estabelecido em termos teóricos”. Ela riu-se divertida, de um modo tão natural
que ele aproveitou a ocasião para a abraçar e deu-lhe o primeiro beijo na boca.
Ela correspondeu-lhe e ele continuou a dar-lhe beijos muito suaves nas faces,
no nariz, nas pálpebras, enquanto deslizava a mão por baixo do lençol, e
acariciou-lhe o púbis redondo e ralo: um púbis de japonesa. Ela não lhe afastou
a mão, mas conservou a sua em estado de alerta para o caso de ele avançar mais
um passo.
- Não vamos continuar com a aula de medicina – disse.
- Não – disse ele. – Esta vai ser de amor.
Gabriel Garcia Marquez, O Amor em Tempos de Cólera. Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1987, p. 171-173.
ENCOSTA-TE A MIM
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Vizinha de mim, deixa-me ser o teu quintal
Recebe esta pomba que não está armadilhada
Foi comprada, foi roubada, seja como for
Eu venho do nada porque arrasei o que não queria
Em nome da estrada onde só quero ser feliz
Enrosca-te a mim
Vem desarmar a flor queimada
Vem beijar o homem-bomba
Quero adormecer
Tu do o que eu vi estou a partilhar contigo
e o que não vivi
Um dia hei-de inventar contigo
Sei que não sei às vezes entender o teu olhar
Mas quero-te bem, encosta-te a mim
Encosta-te a mim
Quero-te bem
Encosta-te a mim.
Jorge Palma, "Encosta-te a mim", IN VOO NOCTURNO, Gravado ao vivo no Coliseu dos Recreios, EMI, 2007.
A ONDA
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Da primeira vez era a cidade
Da segunda o cais e a eternidade
Agora eu já sei
Da onda que se ergueu no mar
E das estrelas que esquecemos de contar
O amor se deixa surpreender
Enquanto a noite vem nos envolver
Vou te contar
Os olhos já não podem ver
Coisas que só o coração pode entender
Fundamental é mesmo o amor
É impossível ser feliz sozinho
O resto é mar
É tudo o que eu não sei contar
[...]
Tom Jobim, WAVE