sexta-feira, 25 de abril de 2014

A viagem de Fermina Daza (3). Gabriel Garcia Marquez


Então ele soube que tinham dobrado o cabo da boa esperança, e voltou a pegar-lhe na mão grande e fofa e cobriu-a de beijinhos órfãos, primeiro o metacarpo áspero, os longos dedos clarividentes, as unhas diáfanas, e depois o hieróglifo do seu destino na palma suada. Ela não soube como foi que a sua mão chegou até ao peito dele e tropeçou com alguma coisa que não conseguiu decifrar. Ele disse-lhe: “É um escapulario”. Ela acariciou-lhe os pêlos do peito e depois agarrou no matagal todo com os cinco dedos para arrancar pela raiz. “Com mais força”, disse ele. Ela tentou até onde sabia que não o magoava e depois foi a sua mão que procurou a mão dele perdida nas trevas. Mas ele não a deixou entrelaçar-lhe os dedos e agarrou-lhe a mão pelo pulso e foi-lha conduzindo ao longo do corpo com uma força invisível mas muito bem dirigida, até que ela sentiu o sopro ardente de um animal em carne viva, sem forma corporal, mas ansioso e arvorado. Ao contrário do que ele imaginou, até mesmo ao contrario do que ela teria imaginado, não retirou a mão, nem a deixou inerte onde ele a pôs, e, encomendando-se de corpo e alma à Santíssima Virgem, apertou os dentes com medo de rir da sua própria loucura, e começou a identificar pelo tacto o inimigo encabritado, a conhecer o seu tamanho, a força do seu braço, a extensão das suas asas, assustada com a sua determinação mas compadecida da sua solidão, fazendo-o seu com uma curiosidade minuciosa que alguém menos sabedor que o seu marido teria confundido com carícias. Ele apelou para as suas últimas forças para resistir à vertigem do escrutínio mortal, até que ela o soltou com uma graça infantil como se o tivesse atirado para o lixo.
- Nunca consegui perceber como é esse aparelho – disse.
Então ele explicou-lhe a sério com o seu método magistral, enquanto lhe conduzia a mão pelos sítios que ia mencionando e ela deixava-o levar-lha com uma obediência de aluna exemplar. Ele sugeriu, num momento propício, que tudo aquilo era mais fácil com a luz acesa. Ia acendê-la, mas ela deteve-lhe o braço dizendo: “Vejo melhor com as mãos”. Na verdade queria acender a luz. Mas queria fazê-lo ela, sem que ninguém lho mandasse, e assim foi. Ele viu-a então em posição fetal, alem de estar coberta pelo lençol, sob a claridade repentina. Mas viu-a segurar outra vez sem afectações o animal da sua curiosidade, virou-o do direito e do avesso, observou-o com um interesse que já começava a parecer mais do que científico, e disse em conclusão: “É tão feio, tão feio que ainda é mais feio que o das mulheres”. Ele concordou e assinalou outros inconvenientes mais graves do que a fealdade. Disse: “É como o filho mais velho: passa-se a vida a trabalhar para ele, a sacrificar tudo por ele, e na hora da verdade acaba por fazer o que lhe der na real gana”. Ela continuou a examiná-lo, perguntando para que servia isto e para que servia aquilo e quando achou que estava bem informada, tomou-lhe o peso com as duas mãos, para concluir que nem pelo peso valia a pena e deixou-o cair com uma careta de menosprezo.
- Além do mais, acho que lhe sobram demasiadas coisas – disse.
Ele ficou perplexo. A proposta original para a sua tese de licenciatura tinha sido essa: a conveniência de simplificar o organismo humano. Parecia antiquado, com muitas funções inúteis ou repetidas que foram imprescindíveis para outras idades do género humano, mas não para a nossa. Sim: podia ser mais simples e, por essa razão, menos vulnerável. Concluiu: “É uma coisa que só pode ser feita por Deus, é claro, mas de qualquer maneira seria bom deixá-lo estabelecido em termos teóricos”. Ela riu-se divertida, de um modo tão natural que ele aproveitou a ocasião para a abraçar e deu-lhe o primeiro beijo na boca. Ela correspondeu-lhe e ele continuou a dar-lhe beijos muito suaves nas faces, no nariz, nas pálpebras, enquanto deslizava a mão por baixo do lençol, e acariciou-lhe o púbis redondo e ralo: um púbis de japonesa. Ela não lhe afastou a mão, mas conservou a sua em estado de alerta para o caso de ele avançar mais um passo.
- Não vamos continuar com a aula de medicina – disse.
- Não – disse ele. – Esta vai ser de amor.

Gabriel Garcia Marquez, O Amor em Tempos de Cólera. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987, p. 171-173.

2 comentários:

  1. ENCOSTA-TE A MIM

    [...]
    Vizinha de mim, deixa-me ser o teu quintal
    Recebe esta pomba que não está armadilhada
    Foi comprada, foi roubada, seja como for

    Eu venho do nada porque arrasei o que não queria
    Em nome da estrada onde só quero ser feliz
    Enrosca-te a mim
    Vem desarmar a flor queimada
    Vem beijar o homem-bomba
    Quero adormecer

    Tu do o que eu vi estou a partilhar contigo
    e o que não vivi
    Um dia hei-de inventar contigo
    Sei que não sei às vezes entender o teu olhar
    Mas quero-te bem, encosta-te a mim
    Encosta-te a mim
    Quero-te bem
    Encosta-te a mim.

    Jorge Palma, "Encosta-te a mim", IN VOO NOCTURNO, Gravado ao vivo no Coliseu dos Recreios, EMI, 2007.

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  2. A ONDA

    [...]
    Da primeira vez era a cidade
    Da segunda o cais e a eternidade

    Agora eu já sei
    Da onda que se ergueu no mar
    E das estrelas que esquecemos de contar
    O amor se deixa surpreender
    Enquanto a noite vem nos envolver

    Vou te contar
    Os olhos já não podem ver
    Coisas que só o coração pode entender
    Fundamental é mesmo o amor
    É impossível ser feliz sozinho

    O resto é mar
    É tudo o que eu não sei contar
    [...]
    Tom Jobim, WAVE

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