5. Relações
Tive contactos
esporádicos e superficiais com o círculo político oposicionista de Castelo
Branco. Não posso por isso tentar caracterizá-lo.
Provavelmente estaria centrado em torno das figuras da CDE, que organizara
listas no ano anterior ao da minha chegada a Castelo Branco. O apelido Paulouro
era uma referencia regional. Eu tinha conhecido na Faculdade de Direito, em
1967, um dos membros da família e conhecia de nome o director do Jornal do Fundão, um dos mais conhecidos
jornais locais da época.
Mas não me lembro de ter falado com nenhum Paulouro em 70/71.
Falei uma ou duas vezes com Manuel João Vieira, que integrara as listas CDE de
1969. E conheci aquela que talvez fosse a figura tutelar da CDE de então, o Dr.
Vasco Luís Silva, que
veio a ser Governador Civil do Distrito a seguir ao 25 de Abril. Como muitos
professores que tinham sido proibidos de leccionar, dava explicações.
Penso que tinha ligações ao sector intelectual do PCP, sendo sem dúvida um
membro convicto da cultura neo-realista. Era um homem de modos sóbrios, que
arrastava uma espécie de tristeza no olhar, onde podia ser antecipada o drama
que se abateria brutalmente sobre os seus dias.
A minha condição de professor de passagem por
Castelo Branco – nunca escondi a minha intenção de encontrar, se possível já no
ano lectivo seguinte, colocação mais próxima de Lisboa – não favorecia o
estabelecimento de relacionamentos mais sólidos no meio local. Eu viera de fora
e nada fazia para modificar essa situação. Por outro lado, não me revia
comummente nos temas políticos e culturais do neo-realismo, dos quais divergira
no decurso das opções que fora efectuando entre 1966 e 1969, entre a minha
entrada na Faculdade Direito de Lisboa e a conclusão do bacharelato em
História. Ou seja,entre a declaração de Lennon "We're more popular than Jesus now" (1966) e a
entrada dos tanques soviéticos em Praga (1969).
Entre os alunos, com um grupo heterogéneo
estabeleci, como já referi, um relacionamento mais regular. Evitei
cuidadosamente que o facto pudesse ter consequências objectivas ou subjectivas na
relação professor-aluno. O certo é que não podia deixar de reconstituir em Castelo
Branco um grupo de solidariedade e cumplicidade como sempre tinha acontecido
desde que deixara a minha longínqua e isolada escolaridade aldeã, no final da
década de 50.
Formado por rapazes e algumas raparigas das
turmas do 7º Ano
que leccionava, que fazia a cumplicidade deste grupo? A partilha de alguma
preocupações enunciadas em termos geralmente um pouco vagos sobre o futuro de
Portugal apanhado numa ratoeira entre a modernidade e a guerra colonial. Mas o
que sobretudo unia este grupo era o gosto genuíno pelo jogo: jogávamos futebol,
pingue-pongue, matraquilhos e monopólio, à mímica. Ocasiões de encontro, de disputa, de anotação
cuidadosa de aperfeiçoamentos, numa busca individual de superação. Mais do que
a vitória individual ou colectiva, o objectivo do jogo era a partilha dos
tempos, a convivência
e essa juvenil procura da melhoria performativa.
No grupo de
alunos sobressaía o Luís Silva. Era simultaneamente o mais
maduro e o mais entusiasta. Parecia dotado de uma curiosidade insaciável. Era
um rapaz bonito, de cabelo negro comprido e encaracolado. Sem dúvidas um dos
melhores alunos do Liceu, era, além disso, dotado de uma energia transbordante
e de uma crença inabalável no valor das ideias como condutoras da acção. Filho
único do Dr. Vasco Silva certamente dele recebia exemplo e inspiração. O meu
relacionamento intelectual com o Luís Silva foi mais longe do que com os
outros, levando-o a expor-me dúvidas e inquietações que outros não formulavam
ou não me confidenciavam e que ele próprio talvez não partilhasse com outros
amigos.
No final do ano lectivo, o tempo das despedidas
foi alegre. Quase todos iam prosseguir os estudos, em Coimbra ou em Lisboa e
julgo que encaravam esse facto com mais ânimo ainda depois de terem privado com
um professor que fizera recentemente esse mesmo percurso. Eu regressava a
Lisboa, agora com outro quadro de vida e disposto a retomar os estudos para
conclusão da licenciatura.
Trocámos telefones, dei-lhes o endereço da casa
que alugara em Lisboa e combinámos
encontros.
Nos primeiros dias de Novembro de 1971, pelo fim
da tarde, um desses meus ex-alunos telefonou-me a dar a notícia. O Luís Silva,
agora aluno do primeiro ano do Instituto Superior Técnico, falecera durante a
noite. Uma insuficiência cardíaca, nunca detectada, cortara-lhe a vida em pleno sono.
Edificio no qual funcionava a Assembleia.
ESCREVER MEMÓRIAS
ResponderEliminarEscrever Memórias é género de literatura difícil. Sobretudo quando versam factos da própria vida do autor e de determinado meio, talvez estranho ao vulgo. Para lhes dar interesse e torná-las apetecíveis para todos e para todos compreensíveis, alcançando valorizar até pormenores mínimos que vêm no entanto enfeitar o quadro que se tenta tracejar, ou pôr uma nota que melhor completa um retrato que se apresenta - é preciso saber ver, saber seleccionar, saber criticar, com justiça, com graça, com leveza e até com bondade, com grande cuidado em não vexar quem quer que seja, e ainda, quando se torne indispensável, polvilhar com um pouco de caturrice algum figurão célebre que assim o mereça, proceder enfim, com a possível caridade... E tudo isto carece de ser transmitido numa prosa sem refolhos, simples e correntia, como a palestra de um bom conversador, fazendo viver, com toda a naturalidade, sem maior artifício, as figuras e as cenas que se memoram.
Ora todas estas dificuldades venceste, ou para melhor dizer, todos estes preceitos observaste.
E não fiquei admirado, porque não seria difícil pressentir em ti uma autêntica vocação para memorialista. Para isso nada te falta. Enquanto escutava a leitura das tuas "Memórias", sentia a impressão de ouvir uma bela palestra e não uma leitura; sim, a tua habitual bela palestra, espontânea, fácil, viva, sugestiva, cheia de bom humor, e em que também não falta o tanger, quando a propósito, da nota sentimental, bondosa, enternecedora.
Carta de D. Thomaz d' Almeida Manuel de Vilhena ao autor, IN Thomaz de Mello Breyner, MEMÓRIAS DO PROFESSOR THOMAZ DE MELLO BREYNER, 4.º CONDE DE MAFRA. 1869-1880, I vol., Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1930, Introdução.