segunda-feira, 7 de abril de 2014

Memórias de Castelo Branco (5)


5. Relações
Tive contactos esporádicos e superficiais com o círculo político oposicionista de Castelo Branco. Não posso por isso tentar caracterizá-lo. Provavelmente estaria centrado em torno das figuras da CDE, que organizara listas no ano anterior ao da minha chegada a Castelo Branco. O apelido Paulouro era uma referencia regional. Eu tinha conhecido na Faculdade de Direito, em 1967, um dos membros da família e conhecia de nome o director do Jornal do Fundão, um dos mais conhecidos jornais locais da época. Mas não me lembro de ter falado com nenhum Paulouro em 70/71. Falei uma ou duas vezes com Manuel João Vieira, que integrara as listas CDE de 1969. E conheci aquela que talvez fosse a figura tutelar da CDE de então, o Dr. Vasco Luís Silva, que veio a ser Governador Civil do Distrito a seguir ao 25 de Abril. Como muitos professores que tinham sido proibidos de leccionar, dava explicações. Penso que tinha ligações ao sector intelectual do PCP, sendo sem dúvida um membro convicto da cultura neo-realista. Era um homem de modos sóbrios, que arrastava uma espécie de tristeza no olhar, onde podia ser antecipada o drama que se abateria brutalmente sobre os seus dias.
A minha condição de professor de passagem por Castelo Branco – nunca escondi a minha intenção de encontrar, se possível já no ano lectivo seguinte, colocação mais próxima de Lisboa – não favorecia o estabelecimento de relacionamentos mais sólidos no meio local. Eu viera de fora e nada fazia para modificar essa situação. Por outro lado, não me revia comummente nos temas políticos e culturais do neo-realismo, dos quais divergira no decurso das opções que fora efectuando entre 1966 e 1969, entre a minha entrada na Faculdade Direito de Lisboa e a conclusão do bacharelato em História. Ou seja,entre a declaração de Lennon "We're more popular than Jesus now" (1966) e a entrada dos tanques soviéticos em Praga (1969).
Entre os alunos, com um grupo heterogéneo estabeleci, como já referi, um relacionamento mais regular. Evitei cuidadosamente que o facto pudesse ter consequências objectivas ou subjectivas na relação professor-aluno. O certo é que não podia deixar de reconstituir em Castelo Branco um grupo de solidariedade e cumplicidade como sempre tinha acontecido desde que deixara a minha longínqua e isolada escolaridade aldeã, no final da década de 50.
Formado por rapazes e algumas raparigas das turmas do 7º Ano que leccionava, que fazia a cumplicidade deste grupo? A partilha de alguma preocupações enunciadas em termos geralmente um pouco vagos sobre o futuro de Portugal apanhado numa ratoeira entre a modernidade e a guerra colonial. Mas o que sobretudo unia este grupo era o gosto genuíno pelo jogo: jogávamos futebol, pingue-pongue, matraquilhos e monopólio, à mica. Ocasiões de encontro, de disputa, de anotação cuidadosa de aperfeiçoamentos, numa busca individual de superação. Mais do que a vitória individual ou colectiva, o objectivo do jogo era a partilha dos tempos, a convivência e essa juvenil procura da melhoria performativa.
No grupo de alunos sobressaía o Luís Silva. Era simultaneamente o mais maduro e o mais entusiasta. Parecia dotado de uma curiosidade insaciável. Era um rapaz bonito, de cabelo negro comprido e encaracolado. Sem dúvidas um dos melhores alunos do Liceu, era, além disso, dotado de uma energia transbordante e de uma crença inabalável no valor das ideias como condutoras da acção. Filho único do Dr. Vasco Silva certamente dele recebia exemplo e inspiração. O meu relacionamento intelectual com o Luís Silva foi mais longe do que com os outros, levando-o a expor-me dúvidas e inquietações que outros não formulavam ou não me confidenciavam e que ele próprio talvez não partilhasse com outros amigos.
No final do ano lectivo, o tempo das despedidas foi alegre. Quase todos iam prosseguir os estudos, em Coimbra ou em Lisboa e julgo que encaravam esse facto com mais ânimo ainda depois de terem privado com um professor que fizera recentemente esse mesmo percurso. Eu regressava a Lisboa, agora com outro quadro de vida e disposto a retomar os estudos para conclusão da licenciatura.
Trocámos telefones, dei-lhes o endereço da casa que alugara em Lisboa e combinámos encontros.
Nos primeiros dias de Novembro de 1971, pelo fim da tarde, um desses meus ex-alunos telefonou-me a dar a notícia. O Luís Silva, agora aluno do primeiro ano do Instituto Superior Técnico, falecera durante a noite. Uma insuficiência cardíaca, nunca detectada, cortara-lhe a vida em pleno sono.


Edificio no qual funcionava a Assembleia.

1 comentário:

  1. ESCREVER MEMÓRIAS

    Escrever Memórias é género de literatura difícil. Sobretudo quando versam factos da própria vida do autor e de determinado meio, talvez estranho ao vulgo. Para lhes dar interesse e torná-las apetecíveis para todos e para todos compreensíveis, alcançando valorizar até pormenores mínimos que vêm no entanto enfeitar o quadro que se tenta tracejar, ou pôr uma nota que melhor completa um retrato que se apresenta - é preciso saber ver, saber seleccionar, saber criticar, com justiça, com graça, com leveza e até com bondade, com grande cuidado em não vexar quem quer que seja, e ainda, quando se torne indispensável, polvilhar com um pouco de caturrice algum figurão célebre que assim o mereça, proceder enfim, com a possível caridade... E tudo isto carece de ser transmitido numa prosa sem refolhos, simples e correntia, como a palestra de um bom conversador, fazendo viver, com toda a naturalidade, sem maior artifício, as figuras e as cenas que se memoram.
    Ora todas estas dificuldades venceste, ou para melhor dizer, todos estes preceitos observaste.
    E não fiquei admirado, porque não seria difícil pressentir em ti uma autêntica vocação para memorialista. Para isso nada te falta. Enquanto escutava a leitura das tuas "Memórias", sentia a impressão de ouvir uma bela palestra e não uma leitura; sim, a tua habitual bela palestra, espontânea, fácil, viva, sugestiva, cheia de bom humor, e em que também não falta o tanger, quando a propósito, da nota sentimental, bondosa, enternecedora.

    Carta de D. Thomaz d' Almeida Manuel de Vilhena ao autor, IN Thomaz de Mello Breyner, MEMÓRIAS DO PROFESSOR THOMAZ DE MELLO BREYNER, 4.º CONDE DE MAFRA. 1869-1880, I vol., Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1930, Introdução.

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