Nota prévia
Iniciei a minha vida profissional como docente em Castelo Branco, no Liceu Nun’Álvares, há quarenta e três anos. Permaneci então na cidade cerca de sete meses. Depois disso, passei por Castelo Branco em três ou quatro ocasiões, em serviço, mas não me detive. Chegou agora a oportunidade de visitar a cidade, num fim de semana, e confrontar o olhar de hoje com o que a memória conservou.
Iniciei a minha vida profissional como docente em Castelo Branco, no Liceu Nun’Álvares, há quarenta e três anos. Permaneci então na cidade cerca de sete meses. Depois disso, passei por Castelo Branco em três ou quatro ocasiões, em serviço, mas não me detive. Chegou agora a oportunidade de visitar a cidade, num fim de semana, e confrontar o olhar de hoje com o que a memória conservou.
1.Chegada (Dezembro de 1970)
Em Setembro de 1970, concluído o bacharelato em
História na Faculdade de Letras de Lisboa, lancei-me à procura de emprego. Até aí tinha tido
algumas ocupações e tarefas remuneradas – explicações a estudantes do
secundário, realização de inquéritos,
traduções – contributos significativos para fazer face às despesas de alojamento em Lisboa, mas
agora era chegado o tempo do exercício de uma profissão. Havia o fascínio do
jornalismo, comum a amigos chegados (Cáceres Monteiro, Almeida Martins, Miguel
Serras Pereira – que tentei, apresentando candidaturas ao Século,
à Flama, à Vida
Mundial e à
”Associated Press”.
E havia o ensino, ao qual a habilitação académica conduzia. Para o Século, o
José Carlos Ary dos Santos, escreveu uma carta de recomendação, mas sem
sucesso. Na Flama, onde
me apresentei com o Cáceres e o Almeida Martins, o chefe de redacção, Beça Múrias
mandou-me fazer, a título de experiência,
uma reportagem sobre o rio Tejo, para a qual me senti miseravelmente
impreparado. Na Vida Mundial ofereceram-me o estatuto que já tinha antes, o de
tradutor de notícias de
agencia. Na Associated Press propuseram-me o mesmo,
depois de efectuar um teste bem sucedido, mas acenando-me com a possibilidade
de passados os dois primeiros meses de adaptação, passar a ter
responsabilidades redactoriais. Ainda aceitei esta oferta, e comecei a
trabalhar, mas entretanto chegou uma resposta do Ministério da Educação que me
pareceu irresistível. Optei por ela, e nessa opção, sem o adivinhar na altura,
foi uma vida profissional que se jogou.
De facto, eu tinha enviado uma carta para o
Ministério da Educação, referindo o facto de só ter obtido as habilitações
mínimas para o ensino em Setembro e por isso não ter podido concorrer na época
normal, e manifestando disponibilidade para leccionar um horário ainda não preenchido no ensino
preparatório ou secundário.
Recebi duas respostas positivas, em simultâneo,
das duas direcções-gerais do Ministério: do ciclo preparatório, propondo-me um
horário nas Caldas da Rainha; do ensino secundário, propondo-me um horário no
Liceu Nacional de Castelo Branco. Foi esta que aceitei. A carta da Direcção
Geral continha uma guia para levantar um bilhete de comboio Santa Apolónia –
Castelo Branco e referia apenas que se tratava de um horário completo, ou seja
22 horas lectivas.
Castelo Branco não fazia parte do reduzido lote
de cidades de que tinha conhecimento directo. Lembrava-me apenas que, em miúdo,
visitara o Fundão e Alpedrinha, localidades do distrito de Castelo Branco,
acompanhando uma viagem memorável do meu avô à terra onde vivera até aos dezoito anos.
Tomei o comboio no dia 12 de Dezembro, tendo em
atenção que a carta indicava para apresentação o dia 14, uma Segunda-feira,
caso estivesse interessado no lugar. O meu primeiro contacto com a linha da
Beira foi elucidativo sobre a distancia a que doravante estaria dos amigos e companheiros
de Lisboa. Cheguei ao destino mais de cinco horas depois.
Instalei-me na pensão “Caravela”, cujo letreiro
me chamou a atenção numa das esquinas visíveis no jardim principal da cidade.
No dia seguinte, procurei o Liceu e apresentei-me ao Reitor.
Catanas Diogo, assim se chamava o reitor do
Liceu Nacional de Castelo Branco era uma figura magra, de modos rígidos e
secos. Vestia de preto. Olhou para mim, por detrás dos óculos, estendeu-me a
mão e logo a seguir uma grossa caderneta verde. Não escondeu a decepção que a
minha presença lhe provocara. Comentou: - "Antigamente os professores
apresentavam-se de gravata”. A camisola de gola alta, apropriada ao frio da
época e da região, que eu envergava tomou-a como sinal de rebeldia. Fiquei
calado. "Quando começo?" – perguntei. "Amanhã" – retorquiu, dando a conversa
por encerrada.
De regresso ao quarto da pensão, avaliei pela
primeira vez a extensão do desafio. O horário que me destinavam incluía duas
turmas de 7º ano
(ano terminal do secundário) de Filosofia, quatro turmas de 3º ano de História
e duas turmas de Organização Política e Administrativa da Nação, de 6º ano.
Fiquei literalmente atordoado. As turmas de história eram de miúdos de 12 e 13
anos e eu não tinha qualquer experiência
de lidar com adolescentes. Mas o problema maior era sem dúvida o do ensino da
Filosofia. A minha preparação
nessa área era constituída exclusivamente pela minha
própria passagem enquanto aluno pelo ensino liceal e a frequência de uma cadeira de Introdução à Filosofia no primeiro ano do Curso de
História.
Enquanto as Faculdades de Letras tinham
procedido no final da década de 50 à
separação das licenciaturas de História e de Filosofia, no
ensino secundário continuava a funcionar o grupo de histórico-filosóficas,
independentemente da formação original dos professores.
O horário que me coubera tinha sido atribuído
inicialmente à Professora
Adelaide Salvado - entretanto chamada para frequentar o estágio em Lisboa -, a qual deixara no liceu uma
aura de competência
profissional e científica. Só assim se explicava, aliás, que lhe tivesse sido
atribuída tarefa docente tão
difícil: os anos iniciais do ensino da História e os anos
terminais e de exame do ensino da Filosofia. Motivo suplementar, pois, de
apreensão da minha parte.
No dia seguinte apresentei-me no Liceu para
cumprir o horário. A minha predecessora já tinha indicado os manuais e dado
alguma matéria. Limitei-me a reiterar as decisões anteriores e averiguar a que
ponto da matéria os alunos haviam chegado. As aulas do primeiro período escolar
estavam prestes a terminar. Os conselhos de turmas que se realizariam de
seguida para dar as notas estavam autorizados a não atribuir qualquer
classificação aos alunos que tinham transitado da Professora Adelaide Salvado
para mim. Sosseguei os estudantes quanto a esse facto, mas preveni-os de que
estávamos obrigados a cumprir todo o programa e de que a nota final seria
calculada pela média dos dois períodos seguintes.
Percebi e sensação
que a minha chegada causara. Nos meus 21 anos, eu era o professor mais jovem de
todo o Liceu, cujo corpo docente era maioritariamente constituído por
professores possuidores da larga experiência de muitos anos de carreira. Descobri entre os meus
colegas dois com os quais, embora mais velhos, podia partilhar interesses
intelectuais e a condição de forasteiro: um professor de História, Joaquim
Artur Marques de Carvalho, e outro de Filosofia, António Melo, ambos do Porto.
As férias de Natal iniciar-se-iam dali a poucos
dias. Tomei parte nos conselhos de turma, averiguei condições logísticas
com vista a uma instalação futura menos precária e participei num jantar para
que fui convidado a fim de conhecer um poeta neo-realista que na altura se
encontrava em Castelo Branco, José Ferreira Monte (pseudónimo de José
Ferreira Moreira da Câmara, nascido em 1922 e falecido em 1985).
A 18 de Dezembro parti de Castelo Branco para
Lisboa, disposto a adquirir bibliografia e preparar aulas para enfrentar a
tarefa cuja dimensão me pareceu excessivamente exigente.
Na bagagem trazia agora uma prenda de natal para
o meu Avô e para o meu Pai. Não tinha dúvidas de que seria bem apreciada: um
queijo curado de Castelo Branco. Pequeno é certo – até onde o meu magro orçamento podia
chegar – mas o mais apreciado e lembrado produto de quem ali nascera, entre as
Serras da Gardunha e da Estrela.
Escola Nun'Álvares (antigo Liceu Nacional de Castelo Branco). Entrada.
Traseiras do edifício
Gosto. Gosto de vida!
ResponderEliminarOS QUEIJOS!
ResponderEliminarO queijo podia ser de cabra ou de ovelha. O primeiro era consumido em fresco na época de maior produção e curado em quase todo o ano. Este queijo de cabra foi, durante largo período, apenas produzido na sua versão estreme, sem mistura de leite de ovelha, ou seja, o chamado "queijo picante". Quanto ao queijo mestiço, ou "queijo amarelo", de leites de cabra e de ovelha, penso que só começou a generalizar-se a sua produção já bem dentro do segundo quartel do século XX, passando a constituir como que um EX-LIBRIS do queijo de Castelo Branco. O queijo de ovelha era o mais valioso e não entrava habitualmente em todas as casas.
Manuel A. de Morais Martins, CASTELO BRANCO. UM SÉCULO DE VIDA DA CIDADE, vol. II, Castelo Branco, Câmara Municipal de Castelo Branco, 2010, p. 39.
Nota ao texto citado: o queijo que o meu avô (nascido na década de 90 do século XIX) denominava "Castelo Branco" era o tal queijo picante, que também exalava um odor característico. O queijo que adquiri no Natal de 1970 era o queijo curado de Castelo Branco. De facto o meu avô olhou-o sem o reconhecer...
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