quinta-feira, 3 de abril de 2014

Memórias de Castelo Branco (1)

Nota prévia
Iniciei a minha vida profissional como docente em Castelo Branco, no Liceu Nun’Álvares, há quarenta e três anos. Permaneci então na cidade cerca de sete meses. Depois disso, passei por Castelo Branco em três ou quatro ocasiões, em serviço, mas não me detive. Chegou agora a oportunidade de visitar a cidade, num fim de semana, e confrontar o olhar de hoje com o que a memória conservou.

1.Chegada (Dezembro de 1970)
Em Setembro de 1970, concluído o bacharelato em História na Faculdade de Letras de Lisboa, lancei-me à procura de emprego. Até aí tinha tido algumas ocupações e tarefas remuneradas – explicações a estudantes do secundário, realização de inquéritos, traduções – contributos significativos para fazer face às despesas de alojamento em Lisboa, mas agora era chegado o tempo do exercício de uma profissão. Havia o fascínio do jornalismo, comum a amigos chegados (Cáceres Monteiro, Almeida Martins, Miguel Serras Pereira – que tentei, apresentando candidaturas  ao Século, à Flama, à Vida Mundial e à ”Associated Press”. E havia o ensino, ao qual a habilitação académica conduzia. Para o Século, o José Carlos Ary dos Santos, escreveu uma carta de recomendação, mas sem sucesso. Na Flama, onde me apresentei com o Cáceres e o Almeida Martins, o chefe de redacção, Beça Múrias mandou-me fazer, a título de experiência, uma reportagem sobre o rio Tejo, para a qual me senti miseravelmente impreparado. Na Vida Mundial ofereceram-me o estatuto que já tinha antes, o de tradutor de notícias de agencia. Na Associated Press propuseram-me o mesmo, depois de efectuar um teste bem sucedido, mas acenando-me com a possibilidade de passados os dois primeiros meses de adaptação, passar a ter responsabilidades redactoriais. Ainda aceitei esta oferta, e comecei a trabalhar, mas entretanto chegou uma resposta do Ministério da Educação que me pareceu irresistível. Optei por ela, e nessa opção, sem o adivinhar na altura, foi uma vida profissional que se jogou.
De facto, eu tinha enviado uma carta para o Ministério da Educação, referindo o facto de só ter obtido as habilitações mínimas para o ensino em Setembro e por isso não ter podido concorrer na época normal, e manifestando disponibilidade para leccionar um horário ainda não preenchido no ensino preparatório ou secundário.
Recebi duas respostas positivas, em simultâneo, das duas direcções-gerais do Ministério: do ciclo preparatório, propondo-me um horário nas Caldas da Rainha; do ensino secundário, propondo-me um horário no Liceu Nacional de Castelo Branco. Foi esta que aceitei. A carta da Direcção Geral continha uma guia para levantar um bilhete de comboio Santa Apolónia – Castelo Branco e referia apenas que se tratava de um horário completo, ou seja 22 horas lectivas.
Castelo Branco não fazia parte do reduzido lote de cidades de que tinha conhecimento directo. Lembrava-me apenas que, em miúdo, visitara o Fundão e Alpedrinha, localidades do distrito de Castelo Branco, acompanhando uma viagem memorável do meu avô à terra onde vivera até aos dezoito anos.
Tomei o comboio no dia 12 de Dezembro, tendo em atenção que a carta indicava para apresentação o dia 14, uma Segunda-feira, caso estivesse interessado no lugar. O meu primeiro contacto com a linha da Beira foi elucidativo sobre a distancia a que doravante estaria dos amigos e companheiros de Lisboa. Cheguei ao destino mais de cinco horas depois.
Instalei-me na pensão “Caravela”, cujo letreiro me chamou a atenção numa das esquinas visíveis no jardim principal da cidade. No dia seguinte, procurei o Liceu e apresentei-me ao Reitor.
Catanas Diogo, assim se chamava o reitor do Liceu Nacional de Castelo Branco era uma figura magra, de modos rígidos e secos. Vestia de preto. Olhou para mim, por detrás dos óculos, estendeu-me a mão e logo a seguir uma grossa caderneta verde. Não escondeu a decepção que a minha presença lhe provocara. Comentou: - "Antigamente os professores apresentavam-se de gravata”. A camisola de gola alta, apropriada ao frio da época e da região, que eu envergava tomou-a como sinal de rebeldia. Fiquei calado. "Quando começo?" – perguntei. "Amanhã" – retorquiu, dando a conversa por encerrada.
De regresso ao quarto da pensão, avaliei pela primeira vez a extensão do desafio. O horário que me destinavam incluía duas turmas de 7º ano (ano terminal do secundário) de Filosofia, quatro turmas de 3º ano de História e duas turmas de Organização Política e Administrativa da Nação, de 6º ano. Fiquei literalmente atordoado. As turmas de história eram de miúdos de 12 e 13 anos e eu não tinha qualquer experiência de lidar com adolescentes. Mas o problema maior era sem dúvida o do ensino da Filosofia. A minha preparação nessa área era constituída exclusivamente pela minha própria passagem enquanto aluno pelo ensino liceal e a frequência de uma cadeira de Introdução à Filosofia no primeiro ano do Curso de História.
Enquanto as Faculdades de Letras tinham procedido no final da década de 50 à separação das licenciaturas de História e de Filosofia, no ensino secundário continuava a funcionar o grupo de histórico-filosóficas, independentemente da formação original dos professores.
O horário que me coubera tinha sido atribuído inicialmente à Professora Adelaide Salvado - entretanto chamada para frequentar o estágio em Lisboa -, a qual deixara no liceu uma aura de competência profissional e científica. Só assim se explicava, aliás, que lhe tivesse sido atribuída tarefa docente tão difícil: os anos iniciais do ensino da História e os anos terminais e de exame do ensino da Filosofia. Motivo suplementar, pois, de apreensão da minha parte.
No dia seguinte apresentei-me no Liceu para cumprir o horário. A minha predecessora já tinha indicado os manuais e dado alguma matéria. Limitei-me a reiterar as decisões anteriores e averiguar a que ponto da matéria os alunos haviam chegado. As aulas do primeiro período escolar estavam prestes a terminar. Os conselhos de turmas que se realizariam de seguida para dar as notas estavam autorizados a não atribuir qualquer classificação aos alunos que tinham transitado da Professora Adelaide Salvado para mim. Sosseguei os estudantes quanto a esse facto, mas preveni-os de que estávamos obrigados a cumprir todo o programa e de que a nota final seria calculada pela média dos dois períodos seguintes.
Percebi e sensação que a minha chegada causara. Nos meus 21 anos, eu era o professor mais jovem de todo o Liceu, cujo corpo docente era maioritariamente constituído por professores possuidores da larga experiência de muitos anos de carreira. Descobri entre os meus colegas dois com os quais, embora mais velhos, podia partilhar interesses intelectuais e a condição de forasteiro: um professor de História, Joaquim Artur Marques de Carvalho, e outro de Filosofia, António Melo, ambos do Porto.
As férias de Natal iniciar-se-iam dali a poucos dias. Tomei parte nos conselhos de turma, averiguei condições logísticas com vista a uma instalação futura menos precária e participei num jantar para que fui convidado a fim de conhecer um poeta neo-realista que na altura se encontrava em Castelo Branco, José Ferreira Monte (pseudónimo de José Ferreira Moreira da Câmara, nascido em 1922 e falecido em 1985).
A 18 de Dezembro parti de Castelo Branco para Lisboa, disposto a adquirir bibliografia e preparar aulas para enfrentar a tarefa cuja dimensão me pareceu excessivamente exigente.
Na bagagem trazia agora uma prenda de natal para o meu Avô e para o meu Pai. Não tinha dúvidas de que seria bem apreciada: um queijo curado de Castelo Branco. Pequeno é certo – até onde o meu magro orçamento podia chegar – mas o mais apreciado e lembrado produto de quem ali nascera, entre as Serras da Gardunha e da Estrela.



Escola Nun'Álvares (antigo Liceu Nacional de Castelo Branco). Entrada.
Traseiras do edifício

3 comentários:

  1. OS QUEIJOS!

    O queijo podia ser de cabra ou de ovelha. O primeiro era consumido em fresco na época de maior produção e curado em quase todo o ano. Este queijo de cabra foi, durante largo período, apenas produzido na sua versão estreme, sem mistura de leite de ovelha, ou seja, o chamado "queijo picante". Quanto ao queijo mestiço, ou "queijo amarelo", de leites de cabra e de ovelha, penso que só começou a generalizar-se a sua produção já bem dentro do segundo quartel do século XX, passando a constituir como que um EX-LIBRIS do queijo de Castelo Branco. O queijo de ovelha era o mais valioso e não entrava habitualmente em todas as casas.

    Manuel A. de Morais Martins, CASTELO BRANCO. UM SÉCULO DE VIDA DA CIDADE, vol. II, Castelo Branco, Câmara Municipal de Castelo Branco, 2010, p. 39.

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  2. Nota ao texto citado: o queijo que o meu avô (nascido na década de 90 do século XIX) denominava "Castelo Branco" era o tal queijo picante, que também exalava um odor característico. O queijo que adquiri no Natal de 1970 era o queijo curado de Castelo Branco. De facto o meu avô olhou-o sem o reconhecer...

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