terça-feira, 8 de abril de 2014

Memórias de Castelo Branco (6)


6. Regresso a Lisboa
Antes de sair de Castelo Branco, resolvi despedir-me do Reitor. Mau grado a frieza quase hostil com que me recebera e o incidente gerado com a tentativa de forçar todo o corpo docente a comparecer perante o Presidente da República, as nossas relações tinham-se amenizado no final do ano. Foi uma despedida cordial, em que trocámos até algumas graças. Quando me preparava para sair do seu gabinete, interpelou-me: - tem perspectivas de colocação em Lisboa? -  Não estou certo, respondi. - Terá sempre aqui um lugar, se as coisas por qualquer motivo não lhe correrem bem, disse então. Fiquei surpreendido e agradado.
Mas eu queria muito voltar a Lisboa. A distancia a que ficava de Castelo Branco era terrível. Saindo desta cidade no Sábado por volta das 12h30 (tinha aulas ao Sábado de manhã), chegava a Santa Apolónia ao fim da tarde. Regressava no dia seguinte, Domingo, saindo de Santa Apolónia por volta das 21 e chegando a Castelo Branco já de madrugada. Duas viagens longas e incómodas, e de duração sempre imprevisível, que deixavam entre si pouco mais de 24 horas. Tempo insuficiente para manter relacionamentos intelectuais e afectivos, viver a cidade de que gostava, ir às livrarias e aos cafés, ao teatro, ao cinema, a exposições, deambular pelas ruas. Tinha ainda que concluir o 4º ano do Curso, sem o que não me poderia inscrever no seminário que dava acesso à elaboração da tese e conclusão da licenciatura, daí resultando mais constrangimento aos meus tempos livres.
Com a criação dos bacharelatos decidida em 1968 pelo Ministro José Hermano Saraiva, todos os que, como, eu tinham concluído o 2º ano do Curso, ficaram na insólita situação de terem já efectuado cadeiras que passaram a pertencer aos planos de estudos do 4º ano. Assim sendo, eu pudera inscrever-me em 1970/1971 em salvo erro apenas duas cadeiras, Numismática e Paleografia e Diplomática, as quais frequentei no regime de voluntário, uma vez que não podia assistir às aulas. Devo dizer que a inscrição era fundamental também por um motivo crucial: obter o adiamento militar concedido a quem provasse encontrar-se a frequentar um curso superior nos cinco anos posteriores ao ano que perfizera 20 anos.
Os meses em que permaneci em Castelo Branco foram, nestas condições, devastadores para o meu círculo de amigos e de solidariedades pessoais e intelectuais. A distância interrompeu abruptamente relações que não mais foram reatadas, cortou laços e desvaneceu memórias intensas e fortes de camaradagem e partilha.
Em Lisboa, o mês de Agosto de 1971, pareceu-me mais deserto do que nunca. Ocupado em equipar a casa que com L. tinha alugado, não fui sequer às Caldas passar mais do que um fugaz fim de semana. Sem saber se e quando teria colocação, a gestão do pequeno pecúlio amealhado em Castelo Branco impunha uma severa restrição de gastos quotidianos. Voltei às traduções, com a ajuda do António Reis que procurei no Barreiro. Mas, curiosamente, a hipótese do jornalismo que tanto me atraíra um ano antes, nem sequer se colocou. A experiência de Castelo Branco fez-me reconhecer que ensinar era verdadeiramente o que eu queria fazer. Esperaria por isso que as "colocações" me ditassem onde o poderia fazer. Em Setembro, recebi a resposta: teria um horário na Escola Preparatória Manuel da Maia, em Campo de Ourique. Apresentei-me e comecei de imediato a preparar e dar aulas. E uma semana depois, tal como em Dezembro do ano anterior, chegou-me outro horário. Desta vez, no Liceu do Padre António Vieira, em Alvalade.


Avenida que conduz à estação e onde se localiza o antigo Liceu

1 comentário:

  1. A CADEIRA DE BUNHO

    Vínhamos, tu e os filhos, rumando à capital pela demorada linha da Beira Baixa. Nesses primeiros dias de Outubro, fazia ainda calor dentro do compartimento exíguo, mas não consentias nem uma nesga aberta na janela, não nos entrasse pelos olhos dentro uma faúlha perdida, ou pela roupa abaixo a fuligem da máquina a carvão. Chegado à capital dias antes, o Pai havia de ter recebido a camioneta de cargas e descargas pelo meio do dia e destinado, ainda que provisoriamente, a colocação da mobília, agora tão pouca para tantas divisões quantas puderas contar pelo telefone.
    Descidos do táxi, passámos o portão já o sol se punha. Estremunhados das noites de despedidas e madrugadas de mudanças, esbraseados do calor sofrido durante a viagem e perdidos no mundo inteiramente novo que nos invadira vindo das avenidas da cidade, olhámos, intimidados o edifício construído no início do século. Nos três andares do corpo central rebrilhavam à luz do poente, em ocres nacarados, as vidraças dos muitos janelões.
    Tu avançaste e, atrás de ti, passámos o murete e acolhemo-nos à quietude amável das árvores. As copas ainda tímidas amarelavam, mas resistiam nesse Outono seco e sem vento, abrigando os milhares de pardais e andorinhões com cujo coro, ensurdecedor ao fim das tardes, aprenderias a conviver sem angústia pelos anos adiante.
    À esquerda, abria-se uma porta, estreita, que dava acesso à vertigem ascensional dos cinco lances de escada. Atrás do Pai, foste subindo. E consideravas, à direita e à esquerda, a altura das janelas, das portas, das paredes. Em cima, estacaste perante o corredor interminável, as doze portas, as janelas altíssimas. Atónita, escrutinaste a dimensão das paredes e do tecto, a sujidade entranhada no chão de tábuas corridas. Apoiada no corrimão da escada, avistaste a um canto do patamar, ainda por entrar em casa, a cadeirinha de bunho que usavas para costurar. Descaíste e, sentada nela, declaraste terminante:
    - Pai! ( "Pai" e "Mãe", mais do que os próprios nomes) Eu nesta casa não fico!
    Mas havias de ficar. Por muitos anos. Mesmo depois de teres ido embora.

    IN RETRATO DE MÃE COM OBJECTOS, a publicar

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