Nem na primeira noite de mar bravo, nem nas seguintes de navegação tranquila, nem nunca na sua muito longa vida matrimonial ocorreram os actos de barbárie temidos por Fermina Daza. A primeira, apesar do tamanho do barco e dos luxos do camarote, foi uma repetição horrível da escuna de Riohacha, e o marido foi um médico solícito que não dormiu nem um instante para a consolar, que era a única coisa que um médico demasiado eminente sabia fazer contra o enjoo. Mas a tempestade amainou ao terceiro dia , depois do porto de La Guayra, e já nessa altura tinham estado tanto tempo juntos, haviam conversado tanto que se sentiam amigos de longa data. Na quarta noite, quando ambos reataram os seus hábitos normais, o doutor Juvenal Urbino surpreendeu-se com o facto de a sua jovem esposa não rezar antes de dormir. Ela foi sincera com ele: a hipocrisia das freiras tinha-lhe criado uma aversão contra os rituais, mas a sua fé estava intacta e tinha aprendido a conservá-la em silencio. Disse: “Prefiro entender-me directamente com Deus”. Ele compreendeu as suas razões e desde aí cada um praticou a sua religião à sua maneira. Tinham noivado breve, mas bastante informal para a época, pois o doutor Urbino visitava-a em casa, sem serem vigiados, todas os dias ao fim da tarde. Ela não lhe teria permitido nem que ele lhe tocasse na ponta dos dedos sem a bênção episcopal, mas ele também não o tinha tentado. Foi na primeira noite de mar calmo, já na cama mas ainda vestidos, que ele iniciou as primeiras carícias, e fê-lo com tanto cuidado que a ela lhe pareceu natural a sugestão para que vestisse a camisa de dormir. Foi trocar de roupa na casa de banho, mas antes apagou as luzes do camarote e, quando saiu com a camisa de noite, calafetou com trapos as frinchas da porta para deixar a cama na mais completa escuridão. Enquanto o fazia, disse de bom humor:
- Que queres, doutor? É a primeira vez que durmo com um desconhecido.
Gabriel Garcia Marquez, O Amor em Tempos de Cólera. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987, p. 169-170.
A VIAGEM INICIÁTICA DE SALOMÉ
ResponderEliminarGabriel ficou e demorou-se. Logo nos primeiros contactos percebeu nela uma virtude essencial ou transcendente que o empolgou e comoveu até ao âmago. Abordaram-se sem formalidades nem pudores desnecessários, como se obedecessem a um comando: ela, porém, com timidez e antecipada nostalgia, vendo nele apenas o freguês que se demora um pouco e parte, mas este com um halo de simpatia e inquietação no olhar que a fez desejá-lo como nunca desejara homem nenhum; e ele, como se ignorasse até onde poderia segui-la ou precedê-la, e esforçando-se por julgá-la, com dó, a meretriz de acaso a quem se paga e se esquece; mas atraído por algo mais que o desejo, e liberto do enleio habitual na presença da fêmea mercenária e desconhecida.
Ainda na fronteira da intimidade, quando ambos tacteavam nas trevas subjectivas procurando encontrar-se e conjugar-se, receosos de não saber acolher ou dar-se integralmente, ao vê-lo na plenitude da virilidade, pálido, magro e vigoroso, ela não pôde conter um grito de pasmo:
- Como tu és forte! e como és bem feito! - disse, de joelhos, com uma exaltação quase dramática - Talhado como um atleta. Quem te vê vestido não diria...
Esse brado espontâneo da mulher que ele supunha experiente, influiu talvez decisivamente no curso das suas relações: embora o ferisse de ciúme, o confronto com memórias profissionais deu-lhe uma ânsia jovial de superar o cortejo de rivais que lhe entrevia no passado. Empenhou-se então, sem inibições, na tarefa de a desejar, provocar e satisfazer melhor. Aquele encontro de circunstância, quando enfim se revelaram mutuamente, transfigurou-se num frenesim nupcial.
Ela recebeu-o de olhos fechados e dentes apertados, pálida e fremente como a virgem que teme e suplica. Depois, no impulso com que se lhe abandonou, no sorvo ansioso e fluido da carne, nos suspiros e gemidos estrangulados, na surpresa e no êxtase maravilhado, em tudo revelou ter em si um tesouro intacto, uma frescura de mulher contida, paradoxalmente mal iniciada, o tumulto de uma natureza que irrompe ao contacto do novo ou inexperimentado, e que ela não quis ou não pôde disfarçar.
José Rodrigues Miguéis, O MILAGRE SEGUNDO SALOMÉ, Lisboa, Ed. Estampa, 1982, pp. 558-559.