quarta-feira, 2 de abril de 2014

Um mundo diferente do seu país. Vicente Blasco Ibañez

A sua viagem à Itália, na peregrinação papal, foi o único facto que alterou a monotonia da sua existência. Guiado pelo cónego, visitou mais igrejas do que museus. Teatros, só viu dois, aproveitando-se da negligência que as peripécias da viagem causavam no carácter austero do seu guia. Passavam indiferentes pelas célebres obras artísticas dos templos e detinham-se a venerar qualquer relíquia acreditada por absurdos milagres. Mas, ainda assim, Rafael pôde ver, confusamente e como que de passagem, um mundo diferente do seu país, onde fatalmente havia de arrastar-se a sua existência. Sentiu o roçar da mesma vida de prazer e de paixão que absorvia nos livros como se fosse um vinho embriagador, e ainda que de longe, admirou em Milão a dourada e aventureira boémia dos cantores; em  Roma, o esplendor de uma aristocracia senhorial e artista, em perpétua rivalidade com a de Paris e a de Londres, e em Florença, a elegância inglesa, emigrada em procura do sol, passeando os seus canotiers de palha, as cabeleiras de ouro das misses e o seu chilrear de pássaro pelos jardins onde meditava o sombrio poeta, e onde Boccacio narrava os seus contos alegres para afugentar o medo à peste.
Aquela viagem, rápida como uma visão cinematográfica, deixando em Rafael uma confusão de nomes, de edifícios, de quadros e de cidades, serviu para dar aos seus pensamentos mais amplitude e leveza, para fazer maior ainda o fosso que o isolava dentro da sua vida banal.

Vicente Blasco Ibañez, Por entre Laranjeiras. 3a ed. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves; Lisboa, Livraria Bertrand, s/d.[1ª edição: 1900], p. 41

2 comentários:

  1. Equiparar a viagem à leitura (ou a leitura à viagem) é algo que me agrada, de um modo geral.
    Desconfio que a existência está condenada à banalidade se não se viajar ou não se ler.

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  2. VIVER A VIAGEM E VIVER A VIDA

    E o Cavaleiro maravilhado com tudo quanto ouvia e via resolveu demorar-se algum tempo mais naquela cidade.
    De dia percorria as ruas e as praças e visitava os conventos, os palácios, as bibliotecas e as igrejas. À noite ouvia as sábias conversas dos amigos de Averardo.
    E passado um mês disse-lhe o banqueiro:
    - Associa-te aos meus negócios e estabelece a tua vida em Florença. Há no mundo cidades mais poderosas e mais ricas, mas é aqui que existe a maior ciência. Se queres estudar Matemática e Geometria fica em Florença. Se queres aprender a regra do número de oiro fica em Florença. Se queres saber como se movem os astros no céu fica em Florença. Se queres compreender a escultura, a pintura, a arquitectura e a poesia fica em Florença.
    Mas o Cavaleiro sorriu e respondeu:
    - Agradeço-te o teu convite. Desde que aqui estou todos os dias me espanto e me maravilho com aquilo que vejo, oiço, e aprendo. Mas lá longe, mo meu país do Norte, os meus filhos, a minha mulher e os meus criados estão à minha espera. Quero passar com eles o próximo Natal como lhes prometi. Dentro de três dias terei de partir.
    Então Averardo deu-lhe uma carta de recomendação para um rico comerciante da Flandres, seu cliente e amigo.
    E três dias depois o Cavaleiro deixou Florença.

    Sophia de Mello Breyner, O CAVALEIRO DA DINAMARCA, Porto, Livraria Figueirinhas, 1983, pp. 41-42.

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