O doutor Juvenal Urbino sentiu-a deslizar junto a ele como
um bichinho assustado, tentando afastar-se tanto quanto possível, num beliche
onde era difícil estarem dois sem se tocarem. Pegou-lhe na mão, fria e crispada
de terror, entrelaçou-lhe os dedos, e quase como num sussurro começou a
contar-lhe as suas recordações de outras viagens por mar. Ela estava novamente
tensa, porque, ao voltar à cama, deu conta que ele se despira completamente
enquanto ela estava na casa de banho, e isto reavivou-lhe o pânico do passo
seguinte. Mas o passo seguinte demorou várias horas, pois o doutor Urbino
continuou a falar muito devagar, enquanto se ia apoderando milímetro a
milímetro da confiança do seu corpo. Falou-lhe de Paris, do amor de Paris, dos
namorados de Paris que se beijavam na rua, nos transportes públicos, nos
terraços floridos dos cafés abertos ao hálito de fogo e aos acordeões lânguidos
do Verão e que faziam amor de pé nos cais do Sena sem que ninguém os
incomodasse. Enquanto falava na sombra, acariciou-lhe a curva do colo com as
pontas dos dedos, acariciou-lhe a penugem sedosa dos braços, o ventre evasivo,
e quando sentiu que a tensão tinha cedido fez uma primeira tentativa para lhe
levantar a camisa de dormir, mas ela impediu-o com um impulso típico do seu
carácter. Disse: “Sei fazer isso sozinha”. Tirou-a, com efeito, e depois ficou
tão imóvel que o doutor Urbino teria pensado que já não estava ali se não fosse
o calor solarengo do seu corpo nas trevas.
Passado um bocado voltou a pegar-lhe na mão e então sentiu-a
morna e solta, mas ainda húmida de um orvalho terno. Ficaram outro bocado
calados e imóveis, ele à espreita da ocasião para o passo seguinte, e ela à
espera dele sem saber donde, enquanto a escuridão se ia dilatando com a sua
respiração cada vez mais intensa. Ele largou-a então e deu um salto no vazio:
humedeceu com a língua a ponta do dedo anelar, tocou-lhe ao de leve no mamilo
desprevenido e ela sentiu uma descarga de morte como se lhe tivessem tocado num
nervo vivo. Ficou contente por estar às escuras para que ele não visse o rubor intenso que a estremeceu até às raízes do crânio. “Calma”, disse-lhe ele, muito
sereno. “Não te esqueças que os conheço”. Sentiu-a sorrir e a sua voz foi doce
e nova nas trevas.
- Lembro-me muito bem – disse – e ainda não me passou a
raiva.
Então ele soube que tinham dobrado o cabo da boa esperança
[...]
Gabriel Garcia Marquez, O Amor em Tempos de Cólera. Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1987, p. 170-171.
PARAÍSO
ResponderEliminarDeixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça que esteja estilhaçada
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o Mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
David Mourão-Ferreira, INFINITO PESSOAL OU A ARTE DE AMAR, Lisboa, Guimarães Editores, 1962, p. 31.
NÚPCIAS
ResponderEliminarDa cerimónia religiosa, celebrada numa capela esconsa do Bombarral, recordas o frio da manhã luminosa de Março e as dores nos pés. Embora sentada durante o sermão sem fim à vista, o sapato esquerdo roía a pele acima do calcanhar e abria ferida. "Dádiva, renúncia, dores e penitência, não era essa a condição humana no feminino, segundo o pregador?
Da refeição familiar ficou-te a memória aveludada de um creme de aves na secura da boca e, depois de cortado o bolo branco, o travo das gotas de champanhe que te forçaste a beber mas não chegaram a desatar o novelo que te embrulhava por dentro.
Pela tarde, em "traje de saída", partiste a caminho do todo desconhecido que não podias mais que recear. O castanho escuríssimo do vestido destacava a palidez do rosto, o ouro velho dos cabelos ondeados e a linha nítida do teu corpo por estrear. A viagem até Lisboa demorava, felizmente. Sentados lado a lado, pela primeira vez a sós por entre gente, calaram a estranheza da intimidade e adiaram, na paisagem do Oeste, as névoas do futuro mais que perfeito. Depois do comboio para o Estoril, deixadas as malas na pensão de que logo-logo saíram, foram caminhando devagar pelas áleas do parque, a conjugarem os passos no modo e no tempo de serem agora outras as pessoas:o marido e a sua mulher.
Da tarde descida chegou a nortada. Era preciso jantar, dizia ele. Era preciso adiar, pensavas tu. E escapavas à mudez da noite junto à batida do mar. O restaurante de um hotel sobre a praia pareceu a extravagância desculpada. Sentada à beira da janela, cravavas o olhar no esmalte fulgente que a Lua arrastava sobre as águas. Mais tarde sentiste poisar, fugaz, na tua, a mão amada, a mão temida.
Regressados ao quarto, entraste na casa-de-banho. Sentada no rebordo instável da banheira, consideraste ficar ali. Mas fizeste como devias. Despiste-te às escuras e voltaste ao quarto, na túnica de seda crua bordada. Junto da janela aberta à maresia ele esperava, ainda vestido. Transida, consentiste que te erguesse do chão e que, sentado na margem do leito, deixasse correr a noite cantando baixo até o cansaço vencer. Manhã clara dormias ainda, abandonada a esse colo de ternura.
E de perdão.
M.S.C., RETRATO DE MÃE COM OBJECTOS, a publicar.