sexta-feira, 4 de abril de 2014

Memórias de Castelo Branco (2)

2. Professor no liceu
As férias desse Natal de 1970 dediquei-as pois ao estudo do programa de Filosofia do 7º ano do liceu. Recuperei o compêndio pelo qual estudara, o famoso “Bonifácio” de má memória – ao qual, contra minha vontade, o meu nome andou sempre associado – comprei o do “Saraiva” e revolvi velhos apontamentos anti-pedagógicamente ditados pela Dr.ª Deolinda Ribeiro. Mas a salvação veio de um excelente manual utilizado no Liceu Francês e que descobri numa das livrarias do Campo Grande. Adquiri também as antologias de textos de Filosofia e Psicologia organizadas pelos Professores Joel Serrão e Borges de Macedo. Com esta bibliografia, devidamente lida e passada a esquemas e notas, senti-me enfim em condições de enfrentar a tarefa de preparar jovens de 17 e 18 anos para o exame de filosofia, convicto de que estaria mais habilitado para esse efeito do que os professores que me tinham cabido em sorte 5 anos antes...
Os meus pais quiseram acompanhar-me, no regresso a Castelo Branco A  minha mãe, em particular, fazia questão de verificar as condições que eu deveria ajustar para uma estadia prolongada. Feitas as contas ao montante total das viagens, concluíram pela vantagem de alugar um carro de praça. Fecharam o negócio com um motorista conhecido e lá partimos do Carvalhal Benfeito, Caldas da Rainha, num dos primeiros dias de um Janeiro escuro e chuvoso. A partir de Abrantes, à chuva juntou-se o frio e, mais à frente, os primeiros flocos de neve. Em Vila Velha de Rodão, a altura de neve na estrada era já tão significativa que o nosso condutor se declarou incapaz de prosseguir. “Paremos enquanto é tempo; mais à frente podemos ficar empanados e ter de dormir no carro” – disse.
Em Vila Velha de Ródão, soubemos que os comboios para o nosso destino ainda funcionavam. Foi assim que, já de noite, chegámos a Castelo Branco. Cansados, ansiosos, cheios de frio, carregando malas de livros e de roupa. Dirigimo-nos à Pensão Império, a unidade hoteleira com a qual pré-contratara um aluguer de quarto com refeições e tratamento de roupa por 1500$00.
O meu vencimento ia ser de cerca de 4700$00 por mês. Os professores provisórios eram então contratados de Outubro a Junho, ou seja por 9 meses (no meu caso de meados de Dezembro a Junho). Os subsídios de férias e natal não constavam dos direitos dos funcionários públicos. Em contrapartida, os seus salários não pagavam impostos.
A minha mãe “aprovou” as instalações. Na Império, eu dispunha de um quarto com janela e uma mesa de trabalho e um pequeno lavatório (a casa de banho, com duche e sanitários, encontrava-se no corredor, servindo 5 quartos). A comida era abundante e de boa qualidade. Como o meu contrato era ao mês e eu saía algumas vezes ao fim de semana, era compensado podendo convidar colegas a almoçar ou jantar comigo sem qualquer pagamento.
Depressa estabeleci uma rotina em Castelo Branco. As manhãs de Segunda a Sábado eram ocupadas com aulas. Depois de almoço ficava na pensão a trabalhar. Ao fim da tarde saía para praticar algum desporto. Fiz-me sócio da Assembleia, um clube das elites locais onde se podia jogar ténis de mesa. Na maior das vezes era com alunos que jogava. Em determinada altura fui convidado para me filiar no Benfica e Castelo Branco e por algum tempo integrei a sua equipa de competição. Depois de jantar, voltava a sair para tomar um café com colegas. O Turismo (situado no Hotel com o mesmo nome) e o Arcádia eram os meus cafés preferidos. Os colegas que aí vinham conversar eram poucos: o já aludido Joaquim Artur Marques de Carvalho, um professor de Educação Física, conhecido por "El Bigodón", um professor de Ciências cujo nome não recordo, o maestro Carlos Gama, professor de Canto Coral. Do Joaquim Artur sentia-me mais próximo, tanto em razão da formação em História, como de outros interesses intelectuais. Acontecia que terminado o café, regressando os colegas às suas casas, era  procurado por alunos que me vinham acompanhar à Pensão aproveitando para conversar sobre os mais variados assuntos. De facto eu sentia-me muitas vezes mais próximo daqueles jovens do que dos meus colegas e embora julgasse saber que a camaradagem entre professores e alunos era motivo de apreensão por parte de alguns professores do liceu, nunca fui admoestado ou advertido pessoalmente pelo facto. Também é certo que nunca senti em qualquer das duas turmas de 7 º ano – uma masculina outra feminina – qualquer ameaça ao clima de trabalho e aprendizagem motivado por essa cumplicidade conquistada fora da escola. Nos fins de semana em que fiquei em Castelo Branco, aceitei convites para participar em piqueniques e outras realizações de convívio organizados pelos estudantes. Com as raparigas o relacionamento foi bem menos próximo e intenso. Aparentemente preferiam a Pastelaria Belar, onde os rapazes as procuravam. Mesmo assim, recordo-me que por vezes apareciam no café Turismo ou na Pensão Império para me colocaram dúvidas ou me pedirem opinião sobre leituras.
Apesar do conservadorismo dominante no Liceu, só uma vez senti a pressão institucional dele resultante. Tratou-se de uma ocasião determinada: uma visita do Presidente da República à cidade. Aos professores foi distribuída uma carta circular assinada pelo Reitor convidando-os para uma sessão de cumprimentos que iria ter lugar na ocasião – um Domingo – no Governo Civil. Pedia-se que confirmassem a presença. Dois dias antes da data prevista, o Reitor deve ter verificado que o número de professores disponíveis para cumprimentar o Almirante era decepcionante. Tomou então uma medida que a todos colheu de surpresa: convocou, ao abrigo dos poderes que a Lei lhe conferia, uma reunião do Conselho Escolar para o dia, local e hora em que Américo Tomás estaria no Governo Civil. Como se sabe, a falta de um professor a um Conselho Escolar só podia ser justificada com atestado médico.


Pastelaria Belar (preferida pelas alunas e suas mães)
Edificio do antigo Governo Civil de Castelo Branco

11 comentários:

  1. O COMBOIO

    O percurso da linha da Beira Baixa entre Abrantes e a Covilhã, inaugurado em 1891, veio a tornar-se um relevante meio de transporte de longo curso para pessoas e bens, quer para as maiores distâncias, quer para as deslocações regionais entre povoações que lhe tivessem acesso.
    Paralelamente, constituiu um sector de oferta de emprego, que abriu a várias gerações a possibilidade de procurar actividades laborais para lá dos limites do concelho e dos horizontes apertados da agricultura de poucos recursos.
    O troço da linha no concelho de Vila Velha de Ródão [abrindo-a até Castelo Branco] representou uma construção particularmente complexa, compreendendo nada menos do que 2 túneis, na rocha das Portas de Ródão, e 23 pontes que fazem a linha galgar outras tantas embocaduras de ribeiras e linhas de água.

    Maria José Martins, QUADROS DA VIDA RURAL NO TERRITÓRIO DE RÓDÃO. NO TEMPO DA IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA, Vila Velha de Ródão, edição da Câmara Municipal, 2012, p. 26.

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  2. Sim, a Maria José tem razão. Os meios de comunicação e transporte tanto trazem como levam. Por outro lado, as pontes são obras e engenharia, sem dúvida, e suplícios para os passageiros. Por causa delas, raramente se conseguia fazer a distância Lisboa-Castelo Branco em menos de 6 horas, nos anos 70 do século passado...

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  3. Caros anónimos comentadores, tão entendidos em temas de história albicastrense: algum de vós me sabe esclarecer sobre a origem e razão da denominação Nun'Alvares aplicada ao Liceu?

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  4. Sem ser "entendida em temas de história albicastrense" e nem sequer pertencer à categoria dos "anónimos comentadores", ouso uma tese explicativa pela qual desde já me penalizo por demasiado singela:
    - Será que a denominação Nun'Álvares se deve ao facto de ser esse o nome da rua em que se situa o liceu em causa?
    Mesmo assim subsiste outra questão que, como é bom de calcular, também eu deixo aos "anónimos comentadores, tão entendidos em temas de história albicastrense", incomensuravelmente mais habilitados do que eu:
    - E porque é que a rua se chama assim?
    Será tão-só uma questão de patriotismo?
    Será?

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  5. SATISFAZENDO A CURIOSIDADE DE UM VIAJANTE...

    Criado aquando dos demais liceus de capital de distrito pelo decreto de Passos Manuel de 1836, o "Liceu Nacional de Castelo Branco" só em 1848 lavrou o definitivo "Auto de Constituição" (Fundo do Ministério do Reino), ocupando, dada a escassez da procura, instalações provisórias, para transitar, algum tempo depois, para o edifício da Misericórdia Velha e, em 1863, para o Palacete do Largo da Sé.
    Após a implantação da República (1911), instala-se no que fora o Paço Episcopal, dispondo agora da largueza dos espaços exteriores e da nobreza de escadarias, corredores, salas, salões e biblioteca... Passa a chamar-se "Liceu Nacional Central de Castelo Branco".
    Porém, em Conselho Escolar havido em 1918 - talvez que já finda a I Guerra - e por proposta "patriótica" do Dr. Augusto Sousa Tavares, ao que cremos então reitor, é escolhido Nuno Álvares como patrono da escola, passando esta a ser designada por "Liceu Nacional Central Nuno Álvares". Extintos os "Liceus Centrais", a partir de 1936 passará a ser o "Liceu Nacional Nuno Álvares".
    O aumento da população escolar impôs a existência de um novo e muito amplo edifício, projectado e construído entre 1941 e 1945, que viria a situar-se na então chamada "a Avenida", aberta recentemente até à estação da C.P., e talvez também denominada "Nuno Álvares" em razão da escola que ali vinha nascendo.
    A transferência de pessoas e de serviços do Paço para a nova casa teve lugar no final do ano lectivo de 1945-46. À inauguração, em 2 de Maio de 46, presidiu o então reitor e as festividades, prolongaram-se por três dias,

    IN ANC./ASC., MEMÓRIAS FAMILIARES. 1889/1954.

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  6. Seria bizarro um Liceu - instituição "pesada" como era no regime anterior ao 25 de Abril - adoptar o nome de uma rua. De qualquer forma subsiste a incógnita quanto à razão do nome. Qual a relação de Nuno Álvares com Castelo Branco? Obrigado. Julguei que o novo liceu fosse mais recente. Em 1970 eu não diria que já tinha vinte e cinco anos.

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  7. Pronto! Tudo está esclarecido! Que alívio!...
    Também eu estava convencida de que o nome do liceu haveria de ter antecedido o da rua, mas achei graça em aderir àquele preceito matemático de que a ordem dos factores é arbitrária, etc., etc.

    Mas acertei no "puro patriotismo", essa é que é essa.
    O que não é grande vantagem, confesso.
    Não havia como não acertar.

    O certo é que "a coisa" fez escola e em Tomar também havia um colégio Nun' Álvares para onde eram enviados, quase sistematicamente, os meus colegas mal comportados no tempo em que eu frequentava o Externato Ramalho Ortigão, nas Caldas da Rainha. Lembro-me de alguns.

    Talvez os vastos domínios de Nuno Álvares incluíssem essa zona do país. Quem sabe?

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  8. Como tudo neste mundo, e nesta vida, a questão do anonimato é muito volátil e relativa. Note-se que o "viajante", a quem é satisfeita a curiosidade, estava bem ciente do albicastrense conhecimento de quem comenta com esse distintíssimo estatuto: o de anónimo.

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  9. RAZÕES DE UM NOME

    Segundo alguns cronistas, Nuno Álvares terá nascido, não na Flor da Rosa, mas em Cernache do Bonjardim, concelho de Sertã, distrito de Castelo Branco.
    Por outro lado, a sua beatificação data, precisamente, de 23 de Janeiro de 1918 (papado de Bento XV).

    Mais um Anónimo, de sua graça.

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  10. Os anónimos têm-se multiplicado ultimamente no comentário a este blogue. É uma honra que gostaria de saber merecer e conservar.

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  11. Pensando bem, é natural que os anónimos se multipliquem. E ainda bem. O anonimato tem-se vindo a tornar uma marca deste blogue, distintiva, que o valoriza. Achei graça a ser "Anónimo, de sua graça". De facto, pode ser um nome (graça) como qualquer outro. Porque não?

    Nos nossos dias tudo se faz por contaminação. E mais ainda na net. Reconheço a humildade inerente ao estatuto de anónimo. E simpatizo com ele. Daí chamar-lhe distintíssimo.

    Admiro o intenso trabalho de busca bibliográfica que está implícito nos comentários anónimos, e só agora compreendo melhor o fenómeno que é afinal da responsabilidade de várias pessoas. A todas saúdo. E agradeço. Tenho aprendido por aqui muito com elas.

    PS: a disputa pelo lugar de nascimento das grandes figuras da história é uma constante, não é? Nuno Álvares não é excepção.

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