“De modo que lhe vim fazer uma súplica”, disse Lorenzo Daza.
Molhou a ponta do charuto na aguardente de anis, deu-lhe uma chupadela sem fumo
e concluiu com a voz embargada:
- Afaste-se do nosso caminho.
Florentino Ariza tinha-o escutado entre goles de aguardente
de anis, e tão absorto estava na revelação do passado de Fermina Daza [filha de
Lorenzo Daza] que nem sequer se perguntou que diria quando tivesse que falar.
Mas, chegado o momento, compenetrou-se de que fosse o que fosse que dissesse
comprometeria o seu destino.
- O senhor falou com ela? – perguntou.
- Isso não lhe diz respeito – respondeu Lorenzo Daza.
- Pergunto-lho porque me parece que quem tem de decidir é
ela.
- Nada disso – disse Lorenzo Daza. – Isto é um assunto de homens
e resolve-se entre homens.
O tom tinha-se tornado ameaçador e um cliente de uma mesa
próxima voltou-se para os observar. Florentino Ariza falou com a voz mais ténue
mas com a determinação mais imperiosa de que foi capaz:
- De todos os modos – disse – não lhe posso dar qualquer
resposta sem saber o que ela pensa. Seria uma traição.
Então Lorenzo Daza encostou-se para trás na cadeira com as
pálpebras avermelhadas e húmidas, e o olho esquerdo girou na sua órbita e ficou
torcido para fora. Também baixou a voz.
- Não me obrigue a dar-lhe um tiro – disse.
Florentino Ariza sentiu que as entranhas se lhe enchiam de
uma espuma fria. Mas a voz não lhe tremeu porque também ele se sentiu iluminado
pelo Espírito Santo-
- Dê-mo – disse, com a mão sobre o peito. – Não há maior
glória que morrer de amor.
Loren Daza teve de olhá-lo de lado, como os papagaios, para
o encontrar com o olho torcido. Não pronunciou as três palavras, pois mais
pareceu que as cuspiu sílaba a sílaba:
- Fi-lho-da-pu-ta!
Naquela mesma semana levou a filha para a viagem do
esquecimento. Não lhe dando qualquer explicação, irrompeu pelo seu quarto com
os bigodes sujos pela ira misturada com tabaco mastigado e ordenou-lhe que
fizesse as malas. Ela perguntou-lhe onde iam e ele respondeu: “Para a morte”.
Assustada com aquela resposta que se parecia de mais com a verdade, decidiu
fazer-lhe frente com a mesma coragem dos dias anteriores, mas ele puxou do
cinto com fivela de cobre maciço e deu uma chicotada na mesa que ressoou por
toda a casa como o disparo de uma espingarda. Fermina Daza conhecia muito bem
até onde podia ir a sua própria força e quando a devia utilizar, de modo que
fez uma mala com duas esteiras e uma rede, e meteu em dois grandes baús todas
as suas roupas, com a certeza de que esta era ma viagem sem regresso. Antes de
se vestir, fechou-se na casa de banho e conseguiu escrever a Florentino Ariza
uma breve carta de despedida num folha arrancada do rolo de papel higiénico.
Depois cortou pela nuca uma trança completa com a tesoura de podar, enrolou-a
dentro de um estojo de veludo bordado a fio de ouro e enviou-o juntamente com a
carta.
Gabriel Garcia Marquez, O Amor em Tempos de Cólera. Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1987, p. 93-94.
O Amor em Tempos de Cólera é o livro mais intenso de Gabriel Garcia Marquez. Escrito já depois de ter recebido o prémio Nobel. Baseou-se no caso de amor dos seus pais, segundo julgo saber. O amor e a morte sempre tão próximos, como é próprio do registo trágico de que este belíssimo excerto é exemplo.
ResponderEliminarNa net circulam muitas frases do autor agora falecido. Uma delas diz-nos: "O único arrependimento que eu vou ter de morrer é se não for por amor." Morrer por amor é o destino de quem viveu, assim, como ele, escrevendo: "Quando não escrevo, morro. Quando escrevo também."
De entre as frases de Garcia Marquez que circulam por aí, há uma particularmente interessante que diz:
ResponderEliminar"Amo-te não por quem tu és, mas por quem sou quando estou contigo."
DE MORTE MATADA
ResponderEliminarNo dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5.30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava uma mata de figueiras-bravas, onde caía uma chuva miúda e branda, e por instantes foi feliz no sono, mas ao acordar sentiu-se todo borrado de caca de pássaros. "Sonhava sempre com árvores", disse-me a mãe, Plácida Linero, recordando 27 anos depois os pormenores daquela segunda-feira ingrata. "Na semana anterior tinha sonhado que ia sozinho num avião de papel de estanho que voava sem tropeçar por entre as amendoeiras", disse-me. Tinha reputação bastante bem ganha de intérprete certeira dos sonhos alheios, desde que lhos contassem em jejum, mas não descobrira qualquer augúrio aziago nesses dois sonhos do filho, nem nos restantes sonhos com árvores que ele lhe contara nas manhãs que precederam a sua morte.
Santiago Nasar também não reconheceu o presságio. Dormira pouco e mal, sem despir a roupa, e acordou com dores de cabeça e com um sedimento de estribo de cobre na boca, e interpretou-os como estragos naturais da farra de casamento que se tinha prolongado até depois da meia-noite.
Gabriel García Márquez, CRÓNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA, Trad. de Fernando Assis Pacheco, Lisboa, O Jornal, 1981, pp. 7-8.