Há cem anos [106, tomando como referencia 2014], a 9 de Janeiro de 1908, Simone de Beauvoir nascia numa vivenda do Boulevard Raspail, a artéria ainda meio camponesa de Paris em crescimento da Belle Époque. Puro produto da burguesia e da pequena nobreza, ninguém poderia prever o percurso espantoso desta jovem católica bem comportada. Ela teria sido o que o seu meio dela esperava - se não tivesse acontecido que a Grande Guerra alterou o jogo e precipitou financeiramente Georges de Beauvoir na classe média, isto é, na plebe, para este dandy aristocrata. A bela vivenda rematada por frontão triangular acima do Dôme foi substituída por um apartamento decente mas mais exíguo na rua de Rennes. Esta mudança representou um recuo social que transformaria, numa dezena de anos, Mademoiselle Bertrand de Beauvoir em Castor, trabalhador e viajante.
Antes da viagem geográfica, houve a viagem interior, o que determinou esta existência singular. A viagem não tende necessariamente para os países exóticos, pode antes do mais desenrolar-se em si própria, no seio da sua própria cidade. Antes de descobrir o mundo, Simone de Beauvoir descobriu a sua cidade que na sua infância e adolescência se limitava à Rive Gauche e ao XVIème arrondissement. Até nos seus primeiros tempos de estudante, fazia um caminho estritamente traçado pela sua mãe. O seu primo Jacques, o grande amor infeliz da sua adolescência, fê-la descobrir lugares desconhecidos na sua própria vizinhança; a experiência de equipas sociais permitiu-lhe aventurar-se no Este parisiense operário e popular de que a sua classe conservadora e reaccionária a teria querido proteger. A viagem beauvoiriana é polimorfa e inscreve-se numa opção de vida que faz apelo a um verdadeiro sistema filosófico fundado ma emancipação, na liberdade, na autenticidade. Faz igualmente apelo a uma curiosidade intelectual e a uma vontade de saber e de conhecer que são as bases primeiras da filosofia. Longe das teorias, a filosofia beuavoiriana é uma filosofia da experiência, das sensações e da descoberta de outro, seja onde for que ele se encontre.
Éric Levéel, "Introduction". Simone de Beauvoir. Tout Connaître du Monde. Colecção Voyager Avec... Paris, La Quinzaine Littéraire, 2008, p. 9
É a vida (própria) uma viagem? Que lugar para a origem familiar? Para a infelicidade dos amores adolescentes? Para o confronto entre a viagem exterior e a vida interior?
ResponderEliminarAinda há poucos dias, noutro contexto argumentativo deste blogue, citei Walter Benjamin. Agora cito uma vez mais: "As coisas da nossa vida interior não têm, por natureza, esse carácter privado, sem alternativa. Só o adquirem depois de se terem reduzido as possibilidades e os factos exteriores assimilados à nossa experiência."
Algo desse género se operou em Simone de Beauvoir. Tantos foram os acontecimentos exteriores significativos assimilados à sua experiência, à sua vida interior. Que depois condicionou a sua própria vida. Ou antes, lhe deu uma outra dimensão e amplitude.
Muito interessante esta viagem. Quantas as possibilidades numa vida!
Simone de Beauvoir, que provocação! Resisto hoje,...
ResponderEliminar"/.../Comecei a rir de mim mesma enquanto atravessava a praça da República com o maçarote do romance [Ciranda de Pedra] na tradução do francês canadense. Envelope pesado, não? Impressionante como o pensamento pesa naquela hora da pesagem no aeroporto. E se deixasse o envelope com o seu conteúdo ali esquecido num dos bancos do jardim? Ainda assim, arrisquei, vamos apostar? Levo o livro até o hotel e pronto, melhor ainda se o casal não estiver. Imaginá-lo esquecido numa poltrona era menos deprimente do que deixá-lo ali no banco de pedra da praça.
Alguns dias depois, a carta de Simone de Beauvoir. Veio num papel todo quadriculado, o curioso papel que me fez pensar nos antigos cadernos de aritmética da minha infância e onde eu deixava cada número dentro de seu quadradinho – mas não era mesmo extraordinário? O papel disciplinado e a letra tão rebelde, difícil, num estiramento de libertação no papel com as fronteiras dos quadradinhos azuis. Quer dizer que me enganei? Não só tinha levado o livro, mas confessava, gostou do livro, ah, gostou sim, lamentava apenas que essa não fosse uma tradução no francês parisiense.
Meu gato veio miando, queria mais leite. Enchi a tigela até a borda. Era um amado gato sem raça nem caça e por isso o que fiz na sua cabeça solicitante não foi uma carícia, mas um agrado./.../
Lygia Fagundes Telles. Papel quadriculado. In: Durante aquele estranho chá: perdidos e achados. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. pp. 37-38.
The least one can say is that the enactment of thruth requires the mask of decaption and concealment, almost exactly as we learn from the "Odyssey". The one significant practical difference between Homer and Plato is that Odysseus wishes to return to the tranquil life of the city and family, whereas the Socratic eros can be satisfied by neither. But the consequence of this difference is that Odysseus reveals his identity at the end of his adventures. There is, however, no end to the Socratic adventure, and as Nietzsche understood perfectly, the philosopher never relinquishes his masks.
ResponderEliminarStanlei Rosen, citado por J. Lenore Wright, The Philosopher´s I: Autobiography and the Search for the Self
Não mais me deitar no feno perfumado ou deslizar na neve deserta.
ResponderEliminarOnde me encontro exatamente?
O que me surpreende é a impressão de não ter envelhecido, embora eu esteja instalada na velhice.
O tempo é irrealizável.
Provisoriamente o tempo parou para mim.
Provisoriamente.
Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro.
O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar.
Portanto, ao meu passado, eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo.
Hoje, que espaço deixa o meu passado para a minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. Não sou escrava dele.
O que eu sempre quis foi comunicar unicamente da maneira mais direta, o sabor da minha vida. Unicamente o sabor da minha vida.
Acredito que o consegui fazer.
Vivi num mundo de homens, guardando em mim o melhor da minha feminilidade.
Não desejei e nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.
~
Simone de Beauvoir
ALCARAVÃo
ResponderEliminarEmbora?
Ainda não!
Foste tu, vento de Leste!
No alento que me deste
trouxeste hora de migração...
"Em 1927 ou 1928, portanto um ou dois anos antes da sua morte, o meu pai tirou de uma gaveta uma dúzia de folhas manuscritas, desse formato mais largo do que comprido que era também o dos rascunhos de Proust, mas que já não se encontra, parece-me, no comércio de hoje. Tratava-se do primeiro capítulo de um romance começado à volta de 1904, e que ele não tinha continuado. À parte uma tradução e alguns poemas, era a única obra literária por ele empreendida. Um homem de sociedade, a quem ele chamava Georges de..., sem dúvida com uns trinta anos de idade, partia para a Suiça com a rapariga jovem com quem casara nessa mesma manhã em Versailles. Durante a narrativa, Michel tinha inadvertidamente mudado o seu destino, fazendo-os passar a noite em Colónia. A jovem afligia-se por estar pela primeira vez separada da sua mãe; o marido, que acabava, não sem alívio, de cortar com uma amante, pensava agora nela com tristeza e doçura. A sua muito jovem companheira de viagem enternecia Georges pela frescura ingénua: pensava que ele próprio lhe ia, num minuto, fazer perder nessa noite essa qualidade frágil, tornando-a uma mulher como as outras. A boa educação um pouco constrangida, as atenções timidamente ternas dessas duas pessoas recentemente ligadas para toda a vida e que se encontravam pela primeira vez sozinhas no seu compartimento reservado, eram bem dadas, como bem dada era também a escolha um pouco embaraçosa de um quarto com uma só cama num hotel de Colónia. Georges, deixando a sua mulher preparar-se para a noite, metia por desfastio conversa na sala de fumo com o criado. Uma meia hora mais tarde, evitando o elevador com medo de ser submetido ao olhar perscrutador do rapaz que o manejava, subia a escada, entrava no quarto banhado pela fraca luz de um candeeiro de mesa-de-cabeceira, e, tirando as suas roupas peça a peça, cumpria com uma mistura de impaciência e de desilusão esses gestos demasiadas vezes feitos noutros sítios com mulheres de passagem, desejando outra coisa, sem saber muito bem o quê.
Fiquei seduzida pela justeza de tom desta narrativa sem literatura inútil."
Marguerite Yourcenar, MEMÓRIAS. SOUVENIRS PIEUX, Lisboa, Difel, 1989, pp.241-242.