Poderia esboçar aqui um paralelo entre o turista e o etnólogo. Pertencem ambos à parte do mundo mais favorecida, a que é capaz de organizar viagens de diversão ou de estudo a terras alheias. Nada disto seria motivo de escândalo se todos os homens pudessem ser turistas ou etnólogos, se a mobilidade de uns não fosse um luxo enquanto a mobilidade dos outros é um destino ou uma fatalidade. Não haveria escândalo se todos os homens indiferenciadamente fossem espectadores de si próprios. E este escândalo vale para a etnologia. Há etnólogos japoneses em África, mas não há etnólogos africanos no Japão. A etnologia que aqui me interessa dirigir-se-á, todavia, no futuro, cada vez menos para os país exóticos porque o exotismo está moribundo e porque, em ultima análise, o exotismo não constitui indubitavelmente o objecto da etnologia. A etnologia sobreviverá. Sobreviverá a si própria.
Quanto aos turistas, nunca foram tão numerosos. Estamos na época do turismo de massa. Em resumo, poderemos dizer que as classes altas e médias dos países ricos viajam cada vez mais para fora das suas fronteiras. Os países do Sul, por seu turno, vêem no turismo um recurso financeiro e encorajam o seu desenvolvimento, apesar de os beneficiários directos desse turismo serem na maioria das vezes organizações e indivíduos que pertencem aos países desenvolvidos. Desta perspectiva, a nossa época caracteriza-se por um contraste marcante e trágico, porque os turistas procuram voluntariamente países donde partem emigrantes em condições difíceis e por vezes em perigo de vida. Estes dois movimentos de sentido contrário são um dos símbolos possíveis da globalização liberal que, sabemo-lo bem, não promove de igual modo as formas de circulação.
Comparando o etnólogo com o turista, queria tentar mostrar a traço grosso, por contraste, a originalidade da posição do etnólogo, sem reduzir por outro lado o turista à caricatura fácil, porque ele é muitas vezes realmente caricatural, mas não se reduz, enquanto indivíduo, à imagem que dá de si próprio.
O que o etnólogo tradicional (entendo por etnólogo tradicional o que parte para estudar as sociedades que se lhe apresentam como exóticas) partilha com o turista actual, é o facto de ir para fora, de se deslocalizar. Mas ele sempre se distingiu e se distingue em dois aspectos: viaja sozinho e fica muito tempo. Claro, ele parte para viver com e estudar aqueles junto e quem se dirige, e essa poderia constituir a diferença principal relativamente ao turista. Mas não podemos recusar a alguns turistas, raros sem dúvida e em todo o caso minoritários, a curiosidade, o desejo de observar e de aprender. O que verdadeiramente distingue o etnólogo é o método: a observação sistemática, solitária e prolongada.
Aprofundando a questão, há entre ambos uma outra diferença, simultaneamente mais radical e mais subtil.
O turista, nas versões mais recentes e mais luxuosas da actividade turística, quer garantir conforto físico e tranquilidade psicológica, mesmo quando tem alma de um viajante que se vê como aventureiro. Consome o exotismo, a areia, o mar, o sol e as paisagens (para não falar de outros eventuais tipos de consumo), mas está na sua casa, mesmo quando está fora. Tudo se conjuga para que assim seja: os companheiros, os comentários que trocam entre si, o conforto dos lugares, o carácter estereotipado das cadeias hoteleiras, os filmes que faz para mais tarde os visionar, após o regresso, a brevidade da estadia ou do périplo. No limite, fica em sua casa ou perto de sua casa e organiza-se de forma a reduzir os outros a uma imagem: basta-lhe ligar a televisão ou dirigir-se a um parque temático.
O etnólogo, por sua vez, faz uma experiência totalmente diferente. Procurando uma deslocalização que não se circunscreva à paisagem, ele próprio submete a sua identidade à prova dos outros. Viaja para fora de si próprio. Por um lado, é muito claramente exterior às e aos que pretende observar (quer se trate de uma aldeia, de algumas famílias, de um quarteirão urbano ou de uma empresa): terá, em primeiro lugar, de explicar a sua presença, negociar o seu estatuto de outro, de estrangeiro. Terá também de tomar consciência do papel que lhe indicam ou que lhe fazem desempenhar. Neste sentido, não poderá compreender os outros sem reconhecer previamente o lugar que lhe atribuem. Não dispõe do estatuto de extraterritorialidade que é conferido ao turista pelo nome do seu clube de férias ou da sua cadeia hoteleira. O etnólogo confronta-se como uma dupla extraterritorialidade. Necessariamente exterior ao grupo que observa, tanta aproximar-se dele intelectualmente abstraindo-se o mais possível de si próprio. Exerce aquilo a Lévi-Strauss chamou a "capacidade do sujeito de se objectivar indefinidamente" e coloca-se desta forma numa espécie de a meio caminho cultural e psicológico que marca de alguma forma o termo do seu itinerário ou a sua penúltima etapa, sendo a ultima a da escrita.
No entanto a distinção entre as duas posições é mais tênue e subtil que se possa crer, pelo menos no plano psicológico. O turista também ele, embora involuntariamente na maior parte das vezes, se coloca em situações psicológicas desconfortáveis. Basta pensar no síndroma de Stendhal (a doença induzida por uma frequência quotidiana excessiva de obras de arte em Itália) ou nas perturbações psicológicas frequentemente sentidas pelos turistas ocidentais que se dirigem a um país como a Índia e que acabam por ser alvo de um repatriamento sanitário. O turista não escreve evidentemente um estudo sobre as populações com as quais se cruza, mas por vezes as suas fotografias, os seus filmes e os seus postais acabam por constituir uma espécie de obra, pelo menos um balanço da sua experiência. Falo, evidentemente, de experiências turísticas de uma intensidade pouco comum. A média dos turistas está nos antípodas desse desconforto psicológico e desse desejo de testemunho, que se reduz para muitos a alguns clichés um pouco narcisistas.
Marc Augé, "Le scandale du turisme", in Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot, 2009, p. 56-68.
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ResponderEliminarQue é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens?
Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. "Qualquer estrada", disse Carlylé, "até esta estrada de Entepfuhl, te leva até ao fim do mundo." Mas a estrada de Entepfuhl, se for seguida toda, e até ao
fim, volta a Entepfuhl; de modo que o Entepfuhl, onde já estávamos, é aquele mesmo fim do mundo que íamos a buscar.
Condillac começa o seu livro célebre, "Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações". Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque
assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava partida é a que percorro e é minha.
Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos.
Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.
Nos países que os outros visitam, visitam-nos anónimos e peregrinos. Nos países que tenho visitado, tenho sido, não só o prazer escondido do viajante incógnito, mas a majestade do Rei que ali reina, e o povo cujo uso ali habita, e a história inteira daquela nação e das outras. As mesmas paisagens, as mesmas casas eu as vi porque as fui, feitas em Deus com a substância da minha imaginação.
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego
A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.
ResponderEliminarBernardo Soares, O Livro do Desassossego
Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.
ResponderEliminarBernardo Soares, O LIvro do Desassossego
Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e
ResponderEliminarsobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos - tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo;
gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de
bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que e a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas - uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.
Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não
querer, em me surgirem de fora, como o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer!
Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donos das lojas.
Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito frequentes; esses são musicais. No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.
Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu destino, alheio, até, ao destino próprio - inconsciência, carambas ao despropósito quando o acaso deita pedras, ecos de vozes incógnitas - salada colectiva da vida.
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego
Para os índios, a vida era uma tranqüila fruição da existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária. Claro que tinham suas lutas, suas guerras. Mas todas concatenadas, como prélios, em que se exerciam, valentes. Um guerreiro lutava, bravo, para fazer prisioneiros, pela glória de alcançar um novo nome e uma nova marca tatuada cativando inimigos. Também servia para ofertá‐lo numa festança em que centenas de pessoas o comeriam convertido em paçoca, num ato solene de comunhão, para absorver sua valentia, que nos seus corpos continuaria viva.
ResponderEliminarUma mulher tecia uma rede ou trançava um cesto com a perfeição de que era capaz, pelo gosto de expressar‐se em sua obra, como um fruto maduro de sua ingente vontade de beleza. Jovens, adornados de plumas sobre seus corpos escarlates de urucu, ou verde‐azulados de jenipapo, engalfinhavam‐ se em lutas desportivas de corpo a corpo, em que punham a energia de batalhas na guerra para viver seu vigor e sua alegria.
Darcy Ribeiro, In O Povo Brasileiro, A Formação e o Sentido da Brasil
Para os índios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se viver, tão rico de aves, de peixes, de raízes, de frutos, de flores, de sementes, que podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a quanta gente aqui viesse ter. Na sua concepção sábia e singela, a vida era dádiva de deuses bons, que lhes doaram esplêndidos corpos, bons de andar, de correr, de nadar, de dançar, de lutar. Olhos bons de ver todas as cores, suas luzes e suas sombras. Ouvidos capazes da alegria de ouvir vozes estridentes ou melódicas, cantos graves e agudos e toda a sorte de sons que há. Narizes competentíssimos para fungar e cheirar catingas e odores. Bocas magníficas de degustar comidas doces e amargas, salgadas e azedas, tirando de cada qual o gozo que podia dar. E, sobretudo, sexos opostos e complementares, feitos para as alegrias do amor.
ResponderEliminarDarcy Ribeiro, in O Povo Brasileiro, A Formação e o Sentido do Brasil
Essa resistência se explica pela própria singeleza de sua estrutura social igualitária que, não contando com um estamento superior que pudesse estabelecer uma paz válida, nem com camadas inferiores condicionadas à subordinação, lhes impossibilitava organizarem‐se como um Estado, ao mesmo tempo que tornava impraticável sua dominação. Depois de cada refrega contra outros indígenas ou contra o invasor europeu, se vencedores, tomavam prisioneiros para os cerimoniais de antropofagia e partiam; se vencidos, procuravam escapar, a fim de concentrar forças para novos ataques. Quando muito dizimados e já incapazes de agredir ou de defender‐ se, os sobreviventes fugiam para além das fronteiras da civilização. Isso é o que está acontecendo hoje, quinhentos anos depois, com os Yanomami da fronteira norte do Brasil.
ResponderEliminarCada núcleo tupi vivia em guerra permanente contra as demais tribos alojadas em sua área de expansão e, até mesmo, contra seus vizinhos da mesma matriz cultural (...). No primeiro caso, os conflitos eram causados por disputas pelos sítios mais apropriados à lavoura, à caça e à pesca. No segundo, eram movidos por uma animosidade culturalmente condicionada: uma forma de interação intertribal que se efetuava através de expedições guerreiras, visando a captura de prisioneiros para a antropofagia ritual.
O caráter cultural e co‐participado dessas cerimônias tornava quase imperativo capturar os guerreiros que seriam sacrificados dentro do próprio grupo tupi. Somente estes ‐ por compartilhar do mesmo conjunto de valores ‐ desempenhavam à perfeição o papel que lhes era prescrito: de guerreiro altivo, que dialogava soberbamente com seu matador e com aqueles que iriam devorá‐lo. Comprova essa dinâmica o texto de Hans Staden, que três vezes foi levado a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se recusaram a comê‐lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência. Não se comia um covarde.
Darcy Ribeiro, in O Povo Brasileiro, A Formação e o Sentido do Brasil
Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar os seus arabutãs. Uma vez um velho perguntou‐me: Por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas.
ResponderEliminarRetrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? ‐ Sim, respondi‐lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau‐brasil com que muitos navios voltam carregados. ‐ Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: Mas esse homem tão rico de que me falas não morre? ‐ Sim, disse eu, morre como os outros.
Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou‐me de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? ‐ Para seus filhos se os têm respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. ‐ Na verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá‐los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados ."
Jean de Léry, in Viagem à terra do Brasil
Os actuaes índios do Estado de S. Paulo não representam um elemento de trabalho e de progresso. Como tambem nos outros Estados do Brazil, não se póde esperar trabalho sério e continuado dos índios civilizados e como os Caingangs selvagens são um impecilio para a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não ha outro meio, de que se possa lançar mão, senão o seu exterminio. A conversão dos indios não tem dado resultado satisfactorio; aquelles indios que se uniram aos portuguezes immigrados, só deixaram uma influencia malefica nos habitos da população rural. É minha convicção de que é devido essencialmente a essas circunstâncias, que o Estado de S. Paulo é obrigado a introduzir milhares de immigrantes, pois que não se póde contar, de modo efficaz e seguro com os serviços dessa população indígena, para os trabalhos que a lavoura exige.
ResponderEliminarHermann von Ihering, in A Anthropologia do Estado de São Paulo
Vendo estas Minas tão mofinas, quem diria, desatinado, que escarmentado, somos o povo destinado? Somos o tiôio povo dos heróis assinalados. Eles aí estão, há séculos, a nos cobrar amor à liberdade. Filipe grita, Joaquim José responde:
ResponderEliminar‐ Libertas quae serat amen.
‐ Liberdade, aqui e agora. Já!
A Filipe, esquartejado, como é que o acabaram? Os cavalos mais fortes dos brasis lá estavam: mordendo os freios, escumando, escoiceando na praça empedrada. Eram quatro. Um cavalo foi atrelado no seu braço esquerdo. Outro cavalo, na perna direita. O terceiro cavalo, no braço direito. O último cavalo, na perna esquerda. Cada cavalo, montado por um tropeiro encouraçado.
Açoitados, esporeados, os quatro cavalos dispararam, cada qual para seu Iado. Mas lá ficaram parados, tirando faíscas com as ferraduras no pedral, atados que estavam na carne rija de Filipe. Chicoteados, esporeados de sangrar, afinal, com Filipe estraçalhado, partiu libertado o cavalo do braço direito, levando com o braço um pedaço do peito. Rápidos, instantâneos, os outros três cavalos dispararam, despedaçando Filipe, cada qual com seu pedaço.
O que fizeram quando os cavalos suados já longe, pararam, cumprida a ordem hedionda? Lá se foram, arrastando seus quartos pelas estradas, para o monturo de um antigo cascalhal. Lá no buraco preto, já pelo meio de cal, jogaram o que restava das carnes e ossos do herói e mais cal lançaram por cima. Filipe ferveu nas carnes parcas sua morte derradeira. Para todo o sempre, mataram Filipe. Mataram tão matado que para todo o sempre será ele lembrado. Meio século correu com o povo agachado até chegar a hora e a vez de outro assinalado. O destino caiu, coroou desta vez a cabeça de Joaquim José, condenado pela Rainha Louca a morrer morte natural na forca, ser esquartejado e exposto para escarmento do povo. Despedaçado, lá ficaram suas partes apodrecendo, até que o tempo as consuma como queria dona Maria. Os quatro quartos plantados fedendo, na Estrada Real. A cabeça com a cabeleira e a barba, bastas, alçada num poste alto, em Ouro Preto, guardada por famintos urubus asas de ferro, bicos agudos: tenazes. Estes foram, só eles, seus coveiros. Acabado assim tão acabado, sem ao menos a caridade de cal virgem, Tiradentes não se acabou nem se acaba. Prossegue em nós, latejando. Pelos séculos continuará clamando na carne dos netos
Darcy Ribeiro
(Cont)
ResponderEliminarde nossos netos, cobrando de cada qual sua dignidade, seu amor à liberdade.
As barba.s. As barbas. As barbas.
Aqui permanecerão
À espera doutra cara e doutra vergonha.
Estes são nossos heróis assinalados, símbolos de uma grandeza recôndita que havia. Ainda há, eu quero crer, mais rara que os outros, por garimpar. Maior que eles dois, porém, é a multidão que vou chamar. Veja: ‐ Venham, eu os convoco, venham todos. Venham aqui dizer da dor dos nervos dilacerados, do cansaço dos músculos esgotados. Venham todos, com suas tristes caras, com suas murchas ilusões, venham vestidos ou nus, tal como foram enterrados, se foram. Venham morrer aqui de novo suas miúdas mortes inglórias.
Venha primeiro você, você mineiro anônimo que furtou o crânio de Tiradentes, rezou por sua alma e o sepultou. Mas venham todos!
Você os vê? Foram milhões de almas vestidas de corpos mortais, doídos, os que aqui nessas Minas se gastaram. Olhe de novo pra eles, olhe bem. Veja só. No princípio eram principalmente índios nativos e uns poucos brancarrões importados. Depois, principalmente negros, vindos de longe, africanos. Mas logo, logo, veja só: eram já multidões de mestiços, crioulos, daqui mesmo. Esses milhões de gentes tantas são as mulas desta gueena de lavar cascalhais. Vê você como eles todos nos olham, olhos baixos, temerosos, perguntando calados: ‐ Quem somos nós? Existimos, para quê? Por quê? Para nada?
Somos o povo dos heróis assinalados, mas somos mesmo é o povo dessas multidões medonhas de gentes, enganadas e gastadas. O povo escarmentado na carne e na alma. Somos o povo que viu e que vê. O povo que vigia e espera. Minas estelar, páramo, mãe do ferro, mãe do ouro e do azougue. Mãe mineral, fulgor sulfúrico. Minas sideral, lusa quina de rocha viva enterrada além‐mar. Minas antiga, cruel satrápia do fel e da agonia, sou eu que te peço: ponha um final nesta agonia: relampeia. Relampeia agora, peça a morte. Morra! Morra e renasça. Rolem pedras saltadas do mar petrificado; rolem, arrombem o subterrâneo paredão de granito que aprisiona o povo e o tempo, escravizando, sangrando, esfomeando, assassinando. Minas, árvore alta. Minas de sangue, de lágrima, de cólera. Minas, mãe dos homens. Minas do esperma, do milho, da pétala, da pá, da dinamite. Minas carnal da flor e da semente. Minas, mãe da dor e da vergonha. Minas minha mãe crepuscular.
Havemos de amanhecer. O mundo se tinge com as cores da antemanhã.
Darcy Ribeiro, in O Povo Brasileiro, A Formação e o Sentido do Brasil
BEM-TE-VI
ResponderEliminarIndiscreto? Só se for
pelo raio desta cor
que uso no guardanapo...
Terno escuro, à senhor,
sobrancelha revirada
de um branco como não há
e amarelo-enxofre no papo!?!
Foi macumba de orixá...
"Le retour des Bourbons ramena Clarac en France; un instant il parut rentrer dans la carrière des armes, mais son goût l'entraînait ailleurs, et quoiqu'il ne manquât ni de courage ni d'énergie, ce n'était pas dans la vie des régiments qu'il aimait à l'employer. Le séjour `a Naples, qu'il s'est toujours rappelé avec bonheur, lui avait inspiré, non seulement pour les beautés de l'art ancien, mais pour celles de la nature, un véritable culte.
Il voulut aller les étudier sur la scène de leur plus grande magnificence, et obtint du roi la permission d'accompagner le duc de Luxembourg dans son ambassade au Brésil [1816].
C'est de ce voyage qu'il a repporté les charmants paysages que ses amis admiraient chex-lui, et notamment celui qui représente une forêt vierge des bords du Rio Bonito; ce superbe dessin, que la gravure a reproduit, a été cité par M. A. de Humboldt comme la représentation la plus fidèle qu'il ait rencontrée de la végétation du Nouveau Monde.
Dans son exploitation de l'Amérique du Sud, Clarac s'est montré ce qu'il était par dessus tout: l'homme avide de s'instruire et curieux des monuments de l'art, primitifs ou perfectionné, n'importe. Tandis qu'il naviguait sur l'Oyapoc, il avait cherché à aprrendre la langue das sauvages qui en habitent les rives, le galibi, et il avait ramassé tout ce qui s'était offert à lui d'armes et d'instruments qui pussent nous donner une idée des arts mécaniques de ces peuplades."
Pedro Corrêa do Lago - Louis Frank, LE COMTE DE CLARAC ET LA FORÊT VIERGE DU BRÉSIL, Paris, Louvre - Chandeigne, 2005, pp. 32-33.