segunda-feira, 23 de junho de 2014

Turistas e etnólogos (1). Marc Augé

Poderia esboçar aqui um paralelo entre o turista e o etnólogo. Pertencem ambos à parte do mundo mais favorecida, a que é capaz de organizar viagens de diversão ou de estudo a terras alheias. Nada disto seria motivo de escândalo se todos os homens pudessem ser turistas ou etnólogos, se a mobilidade de uns não fosse um luxo enquanto a mobilidade dos outros é um destino ou uma fatalidade. Não haveria escândalo se todos os homens indiferenciadamente fossem espectadores de si próprios. E este escândalo vale para a etnologia. Há etnólogos japoneses em África, mas não há etnólogos africanos no Japão. A etnologia que aqui me interessa  dirigir-se-á, todavia, no futuro, cada vez menos para os país exóticos porque o exotismo está moribundo e porque, em ultima análise, o exotismo não constitui indubitavelmente o objecto da etnologia. A etnologia sobreviverá. Sobreviverá a si própria.
Quanto aos turistas, nunca foram tão numerosos. Estamos na época do turismo de massa. Em resumo, poderemos dizer que as classes altas e médias dos países ricos viajam cada vez mais para fora das suas fronteiras. Os países do Sul, por seu turno, vêem no turismo um recurso financeiro e encorajam o seu desenvolvimento, apesar de os beneficiários directos desse turismo serem na maioria das vezes organizações e indivíduos que pertencem aos países desenvolvidos. Desta perspectiva, a nossa época caracteriza-se por um contraste marcante e trágico, porque os turistas procuram voluntariamente países donde partem emigrantes em condições difíceis e por vezes em perigo de vida. Estes dois movimentos de sentido contrário são um dos símbolos possíveis da globalização liberal que, sabemo-lo bem, não promove de igual modo as formas de circulação.
Comparando o etnólogo com o turista, queria tentar mostrar a traço grosso, por contraste, a originalidade da posição do etnólogo, sem reduzir por outro lado o turista à caricatura fácil, porque ele é muitas vezes realmente caricatural, mas não se reduz, enquanto indivíduo, à imagem que dá de si próprio.
O que o etnólogo tradicional (entendo por etnólogo tradicional o que parte para estudar as sociedades que se lhe apresentam como exóticas) partilha com o turista actual, é o facto de ir para fora, de se deslocalizar. Mas ele sempre se distingiu e se distingue em dois aspectos: viaja sozinho e fica muito tempo. Claro, ele parte para viver com e estudar aqueles junto e quem se dirige, e essa poderia constituir a diferença principal relativamente ao turista. Mas não podemos recusar a alguns turistas, raros sem dúvida e em todo o caso minoritários, a curiosidade, o desejo de observar e de aprender. O que verdadeiramente distingue o etnólogo é o método: a observação sistemática, solitária e prolongada.
Aprofundando a questão, há entre ambos uma outra diferença, simultaneamente mais radical e mais subtil.
O turista, nas versões mais recentes e mais luxuosas da actividade turística, quer garantir conforto físico e tranquilidade psicológica, mesmo quando tem alma de um viajante que se vê como aventureiro. Consome o exotismo, a areia, o mar, o sol e as paisagens (para não falar de outros eventuais tipos de consumo), mas está na sua casa, mesmo quando está fora. Tudo se conjuga para que assim seja: os companheiros, os comentários que trocam entre si, o conforto dos lugares, o carácter estereotipado das cadeias hoteleiras, os filmes que faz para mais tarde os visionar, após o regresso, a brevidade da estadia ou do périplo. No limite, fica em sua casa ou perto de sua casa e organiza-se de forma a reduzir os outros a uma imagem: basta-lhe ligar a televisão ou dirigir-se a um parque temático.
O etnólogo, por sua vez, faz uma experiência totalmente diferente. Procurando uma deslocalização que não se circunscreva à paisagem, ele próprio submete a sua identidade à prova dos outros. Viaja para fora de si próprio. Por um lado, é muito claramente exterior às e aos que pretende observar (quer se trate de uma aldeia, de algumas famílias, de um quarteirão urbano ou de uma empresa): terá, em primeiro lugar, de explicar a sua presença, negociar o seu estatuto de outro, de estrangeiro. Terá também de tomar consciência do papel que lhe indicam ou que lhe fazem desempenhar. Neste sentido, não poderá compreender os outros sem reconhecer previamente o lugar que lhe atribuem. Não dispõe do estatuto de extraterritorialidade que é conferido ao turista pelo nome do seu clube de férias ou da sua cadeia hoteleira. O etnólogo confronta-se como uma dupla extraterritorialidade. Necessariamente exterior ao grupo que observa, tanta aproximar-se dele intelectualmente abstraindo-se o mais possível de si próprio. Exerce aquilo a Lévi-Strauss chamou a "capacidade do sujeito de se objectivar indefinidamente" e coloca-se desta forma numa espécie de a meio caminho cultural e psicológico que marca de alguma forma o termo do seu itinerário ou a sua penúltima etapa, sendo a ultima a da escrita.
No entanto a distinção entre as duas posições é mais tênue e subtil que se possa crer, pelo menos no plano psicológico. O turista também ele, embora involuntariamente na maior parte das vezes, se coloca em situações psicológicas desconfortáveis. Basta pensar no síndroma de Stendhal (a doença induzida por uma frequência quotidiana excessiva de obras de arte em Itália) ou nas perturbações psicológicas frequentemente sentidas pelos turistas ocidentais que se dirigem a um país como a Índia e que acabam por ser alvo de um repatriamento sanitário. O turista não escreve evidentemente um estudo sobre as populações com as quais se cruza, mas por vezes as suas fotografias, os seus filmes e os seus postais acabam por constituir uma espécie de obra, pelo menos um balanço da sua experiência. Falo, evidentemente, de experiências turísticas de uma intensidade pouco comum. A média dos turistas está nos antípodas desse desconforto psicológico e desse desejo de testemunho, que se reduz para muitos a alguns clichés um pouco narcisistas.

Marc Augé, "Le scandale du turisme", in Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot, 2009, p. 56-68.

12 comentários:

  1. /…/
    Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens?
    Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. "Qualquer estrada", disse Carlylé, "até esta estrada de Entepfuhl, te leva até ao fim do mundo." Mas a estrada de Entepfuhl, se for seguida toda, e até ao
    fim, volta a Entepfuhl; de modo que o Entepfuhl, onde já estávamos, é aquele mesmo fim do mundo que íamos a buscar.
    Condillac começa o seu livro célebre, "Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações". Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque
    assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava partida é a que percorro e é minha.
    Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos.
    Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.
    Nos países que os outros visitam, visitam-nos anónimos e peregrinos. Nos países que tenho visitado, tenho sido, não só o prazer escondido do viajante incógnito, mas a majestade do Rei que ali reina, e o povo cujo uso ali habita, e a história inteira daquela nação e das outras. As mesmas paisagens, as mesmas casas eu as vi porque as fui, feitas em Deus com a substância da minha imaginação.

    Bernardo Soares, O Livro do Desassossego

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  2. A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.

    Bernardo Soares, O Livro do Desassossego

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  3. Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.

    Bernardo Soares, O LIvro do Desassossego

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  4. Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e
    sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos - tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo;
    gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de
    bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que e a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas - uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.
    Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não
    querer, em me surgirem de fora, como o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer!
    Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donos das lojas.
    Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito frequentes; esses são musicais. No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.
    Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu destino, alheio, até, ao destino próprio - inconsciência, carambas ao despropósito quando o acaso deita pedras, ecos de vozes incógnitas - salada colectiva da vida.

    Bernardo Soares, O Livro do Desassossego

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  5. Para 
os
 índios,
a vida 
 era
 uma
 tranqüila
 fruição
 da
 existência,
num
 mundo
 dadivoso
 e
 numa
 sociedade
 solidária.
 Claro
 que
 tinham
 suas
 lutas,
 suas
 guerras.
 Mas
 todas
 concatenadas,
 como
 prélios,
 em
 que
 se
 exerciam,
 valentes.
 Um
 guerreiro
 lutava,
 bravo,
 para
 fazer
 prisioneiros,
 pela
 glória
 de
 alcançar
 um
 novo
 nome
 e
 uma
 nova
 marca
 tatuada
 cativando
 inimigos.
 Também
 servia
 para
 ofertá‐lo
 numa
 festança
 em
que
centenas
de
pessoas
o
 comeriam
 convertido
 em
 paçoca,
 num
 ato
 solene
 de
 comunhão,
 para
 absorver
 sua
 valentia,
que
 nos
 seus
 corpos
 continuaria
 viva.



    

Uma
 mulher
 tecia
 uma
 rede
 ou
 trançava
 um
 cesto
 com
 a
 perfeição
 de
 que
 era
 capaz,
 pelo
 gosto
 de
 expressar‐se
 em
 sua
 obra,
 como
 um
 fruto
 maduro
 de
 sua
 ingente
 vontade
 de
 beleza.
 Jovens,
 adornados
 de
 plumas
 sobre
 seus
 corpos
 escarlates
 de
 urucu,
 ou
 verde‐azulados
 de
 jenipapo,
 engalfinhavam‐ se
 em
 lutas
 desportivas
 de
 corpo
 a
 corpo,
 em
 que
 punham
 a
 energia
 de
 batalhas
 na
 guerra
 para
 viver 
seu
 vigor
 e sua
 alegria.



    Darcy Ribeiro, In O Povo Brasileiro, A Formação e o Sentido da Brasil

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  6. Para
 os
 índios
 que
 ali
 estavam,
 nus
 na
 praia,
 o
 mundo
 era
 um
 luxo
 de
 se
 viver,
tão
rico
 de
 aves,
de
 peixes,
de
 raízes,
de
 frutos,
de
 flores,
de
 sementes,
 que
 podia
 dar
 as
 alegrias
 de
 caçar,
 de
 pescar,
 de
 plantar
 e
 colher
 a
 quanta
 gente
 aqui
 viesse
 ter.
Na
sua
 concepção
 sábia
 e
 singela,
a
 vida
 era
 dádiva
 de
 deuses
 bons,
que
 lhes
 doaram
esplêndidos
 corpos,
 bons
 de
 andar,
 de
 correr,
 de
 nadar,
de
 dançar,
de
 lutar.
Olhos
bons
 de
 ver
 todas
 as
 cores,
 suas
 luzes
 e
 suas
 sombras.
 Ouvidos
 capazes
 da
 alegria
 de
 ouvir
 vozes
 estridentes
 ou
 melódicas,
 cantos
 graves
 e
 agudos
 e
 toda
 a
 sorte
 de
 sons
 que
 há.
 Narizes
 competentíssimos
 para
 fungar
 e cheirar
 catingas
 e
odores.
Bocas
 magníficas
 de
 degustar
 comidas
 doces
 e
 amargas,
 salgadas
 e
 azedas,
 tirando
 de
 cada
 qual
 o
 gozo
 que
 podia
 dar.
 E,
 sobretudo,
 sexos
 opostos
 e
 complementares,
 feitos
 para
 as
alegrias
 do
 amor.



    Darcy Ribeiro, in O Povo Brasileiro, A Formação e o Sentido do Brasil

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  7. Essa
 resistência
 se
 explica
 pela
 própria
 singeleza
 de
 sua
 estrutura
 social
 igualitária
 que,
 não
 contando
 com
 um
 estamento
 superior
 que
 pudesse
 estabelecer
 uma
 paz
 válida,
 nem
 com
 camadas
 inferiores
 condicionadas
 à
 subordinação,
 lhes
 impossibilitava
 organizarem‐se
 como
 um
 Estado,
 ao
 mesmo
 tempo
 que
 tornava
 impraticável
 sua
 dominação.
 Depois
 de
 cada
 refrega
contra
outros
indígenas
ou
contra
o
invasor
europeu,
se
vencedores,
 tomavam
 prisioneiros
 para
 os
 cerimoniais
 de
 antropofagia
 e
 partiam;
 se
 vencidos,
 procuravam
 escapar,
 a
 fim
 de
 concentrar
 forças
 para
 novos
 ataques.
Quando
muito
dizimados
e
já
incapazes
de
agredir
ou
de
defender‐ se,
os
sobreviventes
fugiam
para
além
das
fronteiras
da
civilização.
Isso
é
o
 que
 está
 acontecendo
 hoje,
 quinhentos
 anos
 depois,
 com
 os
 Yanomami
 da
 fronteira
norte
do
Brasil.


    

Cada
 núcleo
 tupi
 vivia
 em
 guerra
 permanente
 contra
 as
 demais
 tribos
 alojadas
 em
 sua
 área
 de
 expansão
 e,
 até
 mesmo,
 contra
 seus
 vizinhos
 da
 mesma
 matriz
 cultural
 (...). No
 primeiro
 caso,
 os
 conflitos
 eram
 causados
 por
 disputas
 pelos
 sítios
 mais
 apropriados
 à
 lavoura,
 à
 caça
 e
 à
 pesca.
 No
 segundo,
 eram
 movidos
 por
 uma
 animosidade
 culturalmente
 condicionada:
 uma
 forma
 de
 interação
 intertribal
 que
 se
 efetuava
 através
 de
 expedições
 guerreiras,
 visando
 a
 captura
 de
 prisioneiros
 para
 a
 antropofagia
 ritual.


    

O
 caráter
 cultural
 e
 co‐participado
 dessas
 cerimônias
 tornava
 quase
 imperativo
 capturar
 os
 guerreiros
 que
 seriam
 sacrificados
 dentro
 do
 próprio
 grupo
 tupi.
 Somente
 estes
 ‐
 por
 compartilhar
 do
 mesmo
 conjunto
 de
 valores
 ‐
 desempenhavam
 à
 perfeição
 o
 papel
 que
 lhes
 era
 prescrito:
 de
 guerreiro
 altivo,
 que
 dialogava
 soberbamente
 com
 seu
 matador
 e
 com
 aqueles
 que
 iriam
 devorá‐lo.
 Comprova
 essa
 dinâmica
 o
 texto
 de
 Hans
 Staden,
 que
 três
 vezes
 foi
 levado
 a
 cerimônias
 de
 antropofagia
 e
 três
 vezes
 os
 índios
 se
 recusaram
 a
 comê‐lo,
 porque
 chorava
 e
 se
 sujava,
 pedindo
 clemência.
 Não
 se
 comia 
um
 covarde.



    Darcy Ribeiro, in O Povo Brasileiro, A Formação e o Sentido do Brasil
    



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  8. Os
 nossos
 tupinambás
 muito
 se
 admiram
 dos
 franceses
 e
 outros
 estrangeiros
 se darem ao trabalho de ir buscar os seus arabutãs.
Uma
 vez um velho
 perguntou‐me:
 Por
 que
 vindes
 vós
 outros,
 maírs
 e
 perôs
 (franceses
 e
 portugueses)
 buscar
 lenha
 de
 tão
 longe
 para
 vos
 aquecer?
 Não
 tendes
 madeira
 em
 vossa
 terra?
 Respondi
 que
 tínhamos
 muita,
 mas
 não
 daquela
 qualidade,
 e
 que
 não
 a
 queimávamos,
 como
 ele
 o
 supunha,
 mas
 dela
 extraíamos
 tinta
 para
 tingir,
 tal
 qual
 o
 faziam
 eles
 com
 os
 seus
 cordões
 de
 algodão
 e suas plumas.
    

Retrucou
 o
 velho
 imediatamente:
 e
 porventura
 precisais
 de
 muito?
 ‐
 Sim,
 respondi‐lhe,
 pois
 no
 nosso
 país
 existem
 negociantes
 que
 possuem
 mais
 panos,
facas,
tesouras,
espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e
 um
 só
 deles
 compra
 todo
 o
 pau‐brasil
 com
 que
 muitos
 navios
 voltam
 carregados.
 ‐
 Ah!
 retrucou
 o
 selvagem,
 tu
 me
 contas
 maravilhas,
 acrescentando
 depois
 de
 bem
 compreender
 o
 que
 eu
 lhe
 dissera:
 Mas
 esse
 homem
 tão
 rico
 de
 que
 me
 falas
 não
 morre?
 ‐
 Sim,
 disse
 eu,
 morre
 como
 os
 outros.


    

Mas
 os
 selvagens
 são
 grandes
 discursadores
 e
 costumam
 ir
 em
 qualquer
 assunto
 até
 o
 fim,
 por
 isso
 perguntou‐me
 de
 novo:
 e
 quando
 morrem
 para
 quem fica o que deixam?
‐
Para
 seus filhos se os têm 
respondi;
na
 falta destes para
 os
 irmãos
 ou
 parentes
 mais
 próximos.
 ‐
 Na
 verdade,
 continuou
 o
 velho,
 que,
 como
 vereis,
 não
 era
 nenhum
 tolo,
 agora
 vejo
 que
 vós
 outros
 maírs
 sois
 grandes
 loucos,
 pois
 atravessais
 o
 mar
 e
 sofreis
 grandes
 incômodos,
 como
 dizeis
 quando
 aqui
 chegais,
 e
 trabalhais
 tanto
 para
 amontoar
 riquezas
 para
 vossos
 filhos
 ou
 para
 aqueles
 que
 vos
 sobrevivem!
 Não
 será
 a
 terra
 que
 vos
 nutriu
 suficiente
 para
 alimentá‐los
 também?
 Temos
 pais,
 mães
 e
 filhos
 a
 quem
 amamos; mas
 estamos certos que depois
 da nossa morte a terra que nos
 nutriu
 também
 os
 nutrirá,
 por
 isso
 descansamos
 sem
 maiores
 cuidados
."

    Jean de Léry, in Viagem à terra do Brasil

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  9. Os
 actuaes
 índios
 do
 Estado
 de
 S.
 Paulo
 não
 representam
 um
 elemento
 de
 trabalho
 e
 de
 progresso.
 Como
 tambem
 nos
 outros
 Estados
 do
 Brazil,
 não
 se
 póde
 esperar
 trabalho
 sério
 e
 continuado
 dos
 índios
 civilizados
 e
 como
 os
 Caingangs
 selvagens
 são
 um
 impecilio
 para
 a
 colonização
 das
 regiões
 do
 sertão
 que
 habitam,
 parece
 que
 não
 ha
 outro
 meio,
 de
 que
 se
 possa
 lançar
 mão,
senão
o
seu
exterminio.

 

A
conversão
dos
indios
não
tem
dado
resultado
satisfactorio;
aquelles
indios
 que
 se
 uniram
 aos
 portuguezes
 immigrados,
 só
 deixaram
 uma
 influencia
 malefica
 nos
 habitos
 da
 população
 rural.
 É
 minha
 convicção
 de
 que
 é
 devido
 essencialmente
 a
 essas
 circunstâncias,
 que
 o
 Estado
 de
 S.
 Paulo
 é
 obrigado
 a
 introduzir
 milhares
 de
 immigrantes,
 pois
 que
 não
 se
 póde
 contar,
 de
 modo
 efficaz
 e seguro com os serviços dessa população indígena,
para
 os trabalhos que a lavoura exige.

    Hermann von Ihering, in A Anthropologia do Estado de São Paulo

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  10. Vendo
 estas
 Minas
 tão
 mofinas,
 quem
 diria,
 desatinado,
 que
 escarmentado,
 somos
 o
 povo
 destinado?
 Somos
 o
 tiôio
 povo
 dos
 heróis
 assinalados.
 Eles
 aí
 estão,
 há
 séculos,
 a
 nos
 cobrar
 amor
 à
 liberdade.
 Filipe
 grita,
 Joaquim
 José
 responde:



    

‐
Libertas
 quae serat amen.
    

‐
Liberdade,
aqui
 e
 agora.
 Já!



    

A
 Filipe,
 esquartejado,
 como
 é
 que
 o
 acabaram?
 Os
 cavalos
 mais
 fortes
 dos
 brasis
 lá
 estavam:
 mordendo
 os
 freios,
 escumando,
 escoiceando
 na
 praça
 empedrada.
 Eram
 quatro.
 Um
 cavalo
 foi
 atrelado
 no
 seu
 braço
 esquerdo.
 Outro
 cavalo,
 na
 perna
 direita.
 O
 terceiro
 cavalo,
 no
 braço
 direito.
 O
 último
 cavalo,
 na
 perna
 esquerda.
 Cada
 cavalo,
 montado
 por
 um
 tropeiro
 encouraçado.


    

Açoitados,
 esporeados,
 os
 quatro
 cavalos
 dispararam,
 cada
 qual
 para
 seu
 Iado.
 Mas
 lá
 ficaram
 parados,
 tirando
 faíscas
 com
 as
 ferraduras
 no
 pedral,
 atados
 que
 estavam
 na
 carne
 rija
 de
 Filipe.
 Chicoteados,
 esporeados
 de
 sangrar,
 afinal,
 com
 Filipe
 estraçalhado,
 partiu
 libertado
 o
 cavalo
 do
 braço
 direito,
 levando
 com
 o
 braço
 um
 pedaço
 do
 peito.
 Rápidos,
 instantâneos,
 os
 outros
 três
 cavalos
 dispararam,
 despedaçando
 Filipe,
 cada
 qual
 com
 seu
 pedaço.


    

O
 que
 fizeram
 quando
 os
 cavalos
 suados
 já
 longe,
 pararam,
 cumprida
 a
 ordem
hedionda?
Lá
 se
 foram,
arrastando
 seus
 quartos
 pelas
 estradas,
para
 o
 monturo
 de
 um
 antigo
 cascalhal.
 Lá
 no
 buraco
 preto,
 já
 pelo
 meio
 de
 cal,
 jogaram
 o
 que
 restava
 das
 carnes
 e
 ossos
 do
 herói
 e
 mais
 cal
 lançaram
 por
 cima.
 Filipe
 ferveu
 nas
 carnes
 parcas
 sua
 morte
 derradeira.
 Para
 todo
 o
 sempre,
 mataram
 Filipe.
 Mataram
 tão
 matado
 que
 para
 todo
 o
 sempre
 será
 ele
 lembrado.

 

Meio
 século
 correu
 com
 o povo
agachado
 até
 chegar
 a
 hora
 e
 a vez
 de
 outro
 assinalado.
 O
 destino
 caiu,
 coroou
 desta
 vez
 a
 cabeça
 de
 Joaquim
 José,
 condenado
 pela
 Rainha
 Louca
 a
 morrer
 morte
 natural
 na
 forca,
 ser
 esquartejado
 e
 exposto
 para
 escarmento
 do
 povo.
 Despedaçado,
 lá
 ficaram
 suas
 partes
 apodrecendo,
 até
 que
 o
 tempo
 as
 consuma
 como
 queria
 dona
 Maria.
Os
 quatro
 quartos 
plantados
 fedendo,
na
 Estrada
 Real.
A
cabeça
 com
 a
 cabeleira
 e
 a
 barba,
 bastas,
 alçada
 num
 poste
 alto,
 em
 Ouro
 Preto,
 guardada
 por
 famintos
 urubus
 asas
 de
 ferro,
 bicos
 agudos:
 tenazes.
 Estes
 foram,
 só
 eles,
 seus
 coveiros.
 Acabado
 assim
 tão
 acabado,
 sem
 ao
 menos
 a
 caridade
 de
 cal
 virgem,
 Tiradentes
 não
 se
 acabou
 nem
 se
 acaba.
 Prossegue
 em
 nós,
 latejando.
Pelos
 séculos
 continuará
 clamando
 na
 carne
 dos
 netos



    Darcy Ribeiro

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  11. (Cont)
    

de
 nossos
 netos,
cobrando
 de
 cada
 qual
 sua
 dignidade,
seu
 amor
 à
 liberdade.

 


    

As
barba.s.
As
barbas.
As
barbas.


    

Aqui
permanecerão


    

À
 espera
 doutra 
cara
 e doutra
 vergonha.


    


    

Estes
 são
 nossos
 heróis
 assinalados,
 símbolos
 de
 uma
 grandeza
 recôndita
 que
havia.
Ainda
há,
eu
quero
crer,
mais
rara
que
os
outros,
por
garimpar.

 

Maior
que
eles
dois,
porém,
é
a
multidão
que
vou
chamar.
Veja:
‐
Venham,
eu
 os
convoco,
venham
todos.
Venham
aqui
dizer
da
dor
dos
nervos
dilacerados,
 do
 cansaço
 dos
 músculos
 esgotados.
 Venham
 todos,
 com
 suas
 tristes
 caras,
 com
 suas
 murchas
 ilusões,
 venham
 vestidos
 ou
 nus,
 tal
 como
 foram
 enterrados,
 se
 foram.
 Venham
 morrer
 aqui
 de
 novo
 suas
 miúdas
 mortes
 inglórias.


    

Venha
 primeiro
 você,
 você
 mineiro
 anônimo
 que
 furtou
 o
 crânio
 de
 Tiradentes,
rezou
por
sua
alma
e
o
sepultou.
Mas
venham
todos!


    

Você
 os
 vê?
 Foram
 milhões
 de
 almas
 vestidas
 de
 corpos
 mortais,
 doídos,
 os
 que
 aqui
 nessas
 Minas
 se
 gastaram.
 Olhe
 de
 novo
 pra
 eles,
 olhe
 bem.
 Veja
 só.
 No
 princípio
 eram
 principalmente
 índios
 nativos
 e
 uns
 poucos
 brancarrões
 importados.
 Depois,
 principalmente
 negros,
 vindos
 de
 longe,
 africanos.
 Mas
 logo,
logo,
veja
só:
eram
já
multidões
de
mestiços,
crioulos,
daqui
mesmo.

 

Esses
 milhões
 de
 gentes
 tantas
 são
 as
 mulas
 desta
 gueena
 de
 lavar
 cascalhais.
 Vê
 você
 como
 eles
 todos
 nos
 olham,
 olhos
 baixos,
 temerosos,
 perguntando
calados:

 

‐
Quem
somos
nós?
Existimos,
para
quê?
Por
quê?
Para
nada?


    

Somos
 o
 povo
 dos
 heróis
 assinalados,
 mas
 somos
 mesmo
 é
 o
 povo
 dessas
 multidões
 medonhas
 de
 gentes,
 enganadas
 e
 gastadas.
 O
 povo
 escarmentado
 na
carne
e
na
alma.
Somos
o
povo
que
viu
e
que
vê.
O
povo
que
vigia
e
espera.

 

Minas
 estelar,
 páramo,
 mãe
 do
 ferro,
 mãe
 do
 ouro
 e
 do
 azougue.
 Mãe
 mineral,
 fulgor
 sulfúrico.
 Minas
 sideral,
 lusa
 quina
 de
 rocha
 viva
 enterrada
 além‐mar.

 

Minas
antiga,
cruel
satrápia
 do
 fel
 e
 da
 agonia,
sou
 eu
 que
 te
 peço:
ponha
um
 final
 nesta
 agonia:
relampeia. 
Relampeia
 agora,
peça
 a
 morte.
 Morra!
 Morra
 e renasça.
 Rolem
 pedras
 saltadas
 do
 mar
 petrificado;
 rolem,
 arrombem
 o
 subterrâneo
 paredão
 de
 granito
 que
 aprisiona o povo e o tempo, escravizando, sangrando, esfomeando, assassinando. Minas, árvore alta. Minas de sangue, de lágrima, de cólera. Minas, mãe dos homens. Minas do esperma, do milho, da pétala, da pá, da dinamite. Minas carnal da flor e da semente. Minas, mãe da dor e da vergonha. Minas minha mãe crepuscular.
    Havemos de amanhecer. O mundo se tinge com as cores da antemanhã.

    Darcy Ribeiro, in O Povo Brasileiro, A Formação e o Sentido do Brasil

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  12. BEM-TE-VI
    Indiscreto? Só se for
    pelo raio desta cor
    que uso no guardanapo...
    Terno escuro, à senhor,
    sobrancelha revirada
    de um branco como não há
    e amarelo-enxofre no papo!?!
    Foi macumba de orixá...

    "Le retour des Bourbons ramena Clarac en France; un instant il parut rentrer dans la carrière des armes, mais son goût l'entraînait ailleurs, et quoiqu'il ne manquât ni de courage ni d'énergie, ce n'était pas dans la vie des régiments qu'il aimait à l'employer. Le séjour `a Naples, qu'il s'est toujours rappelé avec bonheur, lui avait inspiré, non seulement pour les beautés de l'art ancien, mais pour celles de la nature, un véritable culte.
    Il voulut aller les étudier sur la scène de leur plus grande magnificence, et obtint du roi la permission d'accompagner le duc de Luxembourg dans son ambassade au Brésil [1816].
    C'est de ce voyage qu'il a repporté les charmants paysages que ses amis admiraient chex-lui, et notamment celui qui représente une forêt vierge des bords du Rio Bonito; ce superbe dessin, que la gravure a reproduit, a été cité par M. A. de Humboldt comme la représentation la plus fidèle qu'il ait rencontrée de la végétation du Nouveau Monde.
    Dans son exploitation de l'Amérique du Sud, Clarac s'est montré ce qu'il était par dessus tout: l'homme avide de s'instruire et curieux des monuments de l'art, primitifs ou perfectionné, n'importe. Tandis qu'il naviguait sur l'Oyapoc, il avait cherché à aprrendre la langue das sauvages qui en habitent les rives, le galibi, et il avait ramassé tout ce qui s'était offert à lui d'armes et d'instruments qui pussent nous donner une idée des arts mécaniques de ces peuplades."

    Pedro Corrêa do Lago - Louis Frank, LE COMTE DE CLARAC ET LA FORÊT VIERGE DU BRÉSIL, Paris, Louvre - Chandeigne, 2005, pp. 32-33.

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