O visitante ocidental que pela primeira vez chega a Goa e Cochim enfrentará provavelmente a vertigem do caos à sua volta e dentro se si. Quando começa a familiarizar-se com a estonteante exuberância e com as contradições coexistentes, quando julga começar a entender a complexidade das castas, dos cultos e costumes tão diferentes, quando começa a fixar nomes, imagens, atributos dos deuses, tudo lhe foge de súbito, tudo se torna de novo confuso, como se o véu de Maia voltasse a cobrir a indecifrável irrealidade da Índia real.
Quem regressa de uma terra tão diversa traz fragmentos de caras, casas, ruas, cheiros, quartos, uma carga de imagens que, na alfândega-roleta do lembrar e esquecer, deveria pagar excesso de bagagem. Vim carregado de cores e de cansaço mas inteiro e em estado razoável, bem melhor dos que outrora, contentes por regressarem, cantavam:
Lá vos digo que há fadigas
tantas mortes, tantas brigas
e perigos descompassados
que assim vimos destroçados
pelados como formigas.
Vim ainda carregado de algo mais, um outro modo de olhar, a certeza de não pertencer àquele tipo de viajante que não fala do que vê, mas do que imagina ou deseja ver. Trouxe comigo um bloco confusamente escrevinhado, uma curiosidade acrescentada, uma crescente descrença na elegância da descrença. E tornei-me mais atento à infindável memória do mundo, mais capaz de escutar o incansável murmúrio do mundo.
Almeida Faria, O Murmúrio do Mundo. A Índia Revisitada. Desenhos de Bárbara Assis Pacheco. 2ª edição. Lisboa, Tinta da China, 2012.
"MARIDO: Fomos na volta do mar
ResponderEliminarquasi a quartelar:
a nossa Garça voava
que o mar se espedaçava.
Fomos ao rio de Meca,
pelejámos e roubámos
e mui risco passámos:
a vela, árvore seca.
AMA: E eu cá esmorecer,
fazendo mil devações,
mil choros, mil orações.
MARIDO: Assi havia de ser.
AMA: Juro-vos que de saudade
tanto de pão não comia
a triste de mi cada dia
doente, era üa piedade.
Já carne nunca a comi,
esta camisa que trago
em vossa dita a vesti
porque vinha bom mandado.
Onde não há marido
cuidai que tudo é tristura,
não há prazer nem folgura,
sabei que é viver perdido.
Alembrava-vos eu lá?
MARIDO: E como!
AMA: Agora, aramá:
lá há índias mui fermosas,
lá faríeis vós das vossas
e a triste de mi cá,
encerrada nesta casa,
sem consentir que vezinha
entrasse por üa brasa,
por honestidade minha.
MARIDO: Lá vos digo que há fadigas,
tantas mortes, tantas brigas
e perigos descompassados,
que assi vimos destroçados
pelados coma formigas.
AMA: Porém vindes vós mui rico...
MARIDO: Se não fora o capitão,
eu trouxera, a meu quinhão,
um milhão vos certifico.
Calai-vos que vós vereis
quão louçã haveis de sair.
AMA: Agora me quero eu rir
disso que me vós dizeis.
Pois que vós vivo viestes,
que quero eu de mais riqueza?
Louvado seja a grandeza
de vós, Senhor que mo trouxestes.
A nau vem bem carregada?
MARIDO: Vem tão doce embandeirada.
AMA: Vamo-la, rogo-vo-lo, ver.
MARIDO: Far-vos-ei nisso prazer?
AMA: Si que estou muito enfadada."
Gil Vicente, Auto da Índia
Na Īndia os homens gritam muito.
ResponderEliminarExiste no ar uma densidade humana
abundante: o ar parece menos aéreo,
há muitos encontrões nas ruas para os raros encontros
e a pobreza material é evidente e contrasta
com a riqueza das histórias que velhos
sentados em esquinas recentes contam
às mulheres sensatas e aos turistas.
Numa única rua, um continente aperta-se
para que cada um possa vender o que tem.
(...)
Na Índia, homens velhos que escutámos
durante horas e julgávamos já eternos,
levantam-se , subitamente, e começam a
urinária em plena rua, para cima do lixo
que cães, segundos antes, tentavam mastigar.
Respeito e nojo coincidem estranhamente
no mesmo homem: o mundo não
é claro e depois escuro, o mundo, cada pedaço dele
é claro e escuro.
E enquanto um místico urina com displicência ao nosso lado
ensina-nos isso, e outras coisas.
(...)
O turista que prometa um jantar a um mendigo
e se esqueça, se regressar vinte anos depois,
encontrará no mesmo sítio o mesmo mendigo
à espera do jantar. E tudo seria trágico,
inútil e material, se esse mendigo, estranhamente,
não permanecesse com a mesma cara e a mesma idade
de há vinte anos.
Foi nesse país, que equilibra cegos e videntes,
óculos, bengalas e frases surpreendentes,
foi nesse país que Bloom, finalmente, entrou.
(...)
O rio Ganges é a mais importante biblioteca
da cidade e o mais importante arquivo.
Não há verdade fora do rio, nem há mentira de qualidade,
ficção ou mitologia, exterior às suas águas sujas. Mas as
águas não são sujas, realmente tal expressão
é um erro - corrige Anish. São águas complexas,
o que é diferente.
Aqui a água não é um elemento de visita ao mundo dos homens,
são os homens que estão de visita
à água - e na Índia toda a gente o sabe.
A água insinua-se nas casas, nos dias e nas
mulheres. O que não é atraído pela água não é
importante. A água é sagrada. Depois
de mergulharem no rio as pessoas cantam
mais, há quem saia da água com uma voz
milagrosa e não há dançarina que na véspera
de actuar não vá copiar do rio certos movimentos.
É o único país onde a água embebeda mais que o vinho
e seduz tanto como as mulheres jovens.
E a religião é encantadora como tudo o que não tem
função particular que possa ser avaliada objectivamente.
O que é vago e abstracto acerta sempre
porque nunca definiu o que é não acertar.
A riqueza nunca se mistura com a pobreza,
a chuva cai na mesma direcção dos derrotados
e evapora-se, mais tarde, na direcção dos que
não desistem. Há certos animais que mastigam
as flores, e há outros mais civilizados que inventam
profissões profundamente místicas e manuais
- como a do jardineiro. As vacas de um lado,
o homem do outro.
Gonçalo M. Tavares, in Uma Viagem à Índia
Último escrito ditado por Afonso de Albuquerque, ao seu Rei D. Manuel I...
ResponderEliminar:«Senhor: quando esta escrevo a Vossa Alteza estou com um soluço que é sinal de morte. Nesses reinos tenho um filho e peço a Vossa Alteza que mo faça grande, como meus serviços merecem que tenho feito com minha serviçal condição; porque a ele mando, sob pena de minha benção, que vo-lo requeira. E quanto às coisas da Índia não digo nada, porque elas falarão por si e por mim».
92 Já a manhã clara dava nos outeiros
ResponderEliminarPor onde o Ganges murmurando soa,
Quando da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram terra alta, pela proa.
Já fora de tormenta e dos primeiros
Mares, o temor vão do peito voa.
Disse alegre o piloto Melindano:
«Terra é de Calecu, se não me engano;
93 «Esta é, por certo a terra que buscais
Da verdadeira Índia, que aparece;
E, se do mundo mais não desejais,
Vosso trabalho longo aqui fenece.»
Sofrer aqui não pôde o Gama mais,
De ledo em ver que a terra se conhece:
Os geolhos no chão, as mãos ao Céu,
A mercê grande a Deus agardeceo.
Os Lusíadas, Canto VI
PAVÃO AZUL
ResponderEliminarBem mais que azul!
Iridescente, taful,
exibo aos meus amores
todas aquelas cores
que as aves atlânticas desusam,
mas de que os ocidentais abusam
ao colorirem distâncias sonhadas
em suas cerâmicas oníricas,
esmaltadas.
"Isto é o que julgo saber sobre o Buda. Na altura em que o conheci - há mais de meio século - ele tinha setenta e dois ou setenta e três anos. Nasceu na república de Shakya, que fica nos contrafortes do Himalaia. Era originário de uma família de guerreiros chamada Gautama. Ao nascer, deram-lhe o nome de Sidhartha. Foi criado na capital, Kapilavastru. Em certa altura o pai de Gautama ocupou um cargo oficial na república, mas dificilmente era um rei, como certos pedantes de Shravasti e Rajagriha ainda gostam de acreditar.
Sidhartha casou-se. Teve um filho, Tahula, que quer dizer elo ou ligação. Suspeito que o filho deve ter começado a vida com outro nome, mas nunca descobri qual. O certo é que era uma ligação àquele mundo que o Buda queria eliminar...para si próprio.
Aos vinte e nove anos Sidhartha encetou o que chamou a busca nobre. Porque tinha uma consciência aguda de que "o eu lhe impunha obrigações para com o nascimento e, conhecendo o perigo que há em tudo o que tenha obrigações para com o nascimento, procurou a extrema segurança contra as ligações deste mundo - o nirvana".
A busca de Sidhartha durou sete anos. Viveu na floresta. Mortificou a carne. Meditou. A seu tempo, através dos seus próprios esforços - ou simplesmente por ter evoluído no decurso de todas as suas encarnações autênticas? - compreendeu não só a causa da dor mas a sua cura. Viu tudo o que existia e tudo o que viria a existir. Num confronto mágico derrotou o deus do mal, Mara, que é o senhor do mundo."
Gore Vidal, CRIAÇÃO, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1989, pp. 286.
You have travelled far? " he asks quietly.
ResponderEliminarI nod assent.
"What do you think of the Master Mahasaya? " he demands
suddenly.
I am startled. How has he come to know that I have been
to his native Bengal and visited Mahasaya in Calcutta? I gaze at him for a while in bewilderment and then recall myself to his question.
"He is a man who has won my heart," I reply. "But why do you ask?"
He ignores my counter-question. There is an embarrassing silence. I try to keep up the conversation by saying:
"I am looking forward to seeing him again when I revisit Calcutta. Does he know you? Shall I carry your greetings? "
The Yogi shakes his head firmly.
"You will never see Mahasaya again. Even now Yama, the god of death, is calling to his spirit."
Another pause. And then I tell him:
" I a m interested in the lives and thoughts of Yogis. Will you not tell me how you came to be one and what wisdom you have gained?"
Chandi Das does not encourage my attempt to interview him.
"The past is but a heap of ashes," he answers. " Do not ask me to poke my finger in the ashes and pick out dead experiences. I live neither in the past nor the future. In the depths of the human spirit, these things are no more real than shadows. That also is the wisdom I have learnt."
This is disconcerting. His stiff hieratic attitude upsets my composure.
"But we who live in the world of time must take account of them," I object.
'' Time? " he queries. ''Are you sure there is such a thing? ''
I fear that our talk is becoming fantastic. Does this man really possess the wonderful gifts which his disciple claims on his behalf? Aloud I say:
"If time did not exist, then the past and the future would both be here now. But experience tells us to the contrary."
" S o ? What you mean is that your experience, the world's experience, tells you that!""Surely, you do not suggest that you have a different experience of the matter? "
"There is truth in your talk," comes the strange answer.
Paul Bruton, In A Search in Secret India
Já que aqui se fala de Índia, aqui trago mais um dos poemas ("sons renovados" como diz a Deolinda) de Herberto Helder:
ResponderEliminar"e eu, que em tantos anos não consegui inventar um resquício metafísico,
ponho todo o empenho no trânsito das minhas cinzas:
oh retretes terrestres com destino final nas grandes águas marítimas:
glória atlântica,
índica megalomania das tripas!"
Herberto Helder (2014) A Morte sem Mestre: Porto. Porto Editora (p. 42)
Esta proximidade (intimidade?) com a morte, que logo no título é estabelecida, é uma das características mais inquietantes deste livro. Morte individual com laivos coletivos, ou morte coletiva em cada indivíduo. Não sei. Herberto Helder, sim.
Já agora, gostaria de partilhar outra informação que me parece relevante. O livro de Herberto Helder começa com a seguinte frase, aviso prévio para quem o vai ler:
ResponderEliminar"Tudo quanto neste livro possa parecer acidental
é de facto intencional."
O que confere à leitura uma gravidade maior.