sexta-feira, 20 de junho de 2014

Viajar segundo Montaigne (2)

Apesar de sujeito a cólicas, mantenho-me a cavalo sem desmontar, e sem me aborrecer, umas oito a dez horas - "Mais que o permitem as forças e a condição da velhice" (Virgílio, Eneida, VI, 114). Nenhum clima me é inimigo, excepto o calor áspero de um sol abrasador, já que os guarda-sóis que se usam em tília deste os tempos de Roma antiga, cansam mais os braços que descansam a cabeça. Gostaria de saber qual a técnica usada pelos Persas, em tempos tão remotos e quando o luxo primeiro surgiu, para produzir vento fresco e sombras a seu talante, como conta Xenofonte. Gosto de chuva e de lama tal como os patos. A mudança de ares e de clima não me afecta: tanto se me dá que tempo faça. As únicas alterações que me atingem são as produzo dentro de mim, e essas são menos frequentes quando viajo.
Sou difícil de mover, mas uma vez posto a caminho, vou tão longe quanto se quiser. Custa-me tanto abalançar-me aos pequenos empreendimentos como aos grandes e tanto aprestar-me para uma jornada de visita a um vizinho como para uma viagem propriamente dita. Habituei-me a fazer as minhas jornadas à espanhola, de uma só tirada, jornadas grandes e razoáveis; e quando a canícula mais aperta, faço-as de noite, do pôr-do-sol ao alvorecer. A alternativa - tomar as refeições numa pousada de caminho à pressa em em tumulto - é incómoda, especialmente quando os dias são curtos. Os meus cavalos também passam melhor com o meu método. Nunca nenhum que haja sido capaz de comigo aguentar a primeira jornada me veio a ficar mal. Dou-lhe de beber em toda a parte e velo tão-só por que lhe reste bastante caminho para digerir a água. A minha preguiça a levantar-me dá ensejo aos que me acompanham de dejejuarem descansados antes de nos lançarmos à estrada. Quanto a mim, nunca é tarde de mais para comer: o apetite vem-me em comendo e não de outro modo; só tenho fome à mesa.
Alguns deploram que me agrade continuar a prática deste exercício estando cansado e velho. Não têm razão. A melhor altura para nos apartarmos da família é quando a tivermos em condições de prosseguir sem nós, quando a deixarmos em ordem tal que na nossa ausência não desminta a sua situação anterior. É bem mais imprudente ir para longe de casa deixando-a à guarda de quem seja menos fiel e menos se interesse em prover às nossas necessidades.
[...] Quanto aos deveres da amizade marital serem segundo se pensa, lesados por uma tal ausência, não o creio. Trata-se, pelo contrário, de uma relação que amiúde arrefece por causa de uma presença demasiado contínua e que é prejudicada pela assiduidade. Qualquer mulher que não seja a nossa nos parece de bom convívio. E cada um sabe por experiência que o ver-se continuamente não pode proporcionar o prazer causado pelo separar-se e reunir-se a intervalos. Tais interrupções enchem-me de um renovado amor pelos meus e tornam-me mais agradável o voltar a estar em casa: a alternância aviva-me consecutivamente o apetite num e noutro sentido.
[...] Desde Roma, mantenho e vejo a minha casa e os bens que lá deixei: vejo as minhas muralhas, as minhas árvores e as minhas rendas crescerem ou decrescerem quase tão de perto como quando lá estou - "Diante dos meus olhos flutua a minha casa e a imagem daqueles lugares" (Ovídio, Tristia, III, iv, 57).
Se fruíssemos apenas daquilo que temos à mão de semear: adeus, escudos que estão nos nossos cofres!  adeus, filhos que foram à caça! Queremo-los mais perto. No jardim é longe? E a meia jornada de distancia? Ora bem, e dez léguas é longe ou perto? Se for perto, que dizer, então, de onze, doze ou treze, e por aí adiante.

Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios (Antologia). Introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 249-314.

16 comentários:

  1. (...)
    Ainda tenho duas questões a tratar contigo, a primeira é se me voltas a perguntar porquê, no tom em que o fizeste agora, darei ordem para que te dêem uma boa ração de chicote no lombo, Sim, senhor, murmurou subhro de cabeça baixa, A segunda tem que ver com essa tua cabecinha e com a viagem que ainda mal começou, se nesse bestunto ainda tens uns restos de ideias aproveitáveis, apreciaria saber se é de tua vontade que fiquemos aqui eternamente, Salomão ainda dorme, meu comandante, Então agora quem governa aqui é o elefante, perguntou o comandante entre irritado e divertido, Não, meu comandante, decerto recordareis ter-vos dito que nós deveríamos organizar em função, confesso que não sei de onde me saiu esta palavra, dos hábitos e necessidades de Salomão, Sim, e quê, perguntou o comandante que já perdia a paciência, É que, meu comandante, salomão, para estar bem, para que possamos entregá-lo com boa saúde ao arquiduque de áustria, terá de descansar nas horas de calor, De acordo, respondeu o comandante, levemente perturbado com a referência ao arquiduque, mas a verdade é que ele não tem feito outra coisa em todo o santo dia, este dia não conta, meu comandante, foi o primeiro, e já se sabe que no primeiro dia as coisas sempre correm mal, então, que fazemos, dividimos os dias em três partes, a primeira, desde manhã cedo, e a terceira, até ao sol-pôr, para avançarmos o mais depressa que pudermos, a segunda, esta em que estamos, para comer e descansar, Parece-me um bom programa, disse o comandante, optando pela benevolência. a mudança de tom animou o cornaca a expressar a inquietação que o viera atormentando durante todo o dia, meu comandante, há algo nesta viagem que não entendo, Que é que não entendes, em todo o caminho não nos cruzámos com ninguém, em minha modesta opinião não é normal, estás enganado, cruzámo-nos com bastantes pessoas, tanto de uma direcção como da outra, Como, se eu não as vi, perguntou subhro com os olhos arregalados de espanto, estavas a dar banho ao elefante, Quer dizer que de cada vez que salomão se estava banhando passaram pessoas, não me faças repetir, estranha coincidência, até parece que salomão não quer que o vejam, Pode ser, sim, mas agora, estando nós aqui acampados há não poucas horas, também não passou ninguém, aí a razão é outra, a gente vê o elefante de longe, como uma abantesma, e volta para trás ou mete por atalhos, se calhar julgam que é algum enviado do diabo, Sinto a cabeça a doer-me, até cheguei a pensar que el-rei nosso senhor tivesse mandado despejar os caminhos, Não és assim tão importante, cornaca, Eu, não , mas salomao sim,
    (...)

    José Saramago, A Viagem do Elefante

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  2. Viagem Ao Fundo do Ego

    Rádio Taxi

    Há um lugar místico em mim
    Algo assim bem escondido
    Um planeta explorado
    Um horizonte perdido

    Me embrenhei na mata virgem
    Como um bom nativo zumbi
    Mergulhei fundo no oceano
    E como jacques cousteau parti

    Explorador sem experiência
    Marinheiro de primeira viagem
    Embarquei de peito aberto
    Levando só coragem

    Coragem pra enfrentar
    Frente a frente eu comigo
    Como se enfrenta um irmão
    No exército inimigo

    Coragem pra encarar
    Frente a frente eu no espelho
    Como se encontra com um irmão
    Que lhe nega um conselho

    Quase no fim da estrada
    Uma voz veio me dizer
    Se você quer seguir, cuidado
    Não vai gostar do que vai ver

    Minha volta foi difícil
    Retornei de mãos vazias
    Dessa minha ego- trip
    Não fui davi nem fui golias

    Explorador sem experiência
    Viajante sem bagagem
    Perdi tudo o que eu tinha
    E o que eu tinha era só coragem

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  3. Segunda-feira, 3 de Agosto

    A beatitude de Paris em Agosto: turistas e calor nos boulevards, mas o restaurante em que jantámos, Ben e eu, estava praticamente vazio. A seguir passeámos pelos quais do Sena num calor noturno abafado e envolvente. Ben parece ter já cerca de dez anos mais do que eu, mas dava a impressão de estar genuinamente interessado em ouvir as notícias sobre Oxford e o imbróglio Peter/ Tess.
    Está a trabalhar numa galeria, pequena, mas bastante pomposa, Auguste Dard, cuja linha é muito moderna: Gris, Léger, Pinsent, Brancusi, Dax, etc. - e, claro, qualquer Picasso ou Braque a que consigam deitar a mão. Achou que era uma loucura ir a Espanha em Agosto e não ficou convencido com o argumento (de Dick, é certo) que os países estrangeiros só podiam ser plenamente conhecidos e experimentados nos extremos das suas condições climáticas - o calor abrasador do verão ou o abraço de ferro do inverno.

    Terça-feira, 4 de Agosto

    No comboio de Paris para Biarritz. Antes de partir, Ben insistiu para que comprasse um pequeno esboço a óleo não emoldurado de Derain. Adiantou-me as sete libras necessárias e disse que o empacotaria e enviaria para Summer Place (telegrafei à minha mãe e pedi-lhe para devolver o dinheiro a Ben). Disse-lhe que não podia realmente dar-me ao luxo de o comprar, não com todas as dívidas que tinha em Oxford, mas ele insistiu. Confia em mim, não parava de repetir, nunca te arrependerás. É a nossa grande oportunidade, disse, estar aqui, agora, em Paris com estes artistas e com acesso, embora modesto, a dinheiro. Qualquer coisa na forma como falava convenceu-me de que Ben ia fazer fortuna. Reparei que no cartão de visita se chamava "Benedict" Leeping - Benjamim já não existe. Quando me perguntou porque estava tão depauperado, expliquei-lhe que era deliberado. Viajava só com dez libras - outra das restrições de Dick. Demasiado dinheiro, acredita Dick, afasta-nos do país que se visita. Algumas privações, a necessidade de economizar, mesmo algum sofrimento, aproximam-nos do país e da alma do seu povo.
    - Espero que não estejas a ser dominado por esse Dick Hodge - disse Ben.
    Não há perigo, garanti-lhe. Dick tem estado com a família em Ostende - porque será que quis que nós encontrássemos em Biarritz?

    William Boyd, Viagem ao Fundo de Um Coração - os diários íntimos de Logan Mountstuart

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  4. Viagem a Itália, Roberto Rosselini, 1954
    João Bénard da Costa
    (...)
    Viaggio in Italia, para quem nunca o tenha visto, o que é? (...) é a história da separação e da reconciliação de um casal. O casal Joyce, casal inglês de meia-idade (...) bem instalado na vida, que vem a Itália (...) A viagem - rumo a Nápoles (...) dura sete dias (número mágico). (...) Ao sétimo dia, a propósito de uma discussão absurda sobre o Bentley deles, decidem divorciar-se logo que voltem à Inglaterra. Horas depois, o carro em que viajavam, muito calados, é forçado a parar porque uma procissão atravessa a estrada. Saem, cada um de sua vez, para ver o que se passa. A certa altura, a multidão desata a gritar “milagre” a propósito do tal paralítico. Na confusão, cada um deles é empurrado em direções opostas. Katherine chama pelo marido. Quando este a consegue alcançar, abraçam-se e juram nunca mais se separar.
    (...) Qualquer pessoa está mesmo a ver que divorciar-se é o que podem fazer de melhor. Uma procissão, o “ave” de Fátima e os dois nos braços um do outro a jurar amor eterno. Milagre da Virgem que protege o santo matrimónio. (...)

    Só que dizer isto ou não dizer nada é praticamente a mesma coisa. (...)
    Vou referir-me apenas à seqüência inicial, quando, no Bentley, Katherine e Alex se dirigem para Nápoles. Primeiro, um diálogo, pedagogicamente concebido, que nos dá todas as informações úteis: (...) Depois, o marido adormece e percebemos que é a mulher quem guia. O marido acorda e propõe à mulher trocar de lugar. Em vez do corte e novo plano do carro com as novas posições, assistimos à troca toda, (...). No segundo minuto do filme, segunda paragem: agora é uma manada de bois que atravessa a estrada e os impede de prosseguir. Irritação de Alex, que já comentara que as estradas em Itália são um perigo. Segue-se uma bifurcação: uma seta indica Nápoles para a esquerda e Latina para a direita. O carro vira à esquerda (...), mas a câmera vira-se para a direita, como se o outro caminho fosse o bom e eles o não soubessem. Pouco depois, Katherine faz uma expressão de horror: “Que é isto? Sangue?” E Alex responde, irônico, que foi só um mosquito que se esborrachou (...)
    nesses cinco minutos de filme, quem for capaz de ver, viu o essencial. A viagem é conduzida pela mulher, como sempre o será ao longo do filme, porque é ela quem vê quase tudo o que o marido não vê, como é ela quem o chama no final. Mas ela sem ele não existe. Por isso, ele tem de conduzir também e tudo o que lhe acontece, depois, é tão fio condutor quanto o que lhe acontece a ela. Em cada bifurcação, há sempre duas possibilidades. Seguir o que está predeterminado implica deixar aberto o desconhecido. A qualquer plano ou ordenação sobrepõe-se a desordem e o imprevisto (...) Na vida não há símbolos, há sinais. A cada momento, cada sinal.
    E é a acumulação de todos esses momentos e de todos esses sinais que, a cada momento e a cada sinal, vai minando aquele homem e aquela mulher que parecem fatalmente seguir numa outra direção (a ruptura) e não menos fatalmente estão a seguir noutra (a redescoberta). Quando perdem o pé (o carro, a casa, a direção, a estrada), tudo o que de vital e mortal se acumulou neles explode, tão irracional e tão racionalmente, como a fé da multidão no milagre da Virgem. E é essa explosão - essa erupção, essa ionização, se quisermos ficar ao pé dalgumas imagens do filme - que os atira um para o outro, no mesmo abraço dos cadáveres de Pompéia. (...) Só que dois corpos juntos, (...), são o milagre total. (...) Em vez da fé, a caridade. É o cerne do cinema de Rossellini.
    Nem eu nem ninguém vos pode jurar que, regressados ao carro ou a casa, Alex e Katherine não recomecem as quezílias. Mas o milagre aconteceu. Não é bom que o homem ou a mulher estejam sós. Viaggio in Italia, como disse Rohmer, é um drama com três personagens. O terceiro é Deus. E em Viaggio in Italia quem O não vir não vê nada.

    É só um filme? Precisamente.


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    1. Lembro-me tão bem do efeito que teve em mim a leitura deste texto! Que falta sinto de Bénard da Costa, do seu entusiasmo e da sua inteligência! Obrigada por o ter aqui trazido, MC, e por mo fazer relembrar.

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  5. Da leitura deste texto de Montaigne resulta inevitável a comparação:
    quanto esforço o da viagem de então e quão facilitado tudo parece agora!
    Esta narrativa da experiência (própria) está cheia de verdades e de bom senso. Sobre a viagem e os seus métodos, sobre as capacidades de quem viaja suportar o desconforto que lhe é inerente, sobre a disponibilidade para viajar que aumenta com a idade.
    Mas o que é mais interessante é o que é afirmado sobre a "amizade marital" e as vantagens que a viagem e o afastamento periódico do marido lhe pode trazer. Dá que pensar. É que nesse tempo às mulheres não estava reservada possibilidade equivalente, a não ser esperar pelo marido, a viagem não era para ela. Quanto é que essa realidade ainda atua hoje em nossas mentes sem termos disso consciência?

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  6. Déjeuner du matin

    Il a mis le café
    Dans la tasse
    Il a mis le lait
    Dans la tasse de café
    Il a mis le sucre
    Dans le café au lait
    Avec la petite cuiller
    Il a tourné
    Il a bu le café au lait
    Et il a reposé la tasse
    Sans me parler

    Il a allumé
    Une cigarette
    Il a fait des ronds
    Avec la fumée
    Il a mis les cendres
    Dans le cendrier
    Sans me parler
    Sans me regarder

    Il s'est levé
    Il a mis
    Son chapeau sur sa tête
    Il a mis son manteau de pluie
    Parce qu'il pleuvait
    Et il est parti
    Sous la pluie
    Sans une parole
    Sans me regarder

    Et moi j'ai pris
    Ma tête dans ma main
    Et j'ai pleuré

    Jacques Prévert

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  7. Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu. As mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos jovens desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda a sensualidade. Quando a dança termina, podem ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem desperta de um sonho bom.”

    CHIZIANE, 2004, pp.160

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  8. “Agora entendo.O mundo é este chão que os meus pés pisam. É esta cadeira onde me sento. É o carinho que dou, é a flor que recebo. O mundo é o meu espelho, o meu quarto, o meu sonho. O mundo é o meu ventre. O mundo sou eu. O mundo está dentro de mim.”

    Chiziane, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. Lisboa: Editorial Caminho, 2004, 3ª ed, pp.253.

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  9. Ir e Voltar

    Vinda da Benedita, passava no Carvalhal por volta das 8 horas e 30, num fragor de chapa e de motor a diesel. A paragem ficava mesmo defronte da casa dos meus Avós, e um banco corrido de madeira servia de consolo a quem a aguardava, frequentemente atrasada. Quem, como eu, acumulou anos de passageiro, podia reconhecer a sua aproximação pelo som da dupla das mudanças e pelos ritmos de aceleração. Adivinhava a curva da Mata, o sinal para, desatando a correr desde a casa dos meus Pais, e pulando para evitar as pequenas poças de água e a lama de mistura com excrementos dos animais, chegar ofegante à paragem no exato segundo antes dela. Mas corria um sério risco: se não existissem outros passageiros a estender o braço pedindo a paragem, o condutor tomaria balanço na pequena reta que antecedia a casa dos meus Avós, deixando-me dependente de uma aleatória boleia ou da disponibilidade rabugenta do meu Pai para me transportar até às Caldas.
    Ao longo de uma viagem por um macadame poeirento no verão e polvilhado de poças de água amarelada no inverno, as hipóteses da camioneta da carreira fazer os onze quilómetros nos quarenta minutos da tabela eram quase sempre remotas. Os atrasos espreitavam a todo o instante, todos os dias.
    (...)
    Nos campos, a passagem da camioneta era sempre um acontecimento. Sabia-se quem a ia tomar, pois toda a gente via os preparativos e os atavios de quem ia à cidade tratar de assuntos, em geral excecionais. O ruído das mudanças sobrepunha-se aos barulhos da manhã e marcava uma presença que a todos prendia a atenção. "Lá vai a camioneta da carreira". por momentos ela ocupava as vidas dos que ficavam. Podiam ouvi-la vencendo as curvas da Cabeça Alta, e os mais entendidos conseguiam identificar o condutor ("Hoje é aquele doido do F. o motorista) e dar fé dos protestos do motor ou dos seus achaques menos comuns.

    João B. Serra, in Continuação: Crónicas dos anos 50/60

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  10. CEGONHA - 2
    - "Pois! De Paris é que é:
    vem de lá o bebé
    via postal."
    Eis o mote...
    e uma honra distinta!
    Então e o meu filhote
    vem de onde, afinal?
    Alguém que os desminta!!!

    " Madame de Rambouliet, depois de nos conhecermos há umas seis semanas, concedeu-me a honra de me levar na sua carruagem umas duas léguas para fora da cidade - De todas as mulheres, Madame de Rambouliet é a mais correcta; e não espero ver outra com mais virtudes e pureza de coração. No regresso, Madame de Rambouliet pediu-me que puxasse o cordão. Perguntei-lhe se precisava de alguma coisa. - "Rien que pisser", respondeu Madame de Rambouliet.
    Não vos ofendais, gentil viajante, por deixar a Madame de Rambouliet m*jar à vontade. E vós, belas ninfas místicas!, ide todas "colher a vossa rosa", e espalhar as pétalas pelo caminho, pois Madame de Rambouliet não fez mais do que isso.
    Dei a mão a Madame de Rambouliet para a ajudar a descer da carruagem; e nem que eu fosse sacerdote da casta de CASTÁLIA poderia ter oficiado à sua fonte com decoro mais respeitoso.

    Nota do trad: Madame de Rambouliet é uma alusão à Marquesa de Rambouillet, mecenas das artes e das letras em cujo "salon" se reuniam autores [...] e as "Précieuses" [ridicules].

    Laurence Sterne, UMA VIAGEM SENTIMENTAL POR FRANÇA E ITÁLIA PELO SR: YORICK, Lisboa, Edições Antígona, 1999, pp. 121-122.

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  11. "Because women in truth exist entirely for the propagation of the race, and their destiny ends here, they live more for the species than for the individual, and in their hearts take the affairs of the species more seriously than those of the individual. This gives to their whole being and character a certain frivolousness, and altogether a certain tendency which is fundamentally different from that of man; and this it is which develops that discord in married life which is so prevalent and almost the normal state."

    in "On Women", Arthur Schopenhauer

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  12. "Maria das Mercês corre para a porta, mas volta para ir buscar a lanterna eléctrica. Ao passar por Tomás Manuel pára um segundo, inclina-se ao ouvido dele:
    “Animal”, segreda-lhe com raiva, como se fosse uma acusação.
    Com mais força e com mais autoridade do que se a tivesse lançado em voz alta e perante testemunhas.
    Pelos meus cálculos, esta primeira e última consoada de Tomás Manuel, a ter tido lugar, teve-o no Natal de 59. Casada há um ano, não faz sentido que o insulto de Maria das Mercês ficasse no ar sem um arrependimento.
    Estavam no começo, sofriam um pelo outro.
    “Amor, que insensatez,” teria ela dito, lavada em lágrimas.
    Assim é que está certo."

    José Cardoso Pires, "O Delfim"

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  13. Porque estou a beber tanto? Bem, uma das razões é porque ao domingo sei que tenho de voltar para Nova Iorque na segunda-feira de manhã. A alma de um lugar é algo em que acredito profundamente - e é por isso que adoro Mystic House - e a alma de Upper West Side não é simplesmente para mim. Detesto o nosso apartamento; detesto a sua localização e está a começar a azedar-me toda a ilha de Manhattan. Que combinação de fatores provoca isto? A estreiteza das avenidas norte-sul em West Side. Os edifícios sem nada de notável que as revestem. A altura dos ditos edifícios. E há sempre demasiadas pessoas em Upper West Side. Estamos demasiado apinhados, os passeios estão sempre demasiado concorridos de peões. E depois há a vastidão fria e enorme do Hudson. Não é simplesmente para mim - a minha alma murcha. Já sugeri muitas vezes a Alannah mudarmo-nos, mas ela adora este apartamento. Talvez eu não esteja habituado a viver com duas meninas pequenas. Talvez não seja feliz.

    William Boyd, Viagem ao Fundo de Um Coração- os diários íntimos de Logan Mountstuart

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  14. Escuta-os

    Iniciam o cântico da noite

    O noturno despertar
    de outras viagens.

    Xavier Zarco, in O guardador das águas

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  15. A hora da partida soa quando
    Escurecem o jardim e o vento passa,
    Estala o chão e as portas batem, quando
    A noite cada nó em si deslaça.
    A hora da partida soa quando
    As árvores parecem inspiradas
    Como se tudo nelas germinasse.

    Soa quando no fundo dos espelhos
    Me é estranha e longínqua a minha face
    E de mim se desprende a minha vida.

    Sophia de Mello Breyner Andresen

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