segunda-feira, 9 de junho de 2014

O olhar espalmado. Eugénio de Andrade

Notas de viagem

Os amieiros, a casa em ruína,
o olhar
espalmado entre as folhas
do livro, as nasaladas
vozes das crianças sobre a água,
a boca da sombra onde as maçãs
ardem com brilhos de metal,
a repentina
aparição do silêncio
ao fundo das escadas
a porta aberta
sobre a descarnada luz da cal.

Eugénio de Andrade, Poesia. Vila Nova de Gaia, Rosto Editora, 2011, p 546

10 comentários:

  1. A Secreta Viagem

    No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
    ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
    Como podem só dois governar um navio?
    Melhor é desistir e não fazermos nada!

    Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
    tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
    Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
    Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...

    Aparentes senhores de um barco abandonado,
    nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
    Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
    se justifica, enflora, a secreta viagem!

    Agora sei que és tu quem me fora indicada.
    O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
    — Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
    a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!

    David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"

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  2. Escrito num Livro Abandonado em Viagem

    Venho dos lados de Beja.
    Vou para o meio de Lisboa.
    Não trago nada e não acharei nada.
    Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
    E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.
    Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
    Fui, como ervas, e não me arrancaram.

    Álvaro de Campos, in "Poemas"
    Heterónimo de Fernando Pessoa

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  3. Aquele que partiu
    Precedendo os próprios passos como um jovem morto
    Deixou-nos a esperança.
    Ele não ficou para connosco
    Destruir com amargas mãos seu próprio rosto Intacta é a sua ausência
    Como a estátua de um deus
    Poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas
    Ele não ficou para assistir
    À morte da verdade e à vitória do tempo
    Que ao longe
    Na mais longínqua praia
    Onde só haja espuma sal e vento
    Ele se perca tendo-se cumprido
    Segundo a lei do seu próprio pensamento
    E que ninguém repita o seu nome proibido.

    Sophia de Mello Breyner Andresen

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  4. A Arte dos Versos
    Toda a ciência está aqui,
    na maneira como esta mulher
    dos arredores de Cantão,
    ou dos campos de Alpedrinha,
    rega quatro ou cinco leiras
    de couves: mão certeira
    com a água,
    intimidade com a terra,
    empenho do coração.
    Assim se fez o poema.

    Eugénio de Andrade

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  5. Octavio Paz
    Homenaje a Claudio Ptolomeo

    Soy hombre: duro poco
    Y es enorme la noche.
    Pero miro hacia arriba:
    Las estrellas escriben.
    Sin entender compreendo:
    También soy escritura
    Y en este mismo instante
    Alguien me deletrea.

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  6. /…/
    Penetra surdamente no reino das palavras.
    Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
    Estão paralisados, mas não há desespero,
    há calma e frescura na superfície intata.
    Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
    Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
    Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
    Espera que cada um se realize e consume
    com seu poder de palavra
    e seu poder de silêncio.
    Não forces o poema a desprender-se do limbo.
    Não colhas no chão o poema que se perdeu.
    Não adules o poema. Aceita-o
    como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
    no espaço.
    Chega mais perto e contempla as palavras.
    Cada uma
    tem mil faces secretas sob a face neutra
    e te pergunta, sem interesse pela resposta,
    pobre ou terrível, que lhe deres:
    Trouxeste a chave?
    Repara:
    ermas de melodia e conceito
    elas se refugiaram na noite, as palavras.
    Ainda úmidas e impregnadas de sono,
    rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

    Carlos Drummond de Andrade

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  7. O olhar fica espalmado entre as folhas dos livros?
    Lá está a poesia a acrescentar sentido à (descrição da) experiência.
    A criar vida assim.

    A propósito, um poema ainda fresquinho, de tão há pouco que saiu:

    "se um dia destes parar não sei se não morro logo,
    disse Emília David, padeira,
    não sei se fazer um poema não é fazer um pão
    um pão que se tire do forno e se coma quente ainda por entre as linhas,
    um dia destes vejo que não vou parar nunca,
    as mãos súbito cheias:
    o mundo é só fogo e pão cozido,
    e o fogo é que dá ao mundo os fundamentos da forma,
    pão comprido nas terras de França,
    pão curto agora nestes reinos salgados,
    se parar não sei se não caio logo ali redonda no chão frio
    como se caísse fundo em mim mesma,
    a mão dentro do pão para comê-lo
    - disse ela"

    Herberto Helder (2014) A Morte sem Mestre: Porto. Porto Editora (p. 29)




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  8. TWO roads diverged in a yellow wood,
    And sorry I could not travel both
    And be one traveler, long I stood
    And looked down one as far as I could
    To where it bent in the undergrowth;

    Then took the other, as just as fair,
    And having perhaps the better claim
    Because it was grassy and wanted wear;
    Though as for that, the passing there
    Had worn them really about the same,

    And both that morning equally lay
    In leaves no step had trodden black.
    Oh, I marked the first for another day!
    Yet knowing how way leads on to way
    I doubted if I should ever come back.

    I shall be telling this with a sigh
    Somewhere ages and ages hence:
    Two roads diverged in a wood, and I,
    I took the one less traveled by,
    And that has made all the difference.

    Robert Frost

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  9. 'A cold coming we had of it,
    Just the worst time of the year
    For a journey, and such a journey:
    The ways deep and the weather sharp,
    The very dead of winter.'
    And the camels galled, sore-footed,
    refractory,
    Lying down in the melting snow.
    There were times we regretted
    The summer palaces on slopes, the
    terraces,
    And the silken girls bringing sherbet.

    Then the camel men cursing and
    grumbling
    And running away, and wanting their
    liquor and women,
    And the night-fires going out, and the
    lack of shelters,
    And the cities hostile and the towns
    unfriendly
    And the villages dirty and charging high
    prices:
    A hard time we had of it.
    At the end we preferred to travel all
    night,
    Sleeping in snatches,
    With the voices singing in our ears,
    saying
    That this was all folly.

    Then at dawn we came down to a
    temperate valley,
    Wet, below the snow line, smelling of
    vegetation;
    With a running stream and a water-mill
    beating the darkness,
    And three trees on the low sky,
    And an old white horse galloped in
    away in the meadow.
    Then we came to a tavern with
    vine-leaves over the lintel,
    Six hands at an open door dicing for
    pieces of silver,
    And feet kicking the empty wine-skins.
    But there was no imformation, and so
    we continued
    And arrived at evening, not a moment
    too soon
    Finding the place; it was (you may say)
    satisfactory.

    All this was a long time ago, I
    remember,
    And I would do it again, but set down
    This set down
    This: were we led all that way for
    Birth or Death? There was a Birth,
    certainly,
    We had evidence and no doubt. I had
    seen birth and death,
    But had thought they were different;
    this Birth was
    Hard and bitter agony for us, like
    Death, our death.
    We returned to our places, these
    Kingdoms,
    But no longer at ease here, in the old
    dispensation,
    With an alien people clutching their
    gods.
    I should be glad of another death.

    TS Elliot

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  10. CANÁRIO
    Inventivo, consegui.
    Abri a porta com o bico e fugi.
    Agora, só canto a história
    de dentro do aquário da memória.
    Água que é turva turva...

    "N'uma tarde do mez de maio do anno da Graça de 1910 encontrei-me debaixo do Arco da Rua Augusta com o meu velho e dedicado amigo Joaquim Ramos (a quem todos na minha familia chamam o RAMINHOS) que logo me abraçou com a costumada ternura bem explicavel pelo que vou contar.
    Fazia muito calôr e o Raminhos andava cançado, porque desde pela manhã girava na cobrança d'uma companhia importante, onde, desde muito tempo, era empregado fiel.
    Estava indicada a cerveja fresca e d'ahi a minutos abancavamos os dois no Café Martinho da Arcada.
    Raminhos estava preocupado com o comêta Halley que por esse tempo fazia a sua apparição pela madrugada. Tinha morrido o Grande Rei Eduardo VII, mantenedor da Paz, amigo seguro do nosso Reino e do nosso Rei... Qualquer coisa de grave estava para succeder... Lá tranquilisei o meu companheiro de conversa conforme pude, mas a verdade é que a mim tambem não me era indifferente a visita do mal afamado astro errante.
    Propuz em todo o caso que mudassemos de conversa e, de repente, já mais bem disposto com o refresco, perguntou-me o Joaquim quantos annos eu tinha. Respondi-lhe logo que se chegasse ao dia 2 de setembro seguinte faria 44 annos.
    Então elle com os olhos postos no chão do velho botequim, com um sorriso mixto d'alegria e de tristeza, que era o da saudade, exclamou como quem accorda d'um sonho:
    - Ainda me parece que foi hontem que a Barbara, de madrugada, me accordou para dizer que me levantasse depressa e fizesse uma chicara de chá fraquinho para o menino que tinha nascido.
    Ora o menino para quem era destinado o chá veio a ser a mesma pessoa que está escrevendo estas recordações."

    Thomaz de Mello Breyner, MEMORIAS DO PROFESSOR THOMAZ DE MELLO BREYNER, 4.º CONDE DE MAFRA, I, 1869-1880, Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira, 1930, pp. 1-2.

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