Não fora o mar, e eu seria feliz na minha rua, neste primeiro andar da minha casa a ver, de dia, o sol, de noite a lua, calada, quieta, sem um golpe de asa.
Não fora o mar, e seriam contados os meus passos, tantos para viver, para morrer, tantos os movimentos dos meus braços, pequena angústia, pequeno prazer.
Não fora o mar, e os meus sonhos seriam sem violência como irisadas bolas de sabão, efémero cristal, branca aparência, e o resto - pingos de água em minha mão.
Não fora o mar, e este cruel desejo de aventura seria vaga música ao sol pôr nem sequer brasa viva, queimadura, pouco mais que o perfume de uma flor.
Não fora o mar e o longo apelo, o canto da sereia, apenas ilusão, miragem, breve canção, passo breve na areia, desejo balbuciante de viagem.
Não fora o mar e, resignada, em vez de olhar os astros tudo o que é alto, inacessível, fundo, cimos, castelos, torres, nuvens, mastros, iria de olhos baixos pelo mundo.
Não fora o mar e o meu canto seria flor e mel, asa de borboleta, rouxinol, e não rude halali, garra cruel, Águia Real que desafia o sol.
Não fora o mar e este potro selvagem, sem arção, crinas ao vento, com arreio, meu altivo e indomável coração
Não fora o mar e comeria à mão, não fora o mar e aceitaria o freio.
CANTO À SAUDADE Profundo, dizem do mar, sua água No rumor, toca a saudade. Mar sem limites, vem da praia E no longe alcança minha alma. Pego o alaúde, subo escadas… E só, no terraço, com a lua cheia Esta canção que diz melancolia Toco e rebento as ondas, as entranhas.
Metodologia da tradução/adaptação do poema de Li Ye O poema foi por mim adaptado e/ou traduzido, a partir do trabalho prévio de uma aluna chinesa, Zhao Chuxin, que terminou a licenciatura no ano passado. Pedi-lhe que fizesse uma lista de todos os caracteres chineses, constantes do poema chinês, com os respectivos vocábulos em português, a partir da microestrutura de um dicionário de chinês-português, de referência. Em seguida, cruzei a informação, tentando obter as linhas de sentido conducentes a figuras como sinestesias e comparações que ocorrem no poema-fonte. Com esses dados, concebi um esqueleto com o mesmo número de versos e de esquema métrico idêntico, mas sem palavras, só com caixas… Acreditando na tese de Octávio Paz em O Arco e a Lyra, e obrigando a minha aluna a ler muitas vezes cada verso, a rima, entoação e ritmo criaram uma musicalidade que gravei e que veio a invocar e convocar as palavras portuguesas, em situação de isolamento total. Não fui mais que um mediador. No fim, confrontei o “poema” com as traduções inglesa e portuguesa e confesso, que prefiro esta, com alguns pontos fracos e um deles grave. Em vez de “entranhas” deveria ter colocado cordas ou mesmo “tripas”, como numa das traduções portuguesas. O que fiz foi ousar adaptar e tenho bons motivos estéticos, muito embora esta poetisa tivesse sido uma transgressora a nível lexical, tocando até uma certa vulgaridade… este pode ser um dos pecados… Mesmo assim, considero esta palavra muito bem “achada”.
Li Ye foi sacerdotisa taoísta, de uma das mais cultas dinastias da História da China, a Dinastia Tang (618 d.C.-907 d.C.). É a glória deste país, a sua Idade de Ouro. Esta Dinastia incentivou a criação de Poesia, a designada Poesia Clássica Chinesa. Entre 2200 autores, contam-se 190 mulheres, sendo Li Ye uma delas.
Gostei muito da tua explicação. O interesse pelo que dizes será partilhado por leitores e leitoras deste blogue, estou certo. Fiz uma pequena operação: submeti o texto em chinês a um dos tradutores mais populares da net. Até tenho vergonha de colocar aqui o resultado. A imagem mais forte da memória que retive de ti, Deolinda, tem que ver com a poesia, que tratavas como ninguém.
Não fora o mar!
ResponderEliminarNão fora o mar,
e eu seria feliz na minha rua,
neste primeiro andar da minha casa
a ver, de dia, o sol, de noite a lua,
calada, quieta, sem um golpe de asa.
Não fora o mar,
e seriam contados os meus passos,
tantos para viver, para morrer,
tantos os movimentos dos meus braços,
pequena angústia, pequeno prazer.
Não fora o mar,
e os meus sonhos seriam sem violência
como irisadas bolas de sabão,
efémero cristal, branca aparência,
e o resto - pingos de água em minha mão.
Não fora o mar,
e este cruel desejo de aventura
seria vaga música ao sol pôr
nem sequer brasa viva, queimadura,
pouco mais que o perfume de uma flor.
Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem.
Não fora o mar
e, resignada, em vez de olhar os astros
tudo o que é alto, inacessível, fundo,
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,
iria de olhos baixos pelo mundo.
Não fora o mar
e o meu canto seria flor e mel,
asa de borboleta, rouxinol,
e não rude halali, garra cruel,
Águia Real que desafia o sol.
Não fora o mar
e este potro selvagem, sem arção,
crinas ao vento, com arreio,
meu altivo e indomável coração
Não fora o mar
e comeria à mão,
não fora o mar
e aceitaria o freio.
Fernanda de Castro, in "Trinta e Nove Poemas"
李冶 Li Ye (Dinastia Tang)
ResponderEliminar相思怨 人道海水深,
不抵相思半。
海水尚有涯,
相思渺无畔。
携琴上高楼,
楼虚月华满。
弹著相思曲,
弦肠一时断。
(Se publicar, use negrito, s.f.f.)
Obrigado, Deolinda. Não Tenho disponivel a funcionalidade do negrito.
ResponderEliminarPosso esperar de uma tradução?
(Vale antes esta, desculpa...)
ResponderEliminarCANTO À SAUDADE
Profundo, dizem do mar, sua água
No rumor, toca a saudade.
Mar sem limites, vem da praia
E no longe alcança minha alma.
Pego o alaúde, subo escadas…
E só, no terraço, com a lua cheia
Esta canção que diz melancolia
Toco e rebento as ondas, as entranhas.
Belíssimo. Duplamente obrigado.
ResponderEliminar(Publica apenas se vires que pode ser relevante.)
ResponderEliminarMetodologia da tradução/adaptação do poema de Li Ye
O poema foi por mim adaptado e/ou traduzido, a partir do trabalho prévio de uma aluna chinesa, Zhao Chuxin, que terminou a licenciatura no ano passado. Pedi-lhe que fizesse uma lista de todos os caracteres chineses, constantes do poema chinês, com os respectivos vocábulos em português, a partir da microestrutura de um dicionário de chinês-português, de referência. Em seguida, cruzei a informação, tentando obter as linhas de sentido conducentes a figuras como sinestesias e comparações que ocorrem no poema-fonte. Com esses dados, concebi um esqueleto com o mesmo número de versos e de esquema métrico idêntico, mas sem palavras, só com caixas… Acreditando na tese de Octávio Paz em O Arco e a Lyra, e obrigando a minha aluna a ler muitas vezes cada verso, a rima, entoação e ritmo criaram uma musicalidade que gravei e que veio a invocar e convocar as palavras portuguesas, em situação de isolamento total. Não fui mais que um mediador.
No fim, confrontei o “poema” com as traduções inglesa e portuguesa e confesso, que prefiro esta, com alguns pontos fracos e um deles grave. Em vez de “entranhas” deveria ter colocado cordas ou mesmo “tripas”, como numa das traduções portuguesas. O que fiz foi ousar adaptar e tenho bons motivos estéticos, muito embora esta poetisa tivesse sido uma transgressora a nível lexical, tocando até uma certa vulgaridade… este pode ser um dos pecados… Mesmo assim, considero esta palavra muito bem “achada”.
Li Ye foi sacerdotisa taoísta, de uma das mais cultas dinastias da História da China, a Dinastia Tang (618 d.C.-907 d.C.). É a glória deste país, a sua Idade de Ouro. Esta Dinastia incentivou a criação de Poesia, a designada Poesia Clássica Chinesa. Entre 2200 autores, contam-se 190 mulheres, sendo Li Ye uma delas.
Gostei muito da tua explicação. O interesse pelo que dizes será partilhado por leitores e leitoras deste blogue, estou certo.
ResponderEliminarFiz uma pequena operação: submeti o texto em chinês a um dos tradutores mais populares da net. Até tenho vergonha de colocar aqui o resultado.
A imagem mais forte da memória que retive de ti, Deolinda, tem que ver com a poesia, que tratavas como ninguém.
Lugares extraordinários dão lugar a comentários extraordinários. Suscitam poesia.
ResponderEliminarÉ o caso.
Grata por isso.