- Vai ser como morrer – disse.
Florentino Ariza surpreendeu-se porque era o adivinhar de um pensamento que não o abandonava desde que começara a viagem de regresso. Nem ele nem ela podiam imaginar-se noutra casa que não fosse o camarote, comendo de maneira que não a do navio, integrados numa vida que lhes seria alheia para sempre. Era, com efeito, como morrer. Não conseguiu dormir mais. Ficou deitado na cama com as duas mãos cruzadas sob a nuca. A um dado momento, a pontada de América Vicuña fê-lo retorcer-se de dor e não conseguiu adiar a verdade por mais tempo: fechou-se na casa de banho e chorou à sua vontade, sem pressa, até à última lágrima. Só então teve a coragem de confessar quanto a tinha amado.
Quando se levantaram já vestidos para o desembarque, tinham deixado ara trás os canais e os pântanos da antiga passagem espanhola e navegavam por entre os escombros dos barcos e dos tanques de óleos mortos da baía. Erguia-se uma quinta-feira radiosa sobre as cúpulas douradas da cidade dos vice-reis, mas, do tombadilho, Fermina Daza não conseguiu suportar a pestilência das suas glórias, a arrogância dos seus baluartes profanados pelas iguanas: o horror da vida real. Nem ele, nem ela, sem o dizerem, se sentiram capazes de se renderem de um modo tão fácil.
Encontraram o comandante na sala de jantar, num estado de desordem que não estava de acordo com a pulcritude dos seus hábitos: a barba por fazer, os olhos raiados pela insónia, a roupa transpirada da noite anterior, a fala alterada pelos arrotos a anis. Zenaida dormia. Começava a tomar o pequeno almoço em silêncio quando um barco a gasolina da Inspecção Sanitária mandou parar o barco.
O comandante, da ponte de comando, respondeu aos gritos às perguntas da patrulha armada. Queriam saber que tipo de peste traziam a bordo, quantos passageiros vinham, quanto estavam doentes, que possibilidades havia de novos contágios. O comandante respondeu que só traziam três passageiros, todos com cólera, e que se mantinham em total reclusão. Nem os que deviam ter subido em La Dorada, nem os vinte e sete homens da tripulação tinham tido qualquer contacto com eles. Mas o comandante da patrulha não se deu por satisfeito e ordenou que saíssem da baía e que esperassem no pântano de Las Mercedes até às duas da tarde, enquanto se preparavam os trâmites para o navio ficar de quarentena. O comandante soltou um palavrão de carroceiro e com um gesto feito com a mão mandou o piloto dar meia volta e voltar aos pântanos.
-Gabriel Garcia Marquez, Amor nos Tempos de Cólera. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987, p. 368-369.
MAR DE SARGAÇO
ResponderEliminarBela e trémula como um pedaço de sargaço
Boiado na corrente inútil,
VIu o poeta das fraquezas de aço
E de alva clâmide inconsútil.
Parou, abriu os olhos redondos
(Os seios - redondos),
E, como um fruto perfeitamente aberto,
Esperou do céu encoberto
A hora de ser sorvido e dar ciência.
Mas o poeta era vago
E ela perdeu a paciência.
Depois, virando ao Norte as ancas do regresso,
Procurou o seu lago,
Esse amplo esquecimento incolor que a embebia.
E era bela.
Mas já nada lhe peço:
Vi seu contorno arder lá numa estrela
Como o fruto de luz que em seu olhar havia.
Assim foi: com simplicidade
E (o que é mais) sem esteira.
Tranquilo, o mar ao meio é o selo da verdade
E atesta como foi a Última ou Primeira.
Vitorino Nemésio, "Minuete da Impaciente", IN POESIA (1935/1940), Lisboa, Bertrand, 1986, pp. 108.
Horário do Fim
ResponderEliminarmorre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
pela estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento
Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas