segunda-feira, 5 de maio de 2014

A viagem de Fermina Daza e Florentino Ariza (2). Gabriel Garcia Marquez

Na véspera da chegada fizeram uma festa com grinaldas de papel e lanternas coloridas. A chuva cessou ao entardecer. O comandante e Zenaida dançaram muito juntos os primeiros boleros que nesses anos começavam a estilhaçar corações. Florentino Ariza atreveu-se a sugerir a Fermina Daza que dançassem a sua valsa confidencial, mas ela recusou. No entanto, durante toda a noite, marcou o compasso com a cabeça e os saltos dos sapatos e houve até um momento em que dançou sentada sem dar-se conta, enquanto o comandante se confundia com a sua meiga energúmena na penumbra do bolero. Bebeu tanto licor de anis que tiveram de ajudá-la a subir as escadas e teve um ataque de riso com lágrimas que chegou a assustar toda a gente. Porém, quando conseguiu controlá-lo no remanso perfumado do camarote, fizeram um amor tranquilo e são, de avós maltratados, que iria fixar-se na sua memória como a melhor recordação daquela viagem lunática. Já não se sentiam como noivos recentes, ao contrário do que supunham o comandante e Zenaida e ainda menos como amantes tardios. Era como se tivessem saltado por cima do árduo calvário da vida conjugal e tivessem entrado directamente e sem mais delongas no amor. Seguiam em silêncio como dois velhos esposos escaldados pela vida, para lá das armadilhas da paixão, para lá das trapaças brutais das ilusões dos reflexos dos desenganos: para lá do amor. Pois tinham vivido juntos o suficiente para se darem conta de que o amor era amor em qualquer tempo e em qualquer lugar, mas tanto mais denso quanto mais próximo da morte.
Acordaram às seis. Ela com a dor de cabeça perfumada de anis e com o coração aturdido pela sensação de que o doutor Juvenal Urbino tinha voltado, mais gordo e mais jovem do que quando caíra da árvore e estava sentado na cadeira de baloiço à espera dela à porta de casa. No entanto estava suficientemente lúcida para dar-se conta de que não era o efeito do anis mas sim da iminência do regresso.


Gabriel Garcia Marquez, Amor nos Tempos de Cólera. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987, p. 367-368.

2 comentários:

  1. AMAZÓNIA, TERRA DE MIRABILIA

    Com olhos nublados de lágrimas e de chuva, empurrou o corpo do animal para a beira do rio, e as águas levaram-no pela floresta adentro, até aos territórios jamais profanados pelo homem branco, em direcção ao Amazonas, aos rápidos onde seria desfeito por punhais de pedra, para sempre a salvo das indignas alimárias.
    seguidamente arremessou a espingarda com fúria e viu-a mergulhar sem glória. Besta de metal indesejada por todas as criaturas.
    Antonio José Bolívar Proaño tirou a dentadura postiça, guardou-a embrulhada no lenço e, sem parar de amaldiçoar o gringo que estivera na origem da tragédia, o administrador, os garimpeiros, todos os que insultavam a virgindade da Amazónia, cortou com um golpe de machete um grosso ramo e, apoiando-se nele, pôs-se a andar na direcção de El Idilio, da sua choça e dos seus romances, que falavam de amor com palavras tão bonitas que às vezes lhe faziam esquecer a barbárie humana.

    Luis Sepúlveda, O VELHO QUE LIA ROMANCES DE AMOR, Lisboa, Asa, 2002, pp. 110.

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  2. Maria Costa05/05/14, 23:41

    Era verdade, tínhamos tempo. A falta de luz também inventava mais tempo para as pessoas estarem juntas, devagar. Para mim, a falta de luz era estar ali com ela, de mãos dadas - os meus lábios na espera dos lábios dela. (...) Quando somos crianças, o mundo fica bonito de repente. E simples. Parece um céu aberto com estrelas possíveis de serem apanhadas e guardadas numa gaiola sem paredes de fechar ninguém. (...)
    a beleza às vezes é um lugar
    onde o olhar já sabe aquilo que não quer esquecer.

    Ondjaki, in Uma Escuridão Bonita

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