sexta-feira, 16 de maio de 2014

Agora à Índia há-de ir! João Pedro Grabato Dias

DCXVI
Agora há-de ir à Índia! Agora tem
uma luzida Armada com que irá
partir do restelinho de Bheleém
até a Calicute, à Jáfa, à
sumptuosa Gôa, a todo o além-
-mar lusitano onde Ataíde está
na esteira dos antigos viso-reis;
que o Luso não esqueceu as suas leis!

DCXVII
Que não lhe traigam ora mais rezões
do grande luxo que é fretar a Armada!
Esta, Deos lha pediu! E as legiões
de cherubins que vê na revoltada
turbulência das núvens são rezões
de uma Rezão mais alto levantada
que o impele adiante pola renda
do Grande Mar na Lusitana Senda.

DCXVIII
Agora à Índia há-de ir! que lhe não venham
com censuras e mêdos e perdêres
de mulheres caprichadas que se arranham
só porque um raio vêem, e nos dizêres
que contam nos despois mais se reganham!
Não lhe venham com falas de mulheres
que Êle é já homem! E quem não quer segui-lo
pois que fique ao borralho bem tranquilo!

DCXIX
Outra coisa ouvirá que não conselhos
peganhados de tanto amolecer
que se pronto os desculpa é porque a velhos
as cousas diz na falta de as dizer!
Não ouvirá a railhos nem a relhos
que os orelhos não podem padecer
mais do que as santas ordens lá de cima
com que Seu Capitão o instrue e anima!

DCXX
Ele à Índia se irá! Pois esta Armada
e esta luzida tropa bem mantida
não servirão a cousa mais que nada
que esta nada fazer por toda a vida?
Não quer ouvir mais voz por protestada
a augurar-lhe cousas de partida!
Segue o seu Capitão. Deos vai a Gôa?!
Pois com ele se irá desta Lisboa.

DCXXI
Não há que dissuadi-lo. Todos calam
toda e qualquer razão por exterior
aos desejos do Rey que o não abalam
outros desejos que os de seu furor
em partir já enquanto os ventos falam
de propícia monção. Nem há valor
que, por justo, se imponha a este rey
que se julga regido de outra Ley!

DCXXII
Já a noute desceu quando se finda
a sessão de Conselho onde os conselhos
nem chegam a ouvir-se! O rey brinda
à Victória futura e pelos quelhos
que vão dar à Ribeira, a berlinda
abandona, metendo os tornozelhos
nas lamas da vazante. E olhando a luz
da lua, mui solene, traça a Cruz!

DCXXIII
Corre uma fresca aragem repentina
que eriça escamas tolas pelo rio
e musica nas cordas e chorina
dum pressago soluço de arripio.
- Dai-me um cavalo! - chegam-lhe uma crina
toda de prêto pês. - Já tanto frio!...
Chegam-lhe a capa toda em branco arminho
- Adeus! Entra-lhe a noite toda no caminho...

DCXXIV
Galopa feito vento pelo vento
que refresca mais pronto assim coagido
co'esta crina esta capa e este tormento
que o rasga fundo sem mais espora ou brido
que esse horror de ser vento mais que o vento...
Crúa espada com fio de granido...
Azourrague de bagas de pavor
sobre finas ilhargas de suor...

DCXXV
Galopa pelo escuro feito escuro
que tinge o arminho em rata de aço azul
as côxas forquilhadas num maduro
quente e frevoso escuro de paúl!
Rompe pela Alcáçova e ao muro
onde rasgada empena mostra o Sul
assoma num desvairo de ansiedade
auscultando o crescer da tempestade!

DCXXVI
Como um corpo de ovelhas voadoras
em rebanho de ladros e balidos -
- entre alcateias de uivos das sonoras
correrias dos lobos mal nutridos
que são os feros ventos - vêm nas horas
dum razar temeroso, com rangidos
onde um maior pavor se lhe acrescenta
as rogadoras nuvens da tormenta!

DCXXVII
Cordas grossas de chuva que borrasca
como açoute de pedra o lombo ao rio
forçam no paço entrada num som d'asca
nojosa e repetida. No vazio
da incredulidade em que se atasca
o Rey masca medonho desvario
de palavras soezes e profanas
que atira ao Céu como lançadas vaias!

DCXXVIII
Mas êste é um só momento! Uma rajada
em resposta à rajada! Logo volve
na pedra mais serena e tumulária
que imaginar se possa! Não devolve
já, ao vento, senão uma cansada
indiferença enojosa onde se move
como em pasta de pêz ou outro engonho
por onde deslocasse um lento sonho!...


As Quybyryacas. Poema Éthico em oitavas que corre como sendo de Luis Vaaz de Camões, em supeitíssima atribuição Frei Ioannes Garabatus.
Impressas em Moçambique, com rial privilégio de Jorge de Sena: em casa de Tempo Impressor, 1972.

João Pedro Grabato Dias, As Quibiríacas. Prefácio de Jorge de Sena. Lourenço Marques, Edição de J. P. Grabato D., Tempográfica, 1972,  Canto VI  [DCXVI-DCXXVIII].

6 comentários:

  1. (...)
    10
    Falaremos da hostilidade que Bloom,
    o nosso herói,
    revelou em relação ao passado,
    levantando-se e partindo de Lisboa
    numa viagem à Índia, em que procurou sabedoria
    e esquecimento.
    E falaremos do modo como na viagem
    levou um segredo e o trouxe, depois, quase intacto.
    11
    É indispensável tornar conhecidas ações terrestres
    com o comprimento do mundo e a altura do céu,
    mas é importante também falar do que não é assim
    tão longo ou alto.
    É certo que os Gregos tentaram aperfeiçoar
    tanto a Verdade quanto o gesto,
    porém as ideias foram de longe as coisas mais mudadas.
    Eis pois o momento de colocar a Grécia
    de cabeça para baixo
    e de lhe esvaziar os bolsos, caro Bloom.
    12
    Cuidado com os homens que partem com vontade
    e felizes: na primeira ação, se necessário,
    serão capazes de matar.
    Cuidado, pois, Bloom, com a tua vontade.
    (Mas preocupa-te também, nesta viagem,
    com o modo como fazes as coisas.)
    Porém Bloom não parte de Lisboa feliz, o que já não é mau.
    (...)
    15
    Mas a natureza também aparece, e muito,
    nesta viagem.
    O vento, por exemplo, que poderá parecer
    elemento neutro,
    que distribui os ligeiros incómodos por ricos
    e pobres,
    mas na verdade é apenas hábil:
    nos fracos provoca frio e nos fortes é leve brisa que
    acalma o calor excessivo.
    (...)
    19
    Esperamos, pois, Bloom, que cresças e que crescendo
    vás direto à realidade
    e não pares. Porque não basta
    encostares-te aos acontecimentos,
    o que pensámos para ti é bem mais profundo,
    não basta conheceres sete teorias,
    terás que subir a sete altas montanhas.
    E atravessar ainda os continentes
    como se a terra fosse uma extensão temporal
    capaz de medir os teus dias.
    20
    Atravessa as águas também, excelente amigo Blomm,
    quebra o mar em dois.
    O mar é um mamífero,
    o barco, o punhal do sacrifício.
    Porque, como todos os animais,
    o mar só é arrogante
    até encontrar o seu dono.
    Falamos do mar, mas talvez
    seja a terra e o céu que exigem ser descritos.
    Bloom, Bloom, Bloom."
    (...)

    Gonçalo M. Tavares, in Uma Viagem à Índia (2010)

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  2. Uma viagem no coração do caos
    (...)

    "Para nós, todas as viagens são viagens à índia. As do passado porque para lá se dirigiam sem saber que a alcançariam. De tão percorridas não precisam de se invocadas. São pura legenda. Gonçalo M. Tavares deixa-as no limbo em que se dissolveram: Jerusalém, Atenas, Roma, o Graal, o novo mundo, a própria natureza, como labirinto +avido de catástrofe, como se fosse a Cassandra de si mesma, já estão inscritas no seu futuro esquecimento. (...)
    Não sendo (ainda que) uma profunda e divertida «suma ateológica» da nossa existência como Ilusão, à maneira de Antero (com o humor a mais), Uma Viagem à Índia é uma navegação parada e fulgurante da nossa alma de pós-modernos, fugitivos e perseguidos, como um herói de banda desenhada entre os recifes simétricos de um Poder sem rosto que nem precisa de existir para nos servir de Destino e uma universal Ilha de Amores tarifados de onde desapareceu até a lembrança de que alguma vez, como na história de Pedro e Inês (de Bloom e Mary), Poder e Amor tivessem dormido na mesma cama."
    Eduardo Lourenço, in prefácio à obra Uma Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares

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  3. Não mais, Musa, não mais que a Lira tenho
    Destemperada e a voz enrouquecida,
    E não do canto, mas de ver que venho
    Cantar a gente surda e endurecida.
    O favor com que mais se acende o engenho
    Não no dá a pátria, não, que está metida
    No gosto da cobiça e na rudeza
    Duma austera, apagada e vil tristeza.

    In Os Lusíadas, Canto X, estrofe 145

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  4. Nevoeiro

    Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
    Define com perfil e ser
    Este fulgor baco da terra
    Que e Portugal a entristecer -
    Brilho sem luz e sem arder,
    Como o que o fogo-fatuo encerra.
    Ninguem sabe que coisa quer.
    Ninguem conhece que alma tem,
    Nem o que e mal nem o que e bem.
    ( Que ansia distante perto chora? )
    Tudo e incerto e derradeiro.
    Tudo e disperso, nada e inteiro.
    O Portugal, hoje es nevoeiro...
    E a hora!
    In, Mensagem, Fernando Pessoa

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  5. Nesta taca de nevoa constrangida
    a um calado rumor, na pena tanta
    (dum tao cansado eco) dissolvida
    em amargores de pausa por garganta
    de onde a voz ponctuou passada vida
    que e mais nevoa na nevoa... se adianta
    outra nevoa que e nave e nela vou
    navegando nas nevoas do que sou.

    Canto XI, estrofe 1112, in Quybyrycas, António Quadros

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  6. ÁGUIA
    Sou o primeiro.
    Saio hoje a terreiro.

    "Ao largo de Dabul, uma fusta trouxe cartas de Diu. Apesar das reticências de Alexandre de Ataíde, que desejava poupar-lhe o conteúdo, exigiu que lhe fossem traduzidas em toda a sua verdade. E assim tomou conhecimento de que Lopo Soares de Albergaria, um dos detractores da sua política, era o novo governador.
    Um outro navio em breve aparecia à vista: era o de Gionanni da Empoli que, tendo voltado à Índia, se dirigia a Cambaia para negócios. O florentino trazia ao capitão-mor notícias ainda mais cruéis: os seus inimigos mais ferozes, Diogo Pereira e Lourenço Moreno tinham regressado a Cochim, com postos importantes. Afonso de Albuquerque comentou para Diogo Fernandes: - 'Boas novas são aquellas para mym, que os homens que mandey presos[...] vem honrados e beandantes. Certamente que grandes são meus pecados ante El Rey. Pois estou mal ante elle por amor dos homens, e mal com os homens por amor delle[...]. Bom é de acabar.'
    O Flor da Rosa havia transposto a barra de Goa e subia o Mandovi ao findar da noite. Albuquerque pediu que mandassem procurar em terra o vigário geral da Índia, Frei Domingos, e o médico Mestre Afonso, para lhe levar um copo de vinho de Portugal."

    Geneviève Bouchon, Afonso de Albuquerque. O Leão dos Mares da Ásia, Lisboa, Quetzal Editores, 2000, pp. 303.

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