- O senhor não vá, tornam a dizer-me. A população de Cantão está furiosa contra os brancos e, de um momento para o outro, pode haver uma carnificina. Depois virá a intervenção armada das potências e também os castigos e as indemnizações, mas o que tiver sido morto na revolta, morto continuará.
Vou, apesar de tudo, a Cantão, e a viagem foi curta, fatigante, quase inútil. Há um caminho de ferro que parte de Hong-Kong, mas há mais de um ano que não funciona. A linha é inglesa, e, como o Presidente da República de Cantão ficou, repetidas vezes, com o material circulante, os directores julgaram conveniente suspender o serviço. Viajamos pelo rio em vapores cómodos á moda americana, com várias cobertas, que são uma espécie de hotéis flutuantes.
Passamos por entre as numerosas ilhas do estuário, seguindo uns canais dourados pelo sol nascente, com margens de verde escuro. Já dentro do rio, atravessamos um estreito que os descobridores portugueses chamaram Boca de Tigre. À ida, navegando contra a corrente, gastámos umas seis horas; o regresso, como era natural, levou menos tempo.
Apesar dos europeus se terem estabelecido há já três séculos em Cantão, ainda vivem à parte, ocupando o bairro denominado Shameen, separado do resto da povoação por um canal e que é o local onde antigamente estavam as feitorias. Hoje Shameen é uma cidade de tipo americano, com edifícios de muitos andares e vários hotéis, dos quais o Vitória é o melhor e mais concorrido. A quarta parte dos moradores deste Cantão branco são franceses e os restantes de língua inglesa. O Christian College, estabelecimento importantíssimo mantido pelos missionários dos Estados Unidos, serve de Universidade a muitas centenas de mancebos da região, que aí recebem educação moderna. O resto de Cantão ocupa uma área enorme e está habitado por mais de dois milhões de chineses. As antigas muralhas, parecidas com as de Pequim, foram cortadas em vários pontos para se dar expansão à cidade. Além disso, parte dos habitantes, mais de cento e cinquenta mil, vivem no rio em sampanes.
A população flutuante de Cantão foi sempre objecto de curiosidade para os viajantes. Os bairros formam grupos, como os agrupamentos de edifícios nas cidades terrestres. As bordas tocam-se e os vizinhos passam indistintamente de uma coberta para outra. Canais estreitos separam estes bairros de embarcações, servindo de vielas pelas quais deslizam pequenas canoas. Há sampanes que são lojas em que se vende o indispensável para as necessidades daquela povoação anfíbia. Outros barcos velhíssimos servem de templos, e bonzos de vida vagabunda vivem misturados com os habitantes da Cantão fluvial, mendigos, contrabandistas e figurantes eternos de todas as revoltas.
Também flutuaram, durante séculos, junto das margens do rio Pérola os afamados barcos de flores. O leitor sabe, sem dúvida, para que servem essas casas aquáticas, ligadas à terra por uma ligeira ponte e com galerias cobertas de plantas trepadeiras e de vasos com flores. A tripulação, chamemos-lhe assim, é de mulheres com o rosto pintado e túnicas de cores primaveris. Esses barcos de flores, iluminados toda a noite, enchem as águas escuras de reflexos dourados e músicas alegres. Dos seus pátios sobem foguetes que cortam a escuridão celeste com golpes de luz sibilante e multicolor.
São restaurantes e palácios de amor fácil para as pessoas libertinas da região. O europeu que consiga entrar num barco de flores sai quase sempre espancado pelos fregueses. Mais de uma vez o visitante branco tem desaparecido no leito lodoso do rio.
Ainda há muitos barcos de flores, mas não chegamos e vê-los sequer por fora. Os viajantes que acabámos de chegar a Cantão só conhecemos as ruas semi-europeias do bairro de Shameen, entre o cais de desembarque e o hotel Vitória, mas atravessámos de ricsha.
Os chineses de Cantão parecem-nos menos educados, mais desordeiros e insolentes, que os de outras cidades. Ao verem-nos passar de gritam em tom agressivo; dirigem-se aos companheiros que puxam pelas nossas ricshas, e, embora não possa compreender o que dizem, quer-me parecer que adivinho as suas palavras pelos gestos com que as acompanham. Insultam com certeza os patrícios que servem de cavalos aos brancos. Nota-se na multidão uma excitação extraordinária, sem dúvida por causa dos cruzadores ancorados no rio. Há numerosos navios de guerra ingleses, franceses e norte-americanos, além de um cruzador italiano e outro português, todos com os canhões prontos a entrar em acção.
Depois do almoço no Hotel Vitória, quando os mais curiosos nos dispúnhamos a sair para as ruas dos bairros chineses, para visitarmos os seus afamados armazéns de porcelana, chegam-nos alguns emissários dos cônsules e participam-nos que seria razoável e prudente regressarmos imediatamente a Hong-Kong. [...]
Partimos às primeiras horas da tarde, vendo novamente os bairros flutuantes da Cantão fluvial e, já na noite plena, chegámos aos nossos camarotes do Franconia.
No dia seguinte falo com os meus amigos de Hong-Kong em ir a Macau, e isto lhes causa mais espanto que a viagem a Cantão. Dizem todos o mesmo:
- Não vá, senhor. Os piratas, sempre que lhe convém, atacam o vapor correio. Ainda há poucos meses, levaram prisioneiros todos os que lá iam.
Vicente Blasco Ibañez, A Volta ao Mundo. 2ª edição, Lisboa, Livraria Peninsular Editora, 1944. 2º vol., p. 174-177. A edição original, com o título La vuelta al mundo de un novelista é de1925. Informações úteis sobre V. Blasco Ibañez podem ser encontradas no site
http://www.blascoibanez.es/index.html, da Fundación Centro de Estúdios Vicente Blasco Ibañez.