segunda-feira, 30 de junho de 2014
domingo, 29 de junho de 2014
De Esposende se avista o seu barco negro. Agustina Bessa Luis
Que desgostos trazia [D. Sebastião], que a morte lhe pareceu afável e desejável? Quando o povo o esperava, vindo do nevoeiro, é porque recordava qualquer coisa de invulnerável que ele tinha por virtude própria. Era como sir Lancelot , a quem o amor poupava e por isso também o respeitava a morte. Fruto verde e perdido, menino sem mãe nem pai! De Esposende se avista, se quisemos, o seu barco negro, que espera subir o rio como um bergantim funerário, um dia. Em certas tardes paradas de Inverno, além das dunas de Fão, uma vela corre, e, se cuidarmos ir retomá-la na barra - não a veremos mais. O mugido da sereia cobre o estalido da água.
Agustina Bessa Luis, "Memória de Esposende", in Alegria do Mundo, vol. II (Escritos dos Anos de 1970 a 1974). Lisboa, Guimarães Editores, 1998, p.
Agustina Bessa Luis, "Memória de Esposende", in Alegria do Mundo, vol. II (Escritos dos Anos de 1970 a 1974). Lisboa, Guimarães Editores, 1998, p.
sábado, 28 de junho de 2014
Presente de um viajante especial. Françoise Gilot
No momento da Libertação, Hemingway fazia parte das primeira tropas americanas que entraram em Paris. Pablo achava-se ainda em casa da mãe de Maya. A porteira da rue des Grands-Augustins [atelier do artista] era uma pessoas reservada, mas pouco tímida. Estava habituada a ver os amigos admiradores de Picasso deixarem prendas, quando ele estava ausente. Por várias vezes, amigos sul-americanos tinham deixado víveres. Muitas vezes Picasso partilhava-os com a porteira. Quando ela disse a Hemingway que Pablo não estava, ele perguntou se podia deixar um recado. Segundo nos contou depois, ela propôs: "Mas não deseja deixar uma prenda para o senhor?" Hemingway respondeu que não tinha pensado nisso, mas que era uma boa ideia. Foi até ao seu jeep e voltou com uma caixa de granadas, que depôs no cubículo da porteira com a seguinte inscrição: "Para Picasso, da parte de Hemingway".
Françoise Gilot, Carlton Lake, A Minha Vida com Picasso. S/l, Publicações Europa-América, 1965, p. 64-65
Françoise Gilot, Carlton Lake, A Minha Vida com Picasso. S/l, Publicações Europa-América, 1965, p. 64-65
sexta-feira, 27 de junho de 2014
Cidade imaginária (7)
Perguntas
Quando o comandante assomou às escadas do primeiro andar da creperie, na Place de La Libération, ela já o aguardava. Chegara antes, em sinal de deferência para com quem viera de tão longe, sabendo que ele seria pontual.
O tempo estava agreste, como seria de esperar na Bretanha. O comandante vestia camisola de lã grossa, de cor natural, calças de sarja azul impecavelmente passadas. Quando a avistou, esboçou aquele seu sorriso adolescente, imprevisível num rosto severo e vincado.
Tinham-se conhecido, seis meses antes, no Clube dos Veteranos, por ocasião de uma recepção organizada em honra da fragata portuguesa que aportara à cidade. O pai, membro da direcção do Clube, insistira no convite, e ela desafiara duas amigas a fazerem-lhe companhia.
Pouco conhecia sobre Portugal e portugueses. Na escola primária, onde leccionava, havia alguns filhos de portugueses recrutados para obras. Lera as notícias de uma revolução militar recente que libertara o País, e talvez tivesse sido esse o motivo que a atraíra ao Clube.
Depois das boas-vindas, o comandante apresentara-se e convidara-a para dançar. Era um bom dançarino, tolerante para com a suas falhas, e, em retribuição, ela ofereceu-se para o guiar numa visita à cidade.
Percorreram-na nos dias seguintes e trocaram histórias de vida. Ela apercebeu-se de que estava perante um oficial com uma biografia invulgar. Ingressara como voluntário na Marinha aos dezasseis anos. Órfão de pai, trabalhava então num oficina de automóveis. Com persistência e sacrifício, concluíra, já depois dos trinta anos, estudos liceais e de engenharia, ultrapassando as barreiras de acesso ao oficialato. Retido em missões no mar, sem poder frequentar aulas regulares, tal feito era quase inimaginável.
Ela também tinha uma história singular. Fizera-se adolescente durante a ocupação alemã da cidade, um porto estratégico para o controle da navegação marítima e aérea no Norte da Europa. O pai e tios ingressaram na Resistência e ela própria se envolveu em acções de apoio aos maquisards. Os nazis retaliaram, com deportações, execuções e bombardeamentos. A reconstrução fora uma grande obra em que se empenhara com raiva e orgulho.
O nexo surgido entre ambos, na partilha de memórias reencontradas, crescera depressa. Ele tinha quase sessenta anos e ela cerca de cinquenta. – E se eu me apaixonasse por si? – inquirira, irónica, à despedida.
Seis meses depois da pergunta irrespondida, durante os quais correra o silêncio entre ambos, ela convidou-o a sentar-se. Para inquirir, de imediato:
- Comandante Armando, que o traz por cá? Que é que esta cidade tem que justifique este seu regresso? Porque me procurou?
- Perguntas, menina Danielle, a que espero responder com a sua ajuda – disse o comandante.
Publicado na edição do semanário Região de Leiria, de 26 de Junho de 2014.
Quando o comandante assomou às escadas do primeiro andar da creperie, na Place de La Libération, ela já o aguardava. Chegara antes, em sinal de deferência para com quem viera de tão longe, sabendo que ele seria pontual.
O tempo estava agreste, como seria de esperar na Bretanha. O comandante vestia camisola de lã grossa, de cor natural, calças de sarja azul impecavelmente passadas. Quando a avistou, esboçou aquele seu sorriso adolescente, imprevisível num rosto severo e vincado.
Tinham-se conhecido, seis meses antes, no Clube dos Veteranos, por ocasião de uma recepção organizada em honra da fragata portuguesa que aportara à cidade. O pai, membro da direcção do Clube, insistira no convite, e ela desafiara duas amigas a fazerem-lhe companhia.
Pouco conhecia sobre Portugal e portugueses. Na escola primária, onde leccionava, havia alguns filhos de portugueses recrutados para obras. Lera as notícias de uma revolução militar recente que libertara o País, e talvez tivesse sido esse o motivo que a atraíra ao Clube.
Depois das boas-vindas, o comandante apresentara-se e convidara-a para dançar. Era um bom dançarino, tolerante para com a suas falhas, e, em retribuição, ela ofereceu-se para o guiar numa visita à cidade.
Percorreram-na nos dias seguintes e trocaram histórias de vida. Ela apercebeu-se de que estava perante um oficial com uma biografia invulgar. Ingressara como voluntário na Marinha aos dezasseis anos. Órfão de pai, trabalhava então num oficina de automóveis. Com persistência e sacrifício, concluíra, já depois dos trinta anos, estudos liceais e de engenharia, ultrapassando as barreiras de acesso ao oficialato. Retido em missões no mar, sem poder frequentar aulas regulares, tal feito era quase inimaginável.
Ela também tinha uma história singular. Fizera-se adolescente durante a ocupação alemã da cidade, um porto estratégico para o controle da navegação marítima e aérea no Norte da Europa. O pai e tios ingressaram na Resistência e ela própria se envolveu em acções de apoio aos maquisards. Os nazis retaliaram, com deportações, execuções e bombardeamentos. A reconstrução fora uma grande obra em que se empenhara com raiva e orgulho.
O nexo surgido entre ambos, na partilha de memórias reencontradas, crescera depressa. Ele tinha quase sessenta anos e ela cerca de cinquenta. – E se eu me apaixonasse por si? – inquirira, irónica, à despedida.
Seis meses depois da pergunta irrespondida, durante os quais correra o silêncio entre ambos, ela convidou-o a sentar-se. Para inquirir, de imediato:
- Comandante Armando, que o traz por cá? Que é que esta cidade tem que justifique este seu regresso? Porque me procurou?
- Perguntas, menina Danielle, a que espero responder com a sua ajuda – disse o comandante.
Publicado na edição do semanário Região de Leiria, de 26 de Junho de 2014.
quinta-feira, 26 de junho de 2014
Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Clarice Lispector
Em busca do outro.
Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido. O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é o outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.
Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo (Crónicas). Lisboa, Relógio d'Água, 2013, p. 163
Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido. O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é o outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.
Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo (Crónicas). Lisboa, Relógio d'Água, 2013, p. 163
quarta-feira, 25 de junho de 2014
The Natchez. Eugène Delacroix
Eugène Delacroix, The Natchez, 1835
Nota do Metropolitan Museum of Art
In 1823, Delacroix began to paint this scene from Chateaubriand’s widely read Romantic novel Atala, which narrates the fate of the Natchez tribe in the wake of the French and Indian War (1754–63). After putting the canvas aside for about a decade, he finally completed the picture for the Paris Salon of 1835. In the catalogue, Delacroix provided this explanatory note: "Fleeing the massacre of their tribe, two young savages traveled up the Mississippi River. During the voyage, the woman was taken by pain of labor. The moment is that when the father holds the newborn in his hands, and both regard him tenderly."
terça-feira, 24 de junho de 2014
Turistas e etnólogos (2). Marc Augé
É preciso, enfim, dizer que o etnólogo, no final da sua primeira viagem, elabora um quadro de reflexão que lhe servirá para dar sequência ao seu trabalho (ninguém esquece o primeiro trabalho de campo) e que orientará os seus futuros estudos, regresse ou não ao mesmo território. Em todo o caso, trata-se de uma espécie de viagem interior que deverá prosseguir, mesmo se passa pela observação atenta das semelhanças e diferenças, dos contrastes e das similitudes. O etnólogo converte-se então em antropólogo: amplia a sua reflexão, embora ela se inscreva na continuidade de um percurso. Está-se, agora, bem afastado do turista que soma viagens ao seu palmarés, outros tantos troféus de caça e aguarda a ocorrência se um novo período de férias com um entusiasmo renovado. A reflexão antropológica aprofunda-se e pode satisfazer-se com poucas deslocações. É o caso, para um certo número de colegas meus, que começaram por trabalhar fora e a seguir se reaproximaram dos seus locais, não por cansaço ou por impossibilidade de voltar a partir, mas porque tinham tomado uma consciência mais clara de qual era precisamente o seu objecto intelectual de investigação.
O antropólogo pode, claro, gostar de partir, de viajar. Mas não é forçosamente o etnólogo que comanda esse desejo. O etnólogo é, acima de tudo, caseiro, porque sabe que perseguir um fantasma é andar atrás de um conhecimento impossível. Alguma vez nos conheceremos a nós próprios? A questão tem mesmo sentido? Conheceremos alguma vez verdadeiramente os outros? Conheceremos alguma vez verdadeiramente os que amamos e os que nos cercam? O etnólogo terá um dia cedido à tentação de acreditar que conheceria alguns outros, uma etnia, uma cultura. E certamente que conhece um pouco mais do que no princípio, mas continua a interrogar-se sobre o estatuto desse conhecimento, sobre o que ele diz de si próprio, dos outros e da sua recíproca relação. Um dia dá-se conta que passou a vida a questionar-se sobre as mesmas coisas, e que as deslocações no espaço não lhe darão respostas mais claras; apercebe-se que, afinal, não é um explorador. Resta-lhe fazer o balanço daquilo que obteve, mas, ao contrário do viajante nostálgico, é para o futuro que se volta: para aqueles que farão outras viagens e que, dum modo ou doutro, aqui ou ali, prosseguirão, inflectirão, prolongarão o seu próprio itinerário.
A primeira parte de Tristes Trópicos intitula-se "O fim das viagens" e toda a gente se lembra da afirmação, meio excessiva, meio irritada da abertura: "Odeio as viagens e os exploradores". Esta frase provocatória tem sequência na evocação das mil pequenas misérias e momentos de desagrado que pontuam a estadia no terreno (encontra-se uma versão mais negra ainda no diário de Malinowski) e dos viajantes profissionais dos anos cinquenta, projectando as suas fotografias e contando banalidades na sala Pleyel de Paris. Mas Lévy- Strauss escreveu Tristes Trópicos. Como Michel Leiris, Georges Balandier e alguns outros, sabe que é um escritor de um género singular, que relata factos, descreve situações, analisa comportamentos e dá conta de uma experiência com a qual se comprometeu ao mesmo nível daqueles que observou. Os homens que o etnólogo observa não são uma mera espécie animal. São homens como ele, e a sua presença coloca-lhes um problema; age como um reagente na química, mexe com o eixo e tal perturbação pode ser instrutiva. Quando o etnólogo se vai embora , nem ele nem aqueles com que viveu são agora os mesmos. A actividade do etnólogo não é a de simples observação; há nesta observação uma dimensão experimental. O etnólogo não é um simples observador da história. É um actor da história, mesmo se lhe compete defendê-la. Aliás tem interesse em dar conta disso mesmo. A presença do etnólogo influi no meio observado, precisamente porque se trata da presença de um indivíduo sozinho que reflecte sobre a cultura dos outros, uma cultura que justamente aos olhos dos que nela emergiram parece natural. Reside aí o âmago da experiência que ele vive e que só consegue entender quando a descreve e escreve. O fim da viagem é essa escrita, o seu objectivo e a sua conclusão. Nesta medida, o etnólogo viaja sempre, até mesmo quando trabalha nos subúrbios de uma cidade do seu país. É um viajante do interior. Viaja entre dois estado de espírito, entre um texto por escrever e um texto já dado, entre um antes e um depois.
Ao invés do turista moderno, o consumidor que se toma por um viajante, o etnólogo é um sedentário obrigado a viajar. O turista espera o regresso das férias para voltar a partir. O etnólogo sabe que o sua estadia, por demorada que eventualmente seja, só terá sentido no regresso, quando tentar relatá-la. Se alguma coisa partilham talvez seja o encanto pelo encontro de paisagens e pessoas. Este encanto tem origem numa dupla ilusão: a da fidelidade e a do recomeço, de que a viagem, quando repetida, é uma espécie de expressão metafórica.
Marc Augé, "Le scandale du turisme", in Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot, 2009, p. 56-68.
O antropólogo pode, claro, gostar de partir, de viajar. Mas não é forçosamente o etnólogo que comanda esse desejo. O etnólogo é, acima de tudo, caseiro, porque sabe que perseguir um fantasma é andar atrás de um conhecimento impossível. Alguma vez nos conheceremos a nós próprios? A questão tem mesmo sentido? Conheceremos alguma vez verdadeiramente os outros? Conheceremos alguma vez verdadeiramente os que amamos e os que nos cercam? O etnólogo terá um dia cedido à tentação de acreditar que conheceria alguns outros, uma etnia, uma cultura. E certamente que conhece um pouco mais do que no princípio, mas continua a interrogar-se sobre o estatuto desse conhecimento, sobre o que ele diz de si próprio, dos outros e da sua recíproca relação. Um dia dá-se conta que passou a vida a questionar-se sobre as mesmas coisas, e que as deslocações no espaço não lhe darão respostas mais claras; apercebe-se que, afinal, não é um explorador. Resta-lhe fazer o balanço daquilo que obteve, mas, ao contrário do viajante nostálgico, é para o futuro que se volta: para aqueles que farão outras viagens e que, dum modo ou doutro, aqui ou ali, prosseguirão, inflectirão, prolongarão o seu próprio itinerário.
A primeira parte de Tristes Trópicos intitula-se "O fim das viagens" e toda a gente se lembra da afirmação, meio excessiva, meio irritada da abertura: "Odeio as viagens e os exploradores". Esta frase provocatória tem sequência na evocação das mil pequenas misérias e momentos de desagrado que pontuam a estadia no terreno (encontra-se uma versão mais negra ainda no diário de Malinowski) e dos viajantes profissionais dos anos cinquenta, projectando as suas fotografias e contando banalidades na sala Pleyel de Paris. Mas Lévy- Strauss escreveu Tristes Trópicos. Como Michel Leiris, Georges Balandier e alguns outros, sabe que é um escritor de um género singular, que relata factos, descreve situações, analisa comportamentos e dá conta de uma experiência com a qual se comprometeu ao mesmo nível daqueles que observou. Os homens que o etnólogo observa não são uma mera espécie animal. São homens como ele, e a sua presença coloca-lhes um problema; age como um reagente na química, mexe com o eixo e tal perturbação pode ser instrutiva. Quando o etnólogo se vai embora , nem ele nem aqueles com que viveu são agora os mesmos. A actividade do etnólogo não é a de simples observação; há nesta observação uma dimensão experimental. O etnólogo não é um simples observador da história. É um actor da história, mesmo se lhe compete defendê-la. Aliás tem interesse em dar conta disso mesmo. A presença do etnólogo influi no meio observado, precisamente porque se trata da presença de um indivíduo sozinho que reflecte sobre a cultura dos outros, uma cultura que justamente aos olhos dos que nela emergiram parece natural. Reside aí o âmago da experiência que ele vive e que só consegue entender quando a descreve e escreve. O fim da viagem é essa escrita, o seu objectivo e a sua conclusão. Nesta medida, o etnólogo viaja sempre, até mesmo quando trabalha nos subúrbios de uma cidade do seu país. É um viajante do interior. Viaja entre dois estado de espírito, entre um texto por escrever e um texto já dado, entre um antes e um depois.
Ao invés do turista moderno, o consumidor que se toma por um viajante, o etnólogo é um sedentário obrigado a viajar. O turista espera o regresso das férias para voltar a partir. O etnólogo sabe que o sua estadia, por demorada que eventualmente seja, só terá sentido no regresso, quando tentar relatá-la. Se alguma coisa partilham talvez seja o encanto pelo encontro de paisagens e pessoas. Este encanto tem origem numa dupla ilusão: a da fidelidade e a do recomeço, de que a viagem, quando repetida, é uma espécie de expressão metafórica.
Marc Augé, "Le scandale du turisme", in Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot, 2009, p. 56-68.
segunda-feira, 23 de junho de 2014
Turistas e etnólogos (1). Marc Augé
Poderia esboçar aqui um paralelo entre o turista e o etnólogo. Pertencem ambos à parte do mundo mais favorecida, a que é capaz de organizar viagens de diversão ou de estudo a terras alheias. Nada disto seria motivo de escândalo se todos os homens pudessem ser turistas ou etnólogos, se a mobilidade de uns não fosse um luxo enquanto a mobilidade dos outros é um destino ou uma fatalidade. Não haveria escândalo se todos os homens indiferenciadamente fossem espectadores de si próprios. E este escândalo vale para a etnologia. Há etnólogos japoneses em África, mas não há etnólogos africanos no Japão. A etnologia que aqui me interessa dirigir-se-á, todavia, no futuro, cada vez menos para os país exóticos porque o exotismo está moribundo e porque, em ultima análise, o exotismo não constitui indubitavelmente o objecto da etnologia. A etnologia sobreviverá. Sobreviverá a si própria.
Quanto aos turistas, nunca foram tão numerosos. Estamos na época do turismo de massa. Em resumo, poderemos dizer que as classes altas e médias dos países ricos viajam cada vez mais para fora das suas fronteiras. Os países do Sul, por seu turno, vêem no turismo um recurso financeiro e encorajam o seu desenvolvimento, apesar de os beneficiários directos desse turismo serem na maioria das vezes organizações e indivíduos que pertencem aos países desenvolvidos. Desta perspectiva, a nossa época caracteriza-se por um contraste marcante e trágico, porque os turistas procuram voluntariamente países donde partem emigrantes em condições difíceis e por vezes em perigo de vida. Estes dois movimentos de sentido contrário são um dos símbolos possíveis da globalização liberal que, sabemo-lo bem, não promove de igual modo as formas de circulação.
Comparando o etnólogo com o turista, queria tentar mostrar a traço grosso, por contraste, a originalidade da posição do etnólogo, sem reduzir por outro lado o turista à caricatura fácil, porque ele é muitas vezes realmente caricatural, mas não se reduz, enquanto indivíduo, à imagem que dá de si próprio.
O que o etnólogo tradicional (entendo por etnólogo tradicional o que parte para estudar as sociedades que se lhe apresentam como exóticas) partilha com o turista actual, é o facto de ir para fora, de se deslocalizar. Mas ele sempre se distingiu e se distingue em dois aspectos: viaja sozinho e fica muito tempo. Claro, ele parte para viver com e estudar aqueles junto e quem se dirige, e essa poderia constituir a diferença principal relativamente ao turista. Mas não podemos recusar a alguns turistas, raros sem dúvida e em todo o caso minoritários, a curiosidade, o desejo de observar e de aprender. O que verdadeiramente distingue o etnólogo é o método: a observação sistemática, solitária e prolongada.
Aprofundando a questão, há entre ambos uma outra diferença, simultaneamente mais radical e mais subtil.
O turista, nas versões mais recentes e mais luxuosas da actividade turística, quer garantir conforto físico e tranquilidade psicológica, mesmo quando tem alma de um viajante que se vê como aventureiro. Consome o exotismo, a areia, o mar, o sol e as paisagens (para não falar de outros eventuais tipos de consumo), mas está na sua casa, mesmo quando está fora. Tudo se conjuga para que assim seja: os companheiros, os comentários que trocam entre si, o conforto dos lugares, o carácter estereotipado das cadeias hoteleiras, os filmes que faz para mais tarde os visionar, após o regresso, a brevidade da estadia ou do périplo. No limite, fica em sua casa ou perto de sua casa e organiza-se de forma a reduzir os outros a uma imagem: basta-lhe ligar a televisão ou dirigir-se a um parque temático.
O etnólogo, por sua vez, faz uma experiência totalmente diferente. Procurando uma deslocalização que não se circunscreva à paisagem, ele próprio submete a sua identidade à prova dos outros. Viaja para fora de si próprio. Por um lado, é muito claramente exterior às e aos que pretende observar (quer se trate de uma aldeia, de algumas famílias, de um quarteirão urbano ou de uma empresa): terá, em primeiro lugar, de explicar a sua presença, negociar o seu estatuto de outro, de estrangeiro. Terá também de tomar consciência do papel que lhe indicam ou que lhe fazem desempenhar. Neste sentido, não poderá compreender os outros sem reconhecer previamente o lugar que lhe atribuem. Não dispõe do estatuto de extraterritorialidade que é conferido ao turista pelo nome do seu clube de férias ou da sua cadeia hoteleira. O etnólogo confronta-se como uma dupla extraterritorialidade. Necessariamente exterior ao grupo que observa, tanta aproximar-se dele intelectualmente abstraindo-se o mais possível de si próprio. Exerce aquilo a Lévi-Strauss chamou a "capacidade do sujeito de se objectivar indefinidamente" e coloca-se desta forma numa espécie de a meio caminho cultural e psicológico que marca de alguma forma o termo do seu itinerário ou a sua penúltima etapa, sendo a ultima a da escrita.
No entanto a distinção entre as duas posições é mais tênue e subtil que se possa crer, pelo menos no plano psicológico. O turista também ele, embora involuntariamente na maior parte das vezes, se coloca em situações psicológicas desconfortáveis. Basta pensar no síndroma de Stendhal (a doença induzida por uma frequência quotidiana excessiva de obras de arte em Itália) ou nas perturbações psicológicas frequentemente sentidas pelos turistas ocidentais que se dirigem a um país como a Índia e que acabam por ser alvo de um repatriamento sanitário. O turista não escreve evidentemente um estudo sobre as populações com as quais se cruza, mas por vezes as suas fotografias, os seus filmes e os seus postais acabam por constituir uma espécie de obra, pelo menos um balanço da sua experiência. Falo, evidentemente, de experiências turísticas de uma intensidade pouco comum. A média dos turistas está nos antípodas desse desconforto psicológico e desse desejo de testemunho, que se reduz para muitos a alguns clichés um pouco narcisistas.
Marc Augé, "Le scandale du turisme", in Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot, 2009, p. 56-68.
Quanto aos turistas, nunca foram tão numerosos. Estamos na época do turismo de massa. Em resumo, poderemos dizer que as classes altas e médias dos países ricos viajam cada vez mais para fora das suas fronteiras. Os países do Sul, por seu turno, vêem no turismo um recurso financeiro e encorajam o seu desenvolvimento, apesar de os beneficiários directos desse turismo serem na maioria das vezes organizações e indivíduos que pertencem aos países desenvolvidos. Desta perspectiva, a nossa época caracteriza-se por um contraste marcante e trágico, porque os turistas procuram voluntariamente países donde partem emigrantes em condições difíceis e por vezes em perigo de vida. Estes dois movimentos de sentido contrário são um dos símbolos possíveis da globalização liberal que, sabemo-lo bem, não promove de igual modo as formas de circulação.
Comparando o etnólogo com o turista, queria tentar mostrar a traço grosso, por contraste, a originalidade da posição do etnólogo, sem reduzir por outro lado o turista à caricatura fácil, porque ele é muitas vezes realmente caricatural, mas não se reduz, enquanto indivíduo, à imagem que dá de si próprio.
O que o etnólogo tradicional (entendo por etnólogo tradicional o que parte para estudar as sociedades que se lhe apresentam como exóticas) partilha com o turista actual, é o facto de ir para fora, de se deslocalizar. Mas ele sempre se distingiu e se distingue em dois aspectos: viaja sozinho e fica muito tempo. Claro, ele parte para viver com e estudar aqueles junto e quem se dirige, e essa poderia constituir a diferença principal relativamente ao turista. Mas não podemos recusar a alguns turistas, raros sem dúvida e em todo o caso minoritários, a curiosidade, o desejo de observar e de aprender. O que verdadeiramente distingue o etnólogo é o método: a observação sistemática, solitária e prolongada.
Aprofundando a questão, há entre ambos uma outra diferença, simultaneamente mais radical e mais subtil.
O turista, nas versões mais recentes e mais luxuosas da actividade turística, quer garantir conforto físico e tranquilidade psicológica, mesmo quando tem alma de um viajante que se vê como aventureiro. Consome o exotismo, a areia, o mar, o sol e as paisagens (para não falar de outros eventuais tipos de consumo), mas está na sua casa, mesmo quando está fora. Tudo se conjuga para que assim seja: os companheiros, os comentários que trocam entre si, o conforto dos lugares, o carácter estereotipado das cadeias hoteleiras, os filmes que faz para mais tarde os visionar, após o regresso, a brevidade da estadia ou do périplo. No limite, fica em sua casa ou perto de sua casa e organiza-se de forma a reduzir os outros a uma imagem: basta-lhe ligar a televisão ou dirigir-se a um parque temático.
O etnólogo, por sua vez, faz uma experiência totalmente diferente. Procurando uma deslocalização que não se circunscreva à paisagem, ele próprio submete a sua identidade à prova dos outros. Viaja para fora de si próprio. Por um lado, é muito claramente exterior às e aos que pretende observar (quer se trate de uma aldeia, de algumas famílias, de um quarteirão urbano ou de uma empresa): terá, em primeiro lugar, de explicar a sua presença, negociar o seu estatuto de outro, de estrangeiro. Terá também de tomar consciência do papel que lhe indicam ou que lhe fazem desempenhar. Neste sentido, não poderá compreender os outros sem reconhecer previamente o lugar que lhe atribuem. Não dispõe do estatuto de extraterritorialidade que é conferido ao turista pelo nome do seu clube de férias ou da sua cadeia hoteleira. O etnólogo confronta-se como uma dupla extraterritorialidade. Necessariamente exterior ao grupo que observa, tanta aproximar-se dele intelectualmente abstraindo-se o mais possível de si próprio. Exerce aquilo a Lévi-Strauss chamou a "capacidade do sujeito de se objectivar indefinidamente" e coloca-se desta forma numa espécie de a meio caminho cultural e psicológico que marca de alguma forma o termo do seu itinerário ou a sua penúltima etapa, sendo a ultima a da escrita.
No entanto a distinção entre as duas posições é mais tênue e subtil que se possa crer, pelo menos no plano psicológico. O turista também ele, embora involuntariamente na maior parte das vezes, se coloca em situações psicológicas desconfortáveis. Basta pensar no síndroma de Stendhal (a doença induzida por uma frequência quotidiana excessiva de obras de arte em Itália) ou nas perturbações psicológicas frequentemente sentidas pelos turistas ocidentais que se dirigem a um país como a Índia e que acabam por ser alvo de um repatriamento sanitário. O turista não escreve evidentemente um estudo sobre as populações com as quais se cruza, mas por vezes as suas fotografias, os seus filmes e os seus postais acabam por constituir uma espécie de obra, pelo menos um balanço da sua experiência. Falo, evidentemente, de experiências turísticas de uma intensidade pouco comum. A média dos turistas está nos antípodas desse desconforto psicológico e desse desejo de testemunho, que se reduz para muitos a alguns clichés um pouco narcisistas.
Marc Augé, "Le scandale du turisme", in Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot, 2009, p. 56-68.
domingo, 22 de junho de 2014
sábado, 21 de junho de 2014
Viajar segundo Montaigne (3)
Quanto ao argumento da velhice que contra mim brandem, respondo que é, pelo contrário, à juventude que cabe sujeitar-se às opiniões comuns e sacrificar-se pelos outros. Está ela em condições de satisfazer igualmente ao público e a si: nós já temos demasiado que fazer só connosco próprios. À medida que os bens naturais nos vão faltando, passamos a sustentarmo-nos com os artificiais. É uma injustiça desculpar a juventude por se entregar aos seus prazeres e proibir a velhice de os procurar. Jovem, eu cobria sob o manto da prudência os meus sentimentos joviais; velho, apaziguo os de tristeza com o desregramento. Aliás, as leis de Platão proíbem que se viaje antes dos quarenta ou cinquenta anos para tornar as viagens mais úteis e instrutivas; eu de melhor grado subscreveria essoutro segundo artigo das mesmas leis que as interdita depois dos sessenta - "Mas na vossa idade, já não regressareis de um tão longo périplo!" Que me importa? Não o empreendo nem com o intuito de regressar nem com o de ir até ao fim; tenciono apenas pôr-me em andamento enquanto andar me apraz. E passeio-me tão-só para me passear. Os que correm atrás de um benefício ou de uma lebre não correm; correm aqueles que o fazem por jogo e por exercício.
O meu itinerário pode- se interromper em qualquer ponto: não se baseia em grandes expectativas; cada jornada cumpre o seu objectivo. E a viagem da minha vida processa-se da mesma maneira. Vi, assim, bastantes lugares distantes onde desejaria haver-me detido. E porque não, de Crisipo, Cleantes, Diógenes, Zenão e Antípatro, todos eles sábios da seita mais carrancuda, abandonaram a sua terra sem nenhuma razão de queixa dela, movidos tão-só pelo intuito de mudarem de ares? Decerto o que mais me apraz nas minhas peregrinações é que não possa ir para elas com a resolução de estabelecer residência onde muito bem me aprouver, e que me seja sempre indispensável dispor-me a regressar, para me acomodar às maneiras comuns de proceder.
Se tivesse medo de morrer noutro lugar que não o do meu nascimento, se pensasse que, longe dos meus, morreria menos à vontade, dificilmente me ausentaria de França, nem sequer sairia da minha paróquia sem terror. Sinto a morte continuamente pinçar-me quer a garganta quer os rins. Mas sou feito de outro modo: a morte é uma e a mesma coisa para mim em qualquer parte. Se, todavia, tivesse que escolher, gostaria antes, creio-o, de morrer a cavalo, longe da casa e dos meus, que no meu leito. Há mais descoroçoamento que reconforto em fazer as últimas despedidas aos amigos.
[...] Para acabar de expor as minhas fraquezas, confesso que, viajando, nunca chego a nenhuma pousada onde não me passe pela cabeça perguntar-me se eu aí poderia tranquilamente estar doente ou moribundo.
[...] Tenho a compleição mais adaptável e a melhor boca do mundo. A diversidade dos usos nacionais não me afecta senão pelo prazer da variedade. Cada costume tem a sua razão.
[...] É um acaso raro, mas de inestimável consolo, dispor da companhia de um homem de bem, de juízo sólido e costumes conformes com os vossos, que goste de seguir convosco. Tenho enormemente sentido a falta de um assim em todas as minhas viagens. Mas uma tal companhia, preciso é tê-la escolhido e garantido à partida. Nenhum prazer me dá gosto se o não posso partilhar. Nem uma única feliz ideia me vem à mente que não me sinta irritado por havê-la tido sozinho sem ninguém a quem apresentá-la.
Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios (Antologia). Introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 249-314.
O meu itinerário pode- se interromper em qualquer ponto: não se baseia em grandes expectativas; cada jornada cumpre o seu objectivo. E a viagem da minha vida processa-se da mesma maneira. Vi, assim, bastantes lugares distantes onde desejaria haver-me detido. E porque não, de Crisipo, Cleantes, Diógenes, Zenão e Antípatro, todos eles sábios da seita mais carrancuda, abandonaram a sua terra sem nenhuma razão de queixa dela, movidos tão-só pelo intuito de mudarem de ares? Decerto o que mais me apraz nas minhas peregrinações é que não possa ir para elas com a resolução de estabelecer residência onde muito bem me aprouver, e que me seja sempre indispensável dispor-me a regressar, para me acomodar às maneiras comuns de proceder.
Se tivesse medo de morrer noutro lugar que não o do meu nascimento, se pensasse que, longe dos meus, morreria menos à vontade, dificilmente me ausentaria de França, nem sequer sairia da minha paróquia sem terror. Sinto a morte continuamente pinçar-me quer a garganta quer os rins. Mas sou feito de outro modo: a morte é uma e a mesma coisa para mim em qualquer parte. Se, todavia, tivesse que escolher, gostaria antes, creio-o, de morrer a cavalo, longe da casa e dos meus, que no meu leito. Há mais descoroçoamento que reconforto em fazer as últimas despedidas aos amigos.
[...] Para acabar de expor as minhas fraquezas, confesso que, viajando, nunca chego a nenhuma pousada onde não me passe pela cabeça perguntar-me se eu aí poderia tranquilamente estar doente ou moribundo.
[...] Tenho a compleição mais adaptável e a melhor boca do mundo. A diversidade dos usos nacionais não me afecta senão pelo prazer da variedade. Cada costume tem a sua razão.
[...] É um acaso raro, mas de inestimável consolo, dispor da companhia de um homem de bem, de juízo sólido e costumes conformes com os vossos, que goste de seguir convosco. Tenho enormemente sentido a falta de um assim em todas as minhas viagens. Mas uma tal companhia, preciso é tê-la escolhido e garantido à partida. Nenhum prazer me dá gosto se o não posso partilhar. Nem uma única feliz ideia me vem à mente que não me sinta irritado por havê-la tido sozinho sem ninguém a quem apresentá-la.
Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios (Antologia). Introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 249-314.
sexta-feira, 20 de junho de 2014
Viajar segundo Montaigne (2)
Apesar de sujeito a cólicas, mantenho-me a cavalo sem desmontar, e sem me aborrecer, umas oito a dez horas - "Mais que o permitem as forças e a condição da velhice" (Virgílio, Eneida, VI, 114). Nenhum clima me é inimigo, excepto o calor áspero de um sol abrasador, já que os guarda-sóis que se usam em tília deste os tempos de Roma antiga, cansam mais os braços que descansam a cabeça. Gostaria de saber qual a técnica usada pelos Persas, em tempos tão remotos e quando o luxo primeiro surgiu, para produzir vento fresco e sombras a seu talante, como conta Xenofonte. Gosto de chuva e de lama tal como os patos. A mudança de ares e de clima não me afecta: tanto se me dá que tempo faça. As únicas alterações que me atingem são as produzo dentro de mim, e essas são menos frequentes quando viajo.
Sou difícil de mover, mas uma vez posto a caminho, vou tão longe quanto se quiser. Custa-me tanto abalançar-me aos pequenos empreendimentos como aos grandes e tanto aprestar-me para uma jornada de visita a um vizinho como para uma viagem propriamente dita. Habituei-me a fazer as minhas jornadas à espanhola, de uma só tirada, jornadas grandes e razoáveis; e quando a canícula mais aperta, faço-as de noite, do pôr-do-sol ao alvorecer. A alternativa - tomar as refeições numa pousada de caminho à pressa em em tumulto - é incómoda, especialmente quando os dias são curtos. Os meus cavalos também passam melhor com o meu método. Nunca nenhum que haja sido capaz de comigo aguentar a primeira jornada me veio a ficar mal. Dou-lhe de beber em toda a parte e velo tão-só por que lhe reste bastante caminho para digerir a água. A minha preguiça a levantar-me dá ensejo aos que me acompanham de dejejuarem descansados antes de nos lançarmos à estrada. Quanto a mim, nunca é tarde de mais para comer: o apetite vem-me em comendo e não de outro modo; só tenho fome à mesa.
Alguns deploram que me agrade continuar a prática deste exercício estando cansado e velho. Não têm razão. A melhor altura para nos apartarmos da família é quando a tivermos em condições de prosseguir sem nós, quando a deixarmos em ordem tal que na nossa ausência não desminta a sua situação anterior. É bem mais imprudente ir para longe de casa deixando-a à guarda de quem seja menos fiel e menos se interesse em prover às nossas necessidades.
[...] Quanto aos deveres da amizade marital serem segundo se pensa, lesados por uma tal ausência, não o creio. Trata-se, pelo contrário, de uma relação que amiúde arrefece por causa de uma presença demasiado contínua e que é prejudicada pela assiduidade. Qualquer mulher que não seja a nossa nos parece de bom convívio. E cada um sabe por experiência que o ver-se continuamente não pode proporcionar o prazer causado pelo separar-se e reunir-se a intervalos. Tais interrupções enchem-me de um renovado amor pelos meus e tornam-me mais agradável o voltar a estar em casa: a alternância aviva-me consecutivamente o apetite num e noutro sentido.
[...] Desde Roma, mantenho e vejo a minha casa e os bens que lá deixei: vejo as minhas muralhas, as minhas árvores e as minhas rendas crescerem ou decrescerem quase tão de perto como quando lá estou - "Diante dos meus olhos flutua a minha casa e a imagem daqueles lugares" (Ovídio, Tristia, III, iv, 57).
Se fruíssemos apenas daquilo que temos à mão de semear: adeus, escudos que estão nos nossos cofres! adeus, filhos que foram à caça! Queremo-los mais perto. No jardim é longe? E a meia jornada de distancia? Ora bem, e dez léguas é longe ou perto? Se for perto, que dizer, então, de onze, doze ou treze, e por aí adiante.
Sou difícil de mover, mas uma vez posto a caminho, vou tão longe quanto se quiser. Custa-me tanto abalançar-me aos pequenos empreendimentos como aos grandes e tanto aprestar-me para uma jornada de visita a um vizinho como para uma viagem propriamente dita. Habituei-me a fazer as minhas jornadas à espanhola, de uma só tirada, jornadas grandes e razoáveis; e quando a canícula mais aperta, faço-as de noite, do pôr-do-sol ao alvorecer. A alternativa - tomar as refeições numa pousada de caminho à pressa em em tumulto - é incómoda, especialmente quando os dias são curtos. Os meus cavalos também passam melhor com o meu método. Nunca nenhum que haja sido capaz de comigo aguentar a primeira jornada me veio a ficar mal. Dou-lhe de beber em toda a parte e velo tão-só por que lhe reste bastante caminho para digerir a água. A minha preguiça a levantar-me dá ensejo aos que me acompanham de dejejuarem descansados antes de nos lançarmos à estrada. Quanto a mim, nunca é tarde de mais para comer: o apetite vem-me em comendo e não de outro modo; só tenho fome à mesa.
Alguns deploram que me agrade continuar a prática deste exercício estando cansado e velho. Não têm razão. A melhor altura para nos apartarmos da família é quando a tivermos em condições de prosseguir sem nós, quando a deixarmos em ordem tal que na nossa ausência não desminta a sua situação anterior. É bem mais imprudente ir para longe de casa deixando-a à guarda de quem seja menos fiel e menos se interesse em prover às nossas necessidades.
[...] Quanto aos deveres da amizade marital serem segundo se pensa, lesados por uma tal ausência, não o creio. Trata-se, pelo contrário, de uma relação que amiúde arrefece por causa de uma presença demasiado contínua e que é prejudicada pela assiduidade. Qualquer mulher que não seja a nossa nos parece de bom convívio. E cada um sabe por experiência que o ver-se continuamente não pode proporcionar o prazer causado pelo separar-se e reunir-se a intervalos. Tais interrupções enchem-me de um renovado amor pelos meus e tornam-me mais agradável o voltar a estar em casa: a alternância aviva-me consecutivamente o apetite num e noutro sentido.
[...] Desde Roma, mantenho e vejo a minha casa e os bens que lá deixei: vejo as minhas muralhas, as minhas árvores e as minhas rendas crescerem ou decrescerem quase tão de perto como quando lá estou - "Diante dos meus olhos flutua a minha casa e a imagem daqueles lugares" (Ovídio, Tristia, III, iv, 57).
Se fruíssemos apenas daquilo que temos à mão de semear: adeus, escudos que estão nos nossos cofres! adeus, filhos que foram à caça! Queremo-los mais perto. No jardim é longe? E a meia jornada de distancia? Ora bem, e dez léguas é longe ou perto? Se for perto, que dizer, então, de onze, doze ou treze, e por aí adiante.
Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios (Antologia). Introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 249-314.
quinta-feira, 19 de junho de 2014
Viajar segundo Montaigne (1)
Esta avidez de coisas novas e desconhecidas bem ajuda a alimentar o meu desejo de viajar, mas bastantes outras circunstâncias contribuem para ele. De boa vontade me afasto do governo da minha casa.
[...]
As viagens só me molestam pela despesa, que é grande e ultrapassa as minhas capacidades. Havendo-me acostumado a fazê-las não apenas com o séquito necessário mas com um tal que seja honroso, tenho de, por isso, as tornar mais curtas e infrequentes. E nelas não gasto senão a espuma dos meus réditos e a minha reserva, aprazando-os e diferindo-os consoante eles cheguem. Não quero que o prazer de passear estrague o do repouso; pelo contrário, pretendo que eles se fortifiquem e se favoreçam um ao outro. Nisto me ajudou a Fortuna, pois, sendo o meu principal ofício nesta vida vivê-la amenamente e de modo antes relaxado que afanoso, livrou-me ela da necessidade de multiplicar riquezas para delas prover uma multidão de herdeiros. Se a um só não bastar aquilo que para mim foi mais que abundantemente suficiente, tanto pior para ele!
[...]
Quando viajo, quem tem a custódia da minha bolsa, tem-na por inteiro e sem fiscalização: se eu fizesse contas, enganar-me-ia na mesma, e, excepto se for um diabo, obrigo-o com tão despreocupada confiança, a agir bem.
[...]
Ausente, descarto-me de todos estes pensamentos; e menos me afectaria, então, o desmoronamento de uma torre que, quando presente, me afecta a queda de uma telha. Longe, a minha alma facilmente se torna desprendida, mas, estando em casa, sofre como a de uma vinhateiro.
[...]
Quando viajo, não tenho que pensar senão em mim e em que empregar o dinheiro, para o que basta uma regra única. Requerem-se demasiadas qualidades para aforrar: disso nada percebo. Percebo um pouco de como gastar e fazer valer os meus gastos, o que, na verdade, é o principal modo de dar uso ao dinheiro.
[...]
A outra causa que me convida a viajar é a minha incompatibilidade com os actuais costumes do nosso Estado. Consolar-me-ei facilmente de tal corrupção quanto ao interesse publico - "Séculos piores que a idade do ferro, para cuja malignidade a mesma natureza não achou nome ou metal algum" (Juvenal, Satirae, XIII, 28-30) - mas quanto ao meu, não. Acabrunha-me ela demasiado.
[...]
Tenho por hábito responder aos que me perguntam a razão das minhas viagens que sei bem aquilo de que fujo, mas não o que procuro. Se me replicam que entre os estrangeiros pode haver tão pouca saúde e que os seus costumes não são melhores, riposto em primeiro lugar que isso é difícil - "Tantas são as espécies dos nossos crimes!" (Virgílio, Geórgicas, I, 506) - em segundo lugar, que há sempre vantagem em trocar-se um estado mau por um incerto, e que os males alheios não nos hão-de pungir como os nossos.
[...]
Afora estas razões, o viajar parece-me uma actividade proveitosa. Através dela, a alma exercita-se continuamente a observar coisas desconhecidas e novas; e não sei de melhor escola, como frequentes vezes tenho dito, para formar a vida que incessantemente lhe apresentar a diversidade de tantas outras vidas, opiniões e costumes, e dar-lhe a provar uma tão perpétua variedade de formas da natureza humana. O corpo não fica assim nem ocioso nem fatigado, e tal agitação moderada dá-lhe alento.
Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios (Antologia). Introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 249-314.
[...]
As viagens só me molestam pela despesa, que é grande e ultrapassa as minhas capacidades. Havendo-me acostumado a fazê-las não apenas com o séquito necessário mas com um tal que seja honroso, tenho de, por isso, as tornar mais curtas e infrequentes. E nelas não gasto senão a espuma dos meus réditos e a minha reserva, aprazando-os e diferindo-os consoante eles cheguem. Não quero que o prazer de passear estrague o do repouso; pelo contrário, pretendo que eles se fortifiquem e se favoreçam um ao outro. Nisto me ajudou a Fortuna, pois, sendo o meu principal ofício nesta vida vivê-la amenamente e de modo antes relaxado que afanoso, livrou-me ela da necessidade de multiplicar riquezas para delas prover uma multidão de herdeiros. Se a um só não bastar aquilo que para mim foi mais que abundantemente suficiente, tanto pior para ele!
[...]
Quando viajo, quem tem a custódia da minha bolsa, tem-na por inteiro e sem fiscalização: se eu fizesse contas, enganar-me-ia na mesma, e, excepto se for um diabo, obrigo-o com tão despreocupada confiança, a agir bem.
[...]
Ausente, descarto-me de todos estes pensamentos; e menos me afectaria, então, o desmoronamento de uma torre que, quando presente, me afecta a queda de uma telha. Longe, a minha alma facilmente se torna desprendida, mas, estando em casa, sofre como a de uma vinhateiro.
[...]
Quando viajo, não tenho que pensar senão em mim e em que empregar o dinheiro, para o que basta uma regra única. Requerem-se demasiadas qualidades para aforrar: disso nada percebo. Percebo um pouco de como gastar e fazer valer os meus gastos, o que, na verdade, é o principal modo de dar uso ao dinheiro.
[...]
A outra causa que me convida a viajar é a minha incompatibilidade com os actuais costumes do nosso Estado. Consolar-me-ei facilmente de tal corrupção quanto ao interesse publico - "Séculos piores que a idade do ferro, para cuja malignidade a mesma natureza não achou nome ou metal algum" (Juvenal, Satirae, XIII, 28-30) - mas quanto ao meu, não. Acabrunha-me ela demasiado.
[...]
Tenho por hábito responder aos que me perguntam a razão das minhas viagens que sei bem aquilo de que fujo, mas não o que procuro. Se me replicam que entre os estrangeiros pode haver tão pouca saúde e que os seus costumes não são melhores, riposto em primeiro lugar que isso é difícil - "Tantas são as espécies dos nossos crimes!" (Virgílio, Geórgicas, I, 506) - em segundo lugar, que há sempre vantagem em trocar-se um estado mau por um incerto, e que os males alheios não nos hão-de pungir como os nossos.
[...]
Afora estas razões, o viajar parece-me uma actividade proveitosa. Através dela, a alma exercita-se continuamente a observar coisas desconhecidas e novas; e não sei de melhor escola, como frequentes vezes tenho dito, para formar a vida que incessantemente lhe apresentar a diversidade de tantas outras vidas, opiniões e costumes, e dar-lhe a provar uma tão perpétua variedade de formas da natureza humana. O corpo não fica assim nem ocioso nem fatigado, e tal agitação moderada dá-lhe alento.
Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios (Antologia). Introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 249-314.
quarta-feira, 18 de junho de 2014
terça-feira, 17 de junho de 2014
E lembrai-vos do homem que vai naquela caranguejola, meu Deus! Ray Bradbury
- As Máquinas da Alegria! - declarou o Padre Brian. - Será uma delas em que o senhor está remexendo? E outra aquilo que estamos vendo, o foguetão na sua torre de lançamento?
- Desta vez, pode muito bem ser - murmurou Vittorini. - Se subir com um homem lá dentro e conseguir dar a volta ao mundo, com ele vivo, enquanto nós daqui o estamos a ver, muito bem sentados, isso será sem dúvida uma alegria.
O foguetão estava quase preparado para a largada e o padre Brian fechou os olhos durante um momento: - Perdoai-me, Jesus - pensou ele - perdoai o orgulho de um velho e perdoai a Vittorini os seus despeitos. Ajudai-me a compreender o que vou presenciar esta noite e deixai-me ficar acordado e bem disposto até de manhã, se tanto for preciso. Deixai que aquela coisa suba em boas condições e assim volte cá para baixo. E lembrai-vos do homem que vai naquela caranguejola, meu Deus! Lembrai-vos dele e acompanhai-o. E ajudai-me, Senhor, quando vier o Verão, pois, tão certo como eu estar aqui, o padre Vittorini e os garotos cá do bairro hão-se querer deitar foguetões na pátio da reitoria. Todos eles olharão o céu, como quem espera a manhã da Redenção e vós, ajudai-me ó meu Deus! a ser como essas crianças em face da grande noite do tempo e do vácuo onde habitais. E ajudai-me a caminhar em frente para ir acender o próximo foguetão da Noite da Independência e acompanhar o padre italiano, com o rosto nimbado da mesma expressão de criança satisfeita perante essa festa de luz que pondes à nossa disposição e nos deixais gozar.
Abriu os olhos.
Vozes lá ao longe, no Cabo Canaveral, gritavam numa confusão. Estranhas forças fantásticas surgiam no écran. Estava ele a sorver a última gota de vinho quando alguém lhe tocou no cotovelo:
- Padre Brian - murmurou-lhe ao ouvido o padre Vittorini - aperte o seu cinto de segurança.
- Vou apertar - respondeu o padre Brian - Vou apertar. E obrigado.
Recostou-se na cadeira e fechou os olhos, a aguardar a explosão. Esperava pelo fogo. Esperava pelo embate e pela voz que lhe ensinaria aquela coisa estúpida, estranha, disparatada e portentosa que era contar de diante para trás....até zero.
Ray Bradbury, "As Máquinas da Alegria", in As Máquinas da Alegria, Lisboa, Livros do Brasil, s/d. [edição original: 1949-1964].
- Desta vez, pode muito bem ser - murmurou Vittorini. - Se subir com um homem lá dentro e conseguir dar a volta ao mundo, com ele vivo, enquanto nós daqui o estamos a ver, muito bem sentados, isso será sem dúvida uma alegria.
O foguetão estava quase preparado para a largada e o padre Brian fechou os olhos durante um momento: - Perdoai-me, Jesus - pensou ele - perdoai o orgulho de um velho e perdoai a Vittorini os seus despeitos. Ajudai-me a compreender o que vou presenciar esta noite e deixai-me ficar acordado e bem disposto até de manhã, se tanto for preciso. Deixai que aquela coisa suba em boas condições e assim volte cá para baixo. E lembrai-vos do homem que vai naquela caranguejola, meu Deus! Lembrai-vos dele e acompanhai-o. E ajudai-me, Senhor, quando vier o Verão, pois, tão certo como eu estar aqui, o padre Vittorini e os garotos cá do bairro hão-se querer deitar foguetões na pátio da reitoria. Todos eles olharão o céu, como quem espera a manhã da Redenção e vós, ajudai-me ó meu Deus! a ser como essas crianças em face da grande noite do tempo e do vácuo onde habitais. E ajudai-me a caminhar em frente para ir acender o próximo foguetão da Noite da Independência e acompanhar o padre italiano, com o rosto nimbado da mesma expressão de criança satisfeita perante essa festa de luz que pondes à nossa disposição e nos deixais gozar.
Abriu os olhos.
Vozes lá ao longe, no Cabo Canaveral, gritavam numa confusão. Estranhas forças fantásticas surgiam no écran. Estava ele a sorver a última gota de vinho quando alguém lhe tocou no cotovelo:
- Padre Brian - murmurou-lhe ao ouvido o padre Vittorini - aperte o seu cinto de segurança.
- Vou apertar - respondeu o padre Brian - Vou apertar. E obrigado.
Recostou-se na cadeira e fechou os olhos, a aguardar a explosão. Esperava pelo fogo. Esperava pelo embate e pela voz que lhe ensinaria aquela coisa estúpida, estranha, disparatada e portentosa que era contar de diante para trás....até zero.
Ray Bradbury, "As Máquinas da Alegria", in As Máquinas da Alegria, Lisboa, Livros do Brasil, s/d. [edição original: 1949-1964].
segunda-feira, 16 de junho de 2014
A passageira da cabine 54. Henri de Toulouse-Lautrec
Henri de Toulouse-Lautrec, The Passenger from Cabin 54 - On a Cruise (La passagère du 54-Promenade en yacht), 1896.
Color lithograph poster with brush, crayon, and spatter. Fine Arts Museums of San Francisco. Achenbach Foundation for Graphic Arts, Bruno and Sadie Adriani Collection.
domingo, 15 de junho de 2014
Nõ teño poder de me partir. D. Fernando de Meneses
Pois que nõ teño poder
Senhora, de me partir
De vos amar [d]e querer
Por vostro quero morir
E moiro de ma dama
Cantiga gravada no frontal da arca tumular de D. Fernando de Meneses e D. Brites de Andrade, do terceiro quartel do século XV.
Emídio M. Ferreira, Um Pensamento de Pedra. Os Jacentes Duplos Medievais e o Túmulo dos Pinheiro na Colegiada de Guimarães. Guimarães, Fundação Cidade de Guimarães, 2013, p. 152.
Senhora, de me partir
De vos amar [d]e querer
Por vostro quero morir
E moiro de ma dama
Cantiga gravada no frontal da arca tumular de D. Fernando de Meneses e D. Brites de Andrade, do terceiro quartel do século XV.
Emídio M. Ferreira, Um Pensamento de Pedra. Os Jacentes Duplos Medievais e o Túmulo dos Pinheiro na Colegiada de Guimarães. Guimarães, Fundação Cidade de Guimarães, 2013, p. 152.
sábado, 14 de junho de 2014
The Boyhood of Raleigh. John Everett Millais
John Everett Millais, The Boyhood of Raleigh, 1870
Nota da Tate ModernThis painting shows an episode from the childhood of the famous sixteenth-century explorer Sir Walter Raleigh. It remains one of Millais’s most popular pictures. The young Raleigh and his brother are listening with rapt attention to the tales of ‘wonders on sea and land’ told by a ‘sunburnt, stalwart Genoese sailor’.Millais is thus showing us a national hero in the making. The toy ship in the lower left suggests Raleigh’s future adventures at sea. Millais painted the background to the picture on the Devon coast near Exeter, not far from where Raleigh had been born.
sexta-feira, 13 de junho de 2014
Enfrentar o touro. Lygia Fagundes Telles
É simples, Rosa, escuta, você está em pânico porque sente que está envelhecendo. Foge do trabalho, das pessoas, vai acabar fugindo de mim. Rosa Ambrósio, como vou fazer entrar nessa cabeça que não existe outra saída, existe? Para escapar da velhice, querida, só morrendo jovem, mas agora não dá mais. A solução é enfrentar sem fazer bico, de bom humor, se possível. Enfrentar o touro, vamos fazer uma viagem? Coisa rápida que a hora é de trabalho, Madrid, Barcelona, você compra seus perfumes, eu vou às touradas.
- Tenho pena do touro.
- Amo a Espanha. Quero te mostrar a água-furtada onde morei no Bairro Gótico, eh! vidão! Aqui está triste demais, minha geração perdeu a esperança, o povo desesperado. E você com essa mania da velhice, quer ser internada? É isso?
Lygia Fagundes Telles, As Horas Nuas. Lisboa. Editorial Presença. 2005 [ed. original 1989], p. 99-100.
- Tenho pena do touro.
- Amo a Espanha. Quero te mostrar a água-furtada onde morei no Bairro Gótico, eh! vidão! Aqui está triste demais, minha geração perdeu a esperança, o povo desesperado. E você com essa mania da velhice, quer ser internada? É isso?
Lygia Fagundes Telles, As Horas Nuas. Lisboa. Editorial Presença. 2005 [ed. original 1989], p. 99-100.
quinta-feira, 12 de junho de 2014
Um outro modo de olhar. Almeida Faria
O visitante ocidental que pela primeira vez chega a Goa e Cochim enfrentará provavelmente a vertigem do caos à sua volta e dentro se si. Quando começa a familiarizar-se com a estonteante exuberância e com as contradições coexistentes, quando julga começar a entender a complexidade das castas, dos cultos e costumes tão diferentes, quando começa a fixar nomes, imagens, atributos dos deuses, tudo lhe foge de súbito, tudo se torna de novo confuso, como se o véu de Maia voltasse a cobrir a indecifrável irrealidade da Índia real.
Quem regressa de uma terra tão diversa traz fragmentos de caras, casas, ruas, cheiros, quartos, uma carga de imagens que, na alfândega-roleta do lembrar e esquecer, deveria pagar excesso de bagagem. Vim carregado de cores e de cansaço mas inteiro e em estado razoável, bem melhor dos que outrora, contentes por regressarem, cantavam:
Lá vos digo que há fadigas
tantas mortes, tantas brigas
e perigos descompassados
que assim vimos destroçados
pelados como formigas.
Vim ainda carregado de algo mais, um outro modo de olhar, a certeza de não pertencer àquele tipo de viajante que não fala do que vê, mas do que imagina ou deseja ver. Trouxe comigo um bloco confusamente escrevinhado, uma curiosidade acrescentada, uma crescente descrença na elegância da descrença. E tornei-me mais atento à infindável memória do mundo, mais capaz de escutar o incansável murmúrio do mundo.
Almeida Faria, O Murmúrio do Mundo. A Índia Revisitada. Desenhos de Bárbara Assis Pacheco. 2ª edição. Lisboa, Tinta da China, 2012.
Quem regressa de uma terra tão diversa traz fragmentos de caras, casas, ruas, cheiros, quartos, uma carga de imagens que, na alfândega-roleta do lembrar e esquecer, deveria pagar excesso de bagagem. Vim carregado de cores e de cansaço mas inteiro e em estado razoável, bem melhor dos que outrora, contentes por regressarem, cantavam:
Lá vos digo que há fadigas
tantas mortes, tantas brigas
e perigos descompassados
que assim vimos destroçados
pelados como formigas.
Vim ainda carregado de algo mais, um outro modo de olhar, a certeza de não pertencer àquele tipo de viajante que não fala do que vê, mas do que imagina ou deseja ver. Trouxe comigo um bloco confusamente escrevinhado, uma curiosidade acrescentada, uma crescente descrença na elegância da descrença. E tornei-me mais atento à infindável memória do mundo, mais capaz de escutar o incansável murmúrio do mundo.
Almeida Faria, O Murmúrio do Mundo. A Índia Revisitada. Desenhos de Bárbara Assis Pacheco. 2ª edição. Lisboa, Tinta da China, 2012.
quarta-feira, 11 de junho de 2014
terça-feira, 10 de junho de 2014
Já foi voluptuosa descoberta. Eugénio de Andrade
Barcos ou aves
De noite eram barcos, de manhã são aves:
entram cantando pela casa.
Juntos vão pelos dias como irmãos
gémeos, dependentes
uns dos outros como estrelas
da mesma constelação.
Cada viagem já foi voluptuosa
descoberta de emoções
de porto em porto; agora
é só o gosto inteligente
de regressar à pequena praça
de muros caiados, à casa
onde o corpo se reconheceu noutro corpo,
fiéis a esta luz, este mar.
Eugénio de Andrade, Poesia. Vila Nova de Gaia, Rosto Editora, 2011, p 603-604.
De noite eram barcos, de manhã são aves:
entram cantando pela casa.
Juntos vão pelos dias como irmãos
gémeos, dependentes
uns dos outros como estrelas
da mesma constelação.
Cada viagem já foi voluptuosa
descoberta de emoções
de porto em porto; agora
é só o gosto inteligente
de regressar à pequena praça
de muros caiados, à casa
onde o corpo se reconheceu noutro corpo,
fiéis a esta luz, este mar.
Eugénio de Andrade, Poesia. Vila Nova de Gaia, Rosto Editora, 2011, p 603-604.
segunda-feira, 9 de junho de 2014
O olhar espalmado. Eugénio de Andrade
Notas de viagem
Os amieiros, a casa em ruína,
o olhar
espalmado entre as folhas
do livro, as nasaladas
vozes das crianças sobre a água,
a boca da sombra onde as maçãs
ardem com brilhos de metal,
a repentina
aparição do silêncio
ao fundo das escadas
a porta aberta
sobre a descarnada luz da cal.
Eugénio de Andrade, Poesia. Vila Nova de Gaia, Rosto Editora, 2011, p 546
Os amieiros, a casa em ruína,
o olhar
espalmado entre as folhas
do livro, as nasaladas
vozes das crianças sobre a água,
a boca da sombra onde as maçãs
ardem com brilhos de metal,
a repentina
aparição do silêncio
ao fundo das escadas
a porta aberta
sobre a descarnada luz da cal.
Eugénio de Andrade, Poesia. Vila Nova de Gaia, Rosto Editora, 2011, p 546
domingo, 8 de junho de 2014
Passagem Norte-Oeste.John Everett Millais
John Everett Millais,The North-West Passage, 1874
Nota da Tate Modern
The north-west passage was the unnavigable sea route round North America which was thought to provide a passage to the East. In time, it became synonymous with failure, adversity and death, with men and ships battling against hopeless odds in a frozen wilderness. Millais painted this picture in 1874 when another English expedition was setting off. Previous representations had shown had explored the desolate beauty of the terrain with details such as wrecked ships to underline the futility of man’s ambition. Millais encapsulates the risks of such a voyage primarily through the old seaman, with his grim, distant look and clenched fist.
sábado, 7 de junho de 2014
Corre mundo e conta histórias. Hans Christian Andersen
Era uma vez um mercador, que era tão rico que podia calcetar toda a rua, e quase uma ruelazinha ainda, com moedas de prata. Mas não o fez, sabia empregar o seu dinheiro de outro modo e se despendia um xelim, recebia um táler em troca. Assim era o mercador…e assim morreu.
O filho ficou então com todo esse dinheiro e levou a vida a divertir-se. Foi todas as noites a mascaradas, armou papagaios com as notas de táleres e fez saltitar sobre a superfície do mar moedas de ouro em vez de pedrinhas. Bem podia o dinheiro sumir-se e assim sucedeu. Por fim não possuía mais do que quatro xelins e não tinha outra roupa senão um velho roupão e um par de pantufas. Então não se importaram mais os amigos com ele, pois já não podiam ir juntos para a rua; mas um deles, que era bom, mandou-lhe uma velha arca e disse: - Enche-a! – Sim, estava tudo muito bem, mas ele não tinha nada para a encher e assim sentou-se ele próprio na arca.
Era uma arca cómica. Logo que se premia a fechadura, a arca punha-se a voar. Foi isso que fez, bumba!, voou com ele por aí acima através da chaminé, alto por sobre as nuvens, cada vez mais longe. Rangia no fundo e ele estava com medo de que se fizesse em pedaços, pois sendo assim vinha a dar um bem bonito salto. Deus nos livre disso! E chegou à terra dos turcos. A arca, escondeu-a no bosque, sob folhas murchas e dirigiu-se à cidade. Bem o podia fazer, pois os turcos andam todos como ele, em roupão e pantufas. Encontrou assim uma ama com uma criancinha.
- Ouve, ama de turcos! – disse ele. – Que palácio é este grande, junto à cidade? As janelas são tão altas!
- Mora lá a filha do rei! – disse ela. – Foi-lhe profetizado que seria infeliz por causa de um namorado e por isso ninguém pode aproximar-se dela, sem o rei e a rainha estarem na sua companhia!
- Obrigado! – disse o filho do mercador e foi depois para o bosque, sentou-se na arca, voou para o telhado e deslizando entrou pela janela do aposento em que estava a princesa.
Estava deitada no sofá a dormir. Era tão bonita que o filho do mercador teve de a beijar. Ela acordou e ficou muito assustada, mas ele disse que era o deus dos turcos que tinha descido pelo ar e isso pareceu-lhe bem a ela.
Sentaram-se assim ao lado um do outro e ele contou-lhe histórias sobre os olhos dela, que eram os mais lindos lagos de tons escuros em que os pensamentos nadavam como sereias. E falou-lhe da sua testa que era uma montanha de neve com as mais belas grutas e figuras e contou-lhe de como as cegonhas trazem os bebés.
Oh! Eram histórias bem bonitas! Assim se declarou à princesa e ela disse logo que sim.
- Mas tem de vir aqui no sábado – disse ela. – O rei e a rainha estão comigo para o chá. Ficarão muito orgulhosos de eu receber o deus dos turcos, mas veja se sabe uma história verdadeiramente bonita, pois os meus pais gostam muito de histórias. A minha mãe gosta que elas sejam morais e finas e meu pai divertidas, para se rir!
- Sim, não trago outro presente de noivado senão uma história! – disse ele. E então separaram-se, mas a princesa deu-lhe um sabre, incrustado com moedas de ouro e, a estas, bem sabia como utilizá-las.
Voou lá para fora, comprou um roupão novo e sentou-se no bosque a compor uma história que teria de ficar pronta até sábado. E fácil não era.
Ficou por fim pronta e chegou o sábado.
O rei e a rainha e toda a corte esperavam, convidados para o chá da princesa. Ele foi admiravelmente bem recebido!
- Quer então contar uma história? – disse a rainha. – Uma que seja de sentido profundo e instrutivo!
- Mas que faça também rir! – disse o rei.
- Certamente! – disse ele e começou a contar. Temos de ouvi-la bem!
Era uma vez um pacote de fósforos, extraordinariamente orgulhoso pelo facto de ser de alta estirpe. A sua árvore genealógica, quer dizer, o grande abeto, de que eram um pedacinho, tinha sido uma grande árvore antiga do bosque. Os fósforos estavam agora na prateleira entre um isqueiro e uma velha panela de ferro e entre si contavam histórias da juventude. – Sim, quando estávamos no ramo verde! – diziam eles. – Estávamos então verdadeiramente num ramo verde! Todas as manhãs e todas as noites chá de diamantes, que era o orvalho. Todos os dias tínhamos luz do sol, quando o sol brilhava e todas aves vinham contar-nos histórias. Bem podíamos aperceber-nos de que éramos ricos, pois as árvores de folha caduca só estavam vestidas no Verão, mas a nossa família possuía meios para ter vestuário verde tanto no Verão como no Inverno. Vieram então os lenhadores, foi a grande revolução e a nossa família dispersou-se. O tronco obteve um lugar no mastro real num belo navio que podia navegar à volta do mundo, se quisesse. Os outros ramos foram para outros lugares e nós temos agora a tarefa de acender a luz para a arraia-miúda. Por isso somos gente distinta vinda parar aqui, à cozinha.
- Sim, comigo passa-se de outro modo! – disse a panela de ferro, ao lado da qual estavam os fósforos. – Desde que vim ao mundo que sou esfregada e posta ao lume continuamente! Cuido dos alimentos sólidos e sou, a nem dizer, a coisa primeira aqui em casa. A minha única alegria é, depois da refeição, ficar aqui limpa e bonita na prateleira e ter uma conversa razoada com os camaradas. Mas, se exceptuarmos o balde de água que, uma vez por outra, desce ao jardim, vivemos sempre dentro de portas. O nosso único porta-novas é o cesto de compras, mas ele fala tão violentamente contra governo e o povo! Sim, outro dia até um velho pote caiu lá de cima, de medo, e desfez-se em pedaços! Tem cá umas ideias! Vou-vos dizer! – Agora está a falar demais! – disse o isqueiro e o aço bateu na pederneira de modo que faiscou. – Não queremos ter uma noite agradável?
- Sim, falemos sobre aquele de nós que é o mais distinto! – disseram os fósforos.
- Não, não gosto de falar de mim…– disse a panela de ferro. – Façamos uma espécie de serão! Começo eu. Vou contar-lhes algo que cada um já viveu. Podem compreender melhor a situação e é mais agradável. Junto ao Báltico, nas baías dinamarquesas…
- É um lindo começo! – disseram todos os pratos. – Vai ser certamente uma história de que se irá gostar.
- Sim, aí passei a minha juventude, em casa de uma família tranquila. Os móveis eram polidos, o chão esfregado e havia cortinas lavadas todos os quinze dias!
- Como conta isso de modo tão interessante! – disse o espanador. – Pode-se perceber logo que o narrador é feminino. Há em tudo algo de asseado!
- Sim, sente-se isso! – disse o balde de água e deu assim, de alegria, um saltinho, de modo que fez “clatch” no chão.
E a panela continuou a contar e o fim foi tão bom como o princípio.
Todos os pratos matraquearam de alegria e o espanador foi buscar salsa verde do buraco de areia e coroou a panela, pois sabia que isso aborreceria os outros e pensou “se a coroo hoje, vai coroar-me ela amanhã”.
- Agora vou dançar! – disse a tenaz e dançou. Deus meu! Como sabia pôr uma perna no ar! O velho pano que cobria a cadeira ao canto rasgou-se ao vê-la. – Posso ser coroada? – perguntou a tenaz. E foi-o.
“É populaça da pior!” pensaram os fósforos.
Agora era a vez de o samovar cantar, mas estava resfriado, disse ele, não o podia fazer sem estar a ferver. Era, porém, simples delicadeza. Não queria cantar, senão quando se encontrava à mesa dos senhores.
Na janela estava uma velha pena, com a qual a criada costumava escrever. Nada havia de notável nela, senão que fora mergulhada demasiado fundo no tinteiro e por isso se julgava grande. – Se o samovar não quer cantar – disse ela – deixá-lo! Lá fora, numa gaiola, está um rouxinol que sabe cantar. Verdadeiramente, não estudou nada, mas não queremos malzizer esta noite, pois não ?!
- Acho muito impróprio – disse a chaleira que era a cantora da cozinha e meia-irmã do samovar – que se tenha de ouvir um pássaro estrangeiro! Isso é patriótico? Quero ouvir a opinião do cesto de compras!
- Estou simplesmente desgostoso! – disse o cesto de compras. – Estou tão interiormente desgostosos como ninguém pode imaginar! Isto é maneira própria de passar a noite? Não seria mais acertado dar uma boa volta pela casa? Cada um iria para o seu lugar e eu dirigiria a confusão. Sempre seria outra coisa!
- Sim, façamos algazarra! – disseram todos. Nesse momento, a porta abriu-se. Era a criada. Ficaram todos quietos. Nenhum tugiu nem mugiu. Mas não havia panela alguma que não soubesse a sua valia e como era distinta.
“Sim, se tivesse querido”, pensavam elas, “teria sido verdadeiramente uma noite divertida!”
A criada pegou nos fósforos, fez fogo com eles. Deus meu! Como faiscaram e flamejaram!
“Agora podem todos ver”, pensaram eles, “que somos os primeiros! Que brilho temos! Que luz!” Mas, assim, arderam completamente.
- Foi uma bela história! – disse a rainha. – Senti-me perfeitamente na cozinha com os fósforos. Sim, vais ter a nossa filha!
- Certamente! – disse o rei. – Vais ter a nossa filha na segunda-feira! – Agora tratavam-no por “tu” pois ia ser da família.
A data da boda foi fixada e na noite anterior toda a cidade foi iluminada. Bolos e biscoitos voaram ao desbarato. Os rapazes da rua punham-se em bicos de pés, davam hurras e assobiavam com os dedos. Foi uma maravilha.
“Sim, tenho de ver se faço também alguma coisa”, pensou o filho do mercador. E comprou foguetes, estalinhos e todo o fogo de artifício que se podia imaginar. Carregou-o na arca e voou pelo ar.
Rutch! Como saltava! E como flamejava!
Todos os turcos deram pulos de contentes, de modo que as pantufas voaram-lhes até às orelhas. Um espectáculo do céu, assim, nunca se tinha visto. Agora podiam bem compreender que era o próprio deus dos turcos que ia casar com a princesa.
Logo que o filho do mercador desceu de novo com a sua arca ao bosque, pensou: “Quero ir agora à cidade para ouvir contar como viram o espectáculo!” E era bem natural que tivesse vontade disso.
Oh! O que contavam! Cada uma das pessoas a quem perguntou, tinha-o visto a seu modo, mas bonito tinha sido para todas.
- Eu vi o próprio deus dos turcos – disse uma. – Tinha os olhos como estrelas brilhantes e barba como água espumante!
- Voava com uma capa de fogo – disse outra. – Os mais lindos anjinhos espreitavam de dentro das pregas.
Sim, foram coisas bonitas que ouviu e no dia seguinte seriam as bodas.
Então voltou ao bosque para se sentar na sua arca… mas onde estava ela? A arca ardera completamente. Uma fagulha do fogo de artifício tinha ficado lá, dentro e ateara o fogo. Agora, a arca era cinza. Não podia voar mais. Não mais voltar para junto da noiva.
Ficou todo o dia no telhado à espera, está ainda à espera. Mas ele corre mundo e conta histórias. Não são já, contudo, tão divertidas como a que contou sobre o pacote de fósforos.
Hans Christian Andersen, “A arca voadora”, In Os Cisnes Selvagens e Outros Contos, Lisboa, Editorial Estampa, 2003, pp. 77-83.
O filho ficou então com todo esse dinheiro e levou a vida a divertir-se. Foi todas as noites a mascaradas, armou papagaios com as notas de táleres e fez saltitar sobre a superfície do mar moedas de ouro em vez de pedrinhas. Bem podia o dinheiro sumir-se e assim sucedeu. Por fim não possuía mais do que quatro xelins e não tinha outra roupa senão um velho roupão e um par de pantufas. Então não se importaram mais os amigos com ele, pois já não podiam ir juntos para a rua; mas um deles, que era bom, mandou-lhe uma velha arca e disse: - Enche-a! – Sim, estava tudo muito bem, mas ele não tinha nada para a encher e assim sentou-se ele próprio na arca.
Era uma arca cómica. Logo que se premia a fechadura, a arca punha-se a voar. Foi isso que fez, bumba!, voou com ele por aí acima através da chaminé, alto por sobre as nuvens, cada vez mais longe. Rangia no fundo e ele estava com medo de que se fizesse em pedaços, pois sendo assim vinha a dar um bem bonito salto. Deus nos livre disso! E chegou à terra dos turcos. A arca, escondeu-a no bosque, sob folhas murchas e dirigiu-se à cidade. Bem o podia fazer, pois os turcos andam todos como ele, em roupão e pantufas. Encontrou assim uma ama com uma criancinha.
- Ouve, ama de turcos! – disse ele. – Que palácio é este grande, junto à cidade? As janelas são tão altas!
- Mora lá a filha do rei! – disse ela. – Foi-lhe profetizado que seria infeliz por causa de um namorado e por isso ninguém pode aproximar-se dela, sem o rei e a rainha estarem na sua companhia!
- Obrigado! – disse o filho do mercador e foi depois para o bosque, sentou-se na arca, voou para o telhado e deslizando entrou pela janela do aposento em que estava a princesa.
Estava deitada no sofá a dormir. Era tão bonita que o filho do mercador teve de a beijar. Ela acordou e ficou muito assustada, mas ele disse que era o deus dos turcos que tinha descido pelo ar e isso pareceu-lhe bem a ela.
Sentaram-se assim ao lado um do outro e ele contou-lhe histórias sobre os olhos dela, que eram os mais lindos lagos de tons escuros em que os pensamentos nadavam como sereias. E falou-lhe da sua testa que era uma montanha de neve com as mais belas grutas e figuras e contou-lhe de como as cegonhas trazem os bebés.
Oh! Eram histórias bem bonitas! Assim se declarou à princesa e ela disse logo que sim.
- Mas tem de vir aqui no sábado – disse ela. – O rei e a rainha estão comigo para o chá. Ficarão muito orgulhosos de eu receber o deus dos turcos, mas veja se sabe uma história verdadeiramente bonita, pois os meus pais gostam muito de histórias. A minha mãe gosta que elas sejam morais e finas e meu pai divertidas, para se rir!
- Sim, não trago outro presente de noivado senão uma história! – disse ele. E então separaram-se, mas a princesa deu-lhe um sabre, incrustado com moedas de ouro e, a estas, bem sabia como utilizá-las.
Voou lá para fora, comprou um roupão novo e sentou-se no bosque a compor uma história que teria de ficar pronta até sábado. E fácil não era.
Ficou por fim pronta e chegou o sábado.
O rei e a rainha e toda a corte esperavam, convidados para o chá da princesa. Ele foi admiravelmente bem recebido!
- Quer então contar uma história? – disse a rainha. – Uma que seja de sentido profundo e instrutivo!
- Mas que faça também rir! – disse o rei.
- Certamente! – disse ele e começou a contar. Temos de ouvi-la bem!
Era uma vez um pacote de fósforos, extraordinariamente orgulhoso pelo facto de ser de alta estirpe. A sua árvore genealógica, quer dizer, o grande abeto, de que eram um pedacinho, tinha sido uma grande árvore antiga do bosque. Os fósforos estavam agora na prateleira entre um isqueiro e uma velha panela de ferro e entre si contavam histórias da juventude. – Sim, quando estávamos no ramo verde! – diziam eles. – Estávamos então verdadeiramente num ramo verde! Todas as manhãs e todas as noites chá de diamantes, que era o orvalho. Todos os dias tínhamos luz do sol, quando o sol brilhava e todas aves vinham contar-nos histórias. Bem podíamos aperceber-nos de que éramos ricos, pois as árvores de folha caduca só estavam vestidas no Verão, mas a nossa família possuía meios para ter vestuário verde tanto no Verão como no Inverno. Vieram então os lenhadores, foi a grande revolução e a nossa família dispersou-se. O tronco obteve um lugar no mastro real num belo navio que podia navegar à volta do mundo, se quisesse. Os outros ramos foram para outros lugares e nós temos agora a tarefa de acender a luz para a arraia-miúda. Por isso somos gente distinta vinda parar aqui, à cozinha.
- Sim, comigo passa-se de outro modo! – disse a panela de ferro, ao lado da qual estavam os fósforos. – Desde que vim ao mundo que sou esfregada e posta ao lume continuamente! Cuido dos alimentos sólidos e sou, a nem dizer, a coisa primeira aqui em casa. A minha única alegria é, depois da refeição, ficar aqui limpa e bonita na prateleira e ter uma conversa razoada com os camaradas. Mas, se exceptuarmos o balde de água que, uma vez por outra, desce ao jardim, vivemos sempre dentro de portas. O nosso único porta-novas é o cesto de compras, mas ele fala tão violentamente contra governo e o povo! Sim, outro dia até um velho pote caiu lá de cima, de medo, e desfez-se em pedaços! Tem cá umas ideias! Vou-vos dizer! – Agora está a falar demais! – disse o isqueiro e o aço bateu na pederneira de modo que faiscou. – Não queremos ter uma noite agradável?
- Sim, falemos sobre aquele de nós que é o mais distinto! – disseram os fósforos.
- Não, não gosto de falar de mim…– disse a panela de ferro. – Façamos uma espécie de serão! Começo eu. Vou contar-lhes algo que cada um já viveu. Podem compreender melhor a situação e é mais agradável. Junto ao Báltico, nas baías dinamarquesas…
- É um lindo começo! – disseram todos os pratos. – Vai ser certamente uma história de que se irá gostar.
- Sim, aí passei a minha juventude, em casa de uma família tranquila. Os móveis eram polidos, o chão esfregado e havia cortinas lavadas todos os quinze dias!
- Como conta isso de modo tão interessante! – disse o espanador. – Pode-se perceber logo que o narrador é feminino. Há em tudo algo de asseado!
- Sim, sente-se isso! – disse o balde de água e deu assim, de alegria, um saltinho, de modo que fez “clatch” no chão.
E a panela continuou a contar e o fim foi tão bom como o princípio.
Todos os pratos matraquearam de alegria e o espanador foi buscar salsa verde do buraco de areia e coroou a panela, pois sabia que isso aborreceria os outros e pensou “se a coroo hoje, vai coroar-me ela amanhã”.
- Agora vou dançar! – disse a tenaz e dançou. Deus meu! Como sabia pôr uma perna no ar! O velho pano que cobria a cadeira ao canto rasgou-se ao vê-la. – Posso ser coroada? – perguntou a tenaz. E foi-o.
“É populaça da pior!” pensaram os fósforos.
Agora era a vez de o samovar cantar, mas estava resfriado, disse ele, não o podia fazer sem estar a ferver. Era, porém, simples delicadeza. Não queria cantar, senão quando se encontrava à mesa dos senhores.
Na janela estava uma velha pena, com a qual a criada costumava escrever. Nada havia de notável nela, senão que fora mergulhada demasiado fundo no tinteiro e por isso se julgava grande. – Se o samovar não quer cantar – disse ela – deixá-lo! Lá fora, numa gaiola, está um rouxinol que sabe cantar. Verdadeiramente, não estudou nada, mas não queremos malzizer esta noite, pois não ?!
- Acho muito impróprio – disse a chaleira que era a cantora da cozinha e meia-irmã do samovar – que se tenha de ouvir um pássaro estrangeiro! Isso é patriótico? Quero ouvir a opinião do cesto de compras!
- Estou simplesmente desgostoso! – disse o cesto de compras. – Estou tão interiormente desgostosos como ninguém pode imaginar! Isto é maneira própria de passar a noite? Não seria mais acertado dar uma boa volta pela casa? Cada um iria para o seu lugar e eu dirigiria a confusão. Sempre seria outra coisa!
- Sim, façamos algazarra! – disseram todos. Nesse momento, a porta abriu-se. Era a criada. Ficaram todos quietos. Nenhum tugiu nem mugiu. Mas não havia panela alguma que não soubesse a sua valia e como era distinta.
“Sim, se tivesse querido”, pensavam elas, “teria sido verdadeiramente uma noite divertida!”
A criada pegou nos fósforos, fez fogo com eles. Deus meu! Como faiscaram e flamejaram!
“Agora podem todos ver”, pensaram eles, “que somos os primeiros! Que brilho temos! Que luz!” Mas, assim, arderam completamente.
- Foi uma bela história! – disse a rainha. – Senti-me perfeitamente na cozinha com os fósforos. Sim, vais ter a nossa filha!
- Certamente! – disse o rei. – Vais ter a nossa filha na segunda-feira! – Agora tratavam-no por “tu” pois ia ser da família.
A data da boda foi fixada e na noite anterior toda a cidade foi iluminada. Bolos e biscoitos voaram ao desbarato. Os rapazes da rua punham-se em bicos de pés, davam hurras e assobiavam com os dedos. Foi uma maravilha.
“Sim, tenho de ver se faço também alguma coisa”, pensou o filho do mercador. E comprou foguetes, estalinhos e todo o fogo de artifício que se podia imaginar. Carregou-o na arca e voou pelo ar.
Rutch! Como saltava! E como flamejava!
Todos os turcos deram pulos de contentes, de modo que as pantufas voaram-lhes até às orelhas. Um espectáculo do céu, assim, nunca se tinha visto. Agora podiam bem compreender que era o próprio deus dos turcos que ia casar com a princesa.
Logo que o filho do mercador desceu de novo com a sua arca ao bosque, pensou: “Quero ir agora à cidade para ouvir contar como viram o espectáculo!” E era bem natural que tivesse vontade disso.
Oh! O que contavam! Cada uma das pessoas a quem perguntou, tinha-o visto a seu modo, mas bonito tinha sido para todas.
- Eu vi o próprio deus dos turcos – disse uma. – Tinha os olhos como estrelas brilhantes e barba como água espumante!
- Voava com uma capa de fogo – disse outra. – Os mais lindos anjinhos espreitavam de dentro das pregas.
Sim, foram coisas bonitas que ouviu e no dia seguinte seriam as bodas.
Então voltou ao bosque para se sentar na sua arca… mas onde estava ela? A arca ardera completamente. Uma fagulha do fogo de artifício tinha ficado lá, dentro e ateara o fogo. Agora, a arca era cinza. Não podia voar mais. Não mais voltar para junto da noiva.
Ficou todo o dia no telhado à espera, está ainda à espera. Mas ele corre mundo e conta histórias. Não são já, contudo, tão divertidas como a que contou sobre o pacote de fósforos.
Hans Christian Andersen, “A arca voadora”, In Os Cisnes Selvagens e Outros Contos, Lisboa, Editorial Estampa, 2003, pp. 77-83.
sexta-feira, 6 de junho de 2014
quinta-feira, 5 de junho de 2014
A Viagem (VI-VIII). Charles Beaudelaire
VI
Ó que infantil curiosidade!
Quereis saber o essencial?
Por toda a parte saltava à vista,
De alto abaixo da escala fatal,
O espectáculo repetitivo do imortal pecado.
A mulher, escrava vil orgulhosa e estúpida
Narcísica e amando-se sem escrúpulos;
O homem, tirano glutão devasso duro e cúpido
Escravo do escravo abaixo de cão
O carrasco que pune com prazer, o mártir que emudece;
A festa perfumada com temperos de sangue;
O veneno do poder reforçando o déspota,
E o povo que adora o látego que o embrutece;
Várias religiões que como a nossa pretendem escalar o céu -
A santidade? Como se dum leito de plumas se tratasse um delicado
Se espoja em pregos e crinas em busca de volúpia
A humanidade tagarela, ébria do seu génio
E louca. agora como o foi outrora,
Amaldiçoava deus numa imensa gritaria
Considerando-o seu mestre e semelhante
Porque ambos mergulhados em idêntica agonia.
Os mesmos parvos, amantes ousados da demência,
Fugindo do grande rebanho agregado pelo destino,
Refugiam-se nos imensos poderes do ópio!
VII
Estas a notícias de sempre do nosso globo,
O saber amargo que nos deixa a viagem!
O mundo monótono e pequeno
Dar-nos-á sempre a mesma imagem, a nossa -
Um oásis de horror num deserto de tédio.
Partir ou ficar? Se possível, ficar. Caso contrário, largar amarras,
Movimento de mobilidade são estratégias para iludir o tempo,
Funesto inimigo vigilante e nosso. E, depois, existem os compulsivos,
Como o Judeu errante e os apóstolos
Qualquer meio de transporte lhe serve
Para escapar à rede infam das relações impostas.
Outros há também que sabem matá-lo sem sair do berço.
Quando o tempo nos pisa a espinha,
Podemos sempre gritar: para a frente, caminha.
Noutros tempos ia-se para a China,
Os olhos fixos no horizonte e os cabelos ao vento.
Agora embarcamos para o mar das trevas,
Com o coração ligeiro de passageiros jovens.
Ouçam lá essas vozes encantadoras e fúnebres
Qu cantam: "Vinde por aqui, se quereis provar
O Lótus perfumado! É aqui que colhemos
Os frutos milagrosos de que o vosso coração tem fome;
Vinde. Inebriai-vos com a doçura estranha
Desta tarde que não será evanescente!"
Sabemos que espectro nos chama.
Sua voz é-nos familiar. São as Pílades.
Tendem os braços para nos abraçar.
Aquela a quem outrora beijávamos os joelhos
Diz-nos que nademos até Electra e refresquemos o coração.
VIII
Chegou a hora, levantemos âncora, esta terra nos entedia,
Ó morte, experiente mestra. Aparelhemos!
Sob o céu e a terra carregados de negro,
Nossos corações que já conheces irradiam.
Bebamos o teu veneno! Que ele nos reconforte!
Essa fogo inflama-nos tanto o cérebro
Que queremos mergulhar no fundo do desconhecido
- Céu ou inferno, pouco importa -
Para encontrarmos o novo e o seu repto.
Charles Baudelaire, As Flores do Mal. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Lisboa, Relógio d'Água, 2003 [ed. original 1857], p. 295-299.
Ó que infantil curiosidade!
Quereis saber o essencial?
Por toda a parte saltava à vista,
De alto abaixo da escala fatal,
O espectáculo repetitivo do imortal pecado.
A mulher, escrava vil orgulhosa e estúpida
Narcísica e amando-se sem escrúpulos;
O homem, tirano glutão devasso duro e cúpido
Escravo do escravo abaixo de cão
O carrasco que pune com prazer, o mártir que emudece;
A festa perfumada com temperos de sangue;
O veneno do poder reforçando o déspota,
E o povo que adora o látego que o embrutece;
Várias religiões que como a nossa pretendem escalar o céu -
A santidade? Como se dum leito de plumas se tratasse um delicado
Se espoja em pregos e crinas em busca de volúpia
A humanidade tagarela, ébria do seu génio
E louca. agora como o foi outrora,
Amaldiçoava deus numa imensa gritaria
Considerando-o seu mestre e semelhante
Porque ambos mergulhados em idêntica agonia.
Os mesmos parvos, amantes ousados da demência,
Fugindo do grande rebanho agregado pelo destino,
Refugiam-se nos imensos poderes do ópio!
VII
Estas a notícias de sempre do nosso globo,
O saber amargo que nos deixa a viagem!
O mundo monótono e pequeno
Dar-nos-á sempre a mesma imagem, a nossa -
Um oásis de horror num deserto de tédio.
Partir ou ficar? Se possível, ficar. Caso contrário, largar amarras,
Movimento de mobilidade são estratégias para iludir o tempo,
Funesto inimigo vigilante e nosso. E, depois, existem os compulsivos,
Como o Judeu errante e os apóstolos
Qualquer meio de transporte lhe serve
Para escapar à rede infam das relações impostas.
Outros há também que sabem matá-lo sem sair do berço.
Quando o tempo nos pisa a espinha,
Podemos sempre gritar: para a frente, caminha.
Noutros tempos ia-se para a China,
Os olhos fixos no horizonte e os cabelos ao vento.
Agora embarcamos para o mar das trevas,
Com o coração ligeiro de passageiros jovens.
Ouçam lá essas vozes encantadoras e fúnebres
Qu cantam: "Vinde por aqui, se quereis provar
O Lótus perfumado! É aqui que colhemos
Os frutos milagrosos de que o vosso coração tem fome;
Vinde. Inebriai-vos com a doçura estranha
Desta tarde que não será evanescente!"
Sabemos que espectro nos chama.
Sua voz é-nos familiar. São as Pílades.
Tendem os braços para nos abraçar.
Aquela a quem outrora beijávamos os joelhos
Diz-nos que nademos até Electra e refresquemos o coração.
VIII
Chegou a hora, levantemos âncora, esta terra nos entedia,
Ó morte, experiente mestra. Aparelhemos!
Sob o céu e a terra carregados de negro,
Nossos corações que já conheces irradiam.
Bebamos o teu veneno! Que ele nos reconforte!
Essa fogo inflama-nos tanto o cérebro
Que queremos mergulhar no fundo do desconhecido
- Céu ou inferno, pouco importa -
Para encontrarmos o novo e o seu repto.
Charles Baudelaire, As Flores do Mal. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Lisboa, Relógio d'Água, 2003 [ed. original 1857], p. 295-299.
quarta-feira, 4 de junho de 2014
A viagem (I-V). Charles Beaudelaire
I
O miúdo que coleccionava mapas e cromos
Imagina que o seu gosto que cresce expande o universo;
Tão grande é o mundo à luz da vela, como provinciano
Se revela quando a memória o desdobra!
Um dia, nos vamos, o cérebro, em revoltas chamas,
O coração pleno de rancor de amargura e de desejo
E não paramos embalados pelo ritmo das vagas,
O nosso infinito ondulando com o mar finito.
Uns, felizes por escapar a uma pátria infame,
Outros, ao horror que o gregário lhe deixou,
Outros são os astrólogos afogados nos olhos de uma mulher
Uma Circe qualquer cheirando a perigo e a tirana.
Não querem voltar a bichos, razão por que a luz
O espaço e os céus inflamados os inebriam;
O frio que endurece e o sol que bronzeia
Apagam lentamente o rasto outrora dos afectos.
Para os verdadeiros viajantes, no entanto a viagem não tem porquê.
Corações leves, a balões semelhantes,
Nunca se afastam da rota que o destino traça -
"Vamos", apenas dizem. E vão.
Seus desejos são nuvens em mudança permanente,
Sonham inexperientes com volúpias dotadas de imprevisível -
Formas contínuas variáveis e desconhecidas
Cuja escrita o espírito humano nunca decifrou.
II
Não pode o berlinde abafar o pião, eis
Porque o imita - rodopio gira e dança.
Assim, o sonho e a realidade que o espicaça
Como um anjo cruel exigindo às estrelas que não brilhem.
Invulgar figura a de um cursor sem guia
Que, inexistente, é indiferente onde se fixa.
Esse cursor é o homem confiante no ponto ideal,
Na busca de repouso desliza como um louco.
Senão, vejamos.
A alma é um três mastros rumo à Ilha dos Amores;
Da ponte o mestre grita "olho vivo, marinheiro",
Da gávea uma voz lhe responde entusiasta
"Amores à vista, mestre". Engano. É mais um escolho.
Para o homem da vigia, cada ilha no horizonte
É a tal ilha assinalada no mapa do destino;
Sua imaginação alimenta-se dessa iguaria e,
Ao raiar do dia, apenas depara com recifes pela frente.
Pobre homem da vigia, vítima alucinada!
Não seria melhor pô-lo a ferros? Deitar ao mar
Esse marinheiro fantasista, inventor de américas,
Cujas miragens tornam o abismo, se possível, mais amargo?
Quantos vagabundos, de pés na lama,
Não sonham, de nariz no ar, com paraísos brilhantes!
Nas missangas que sua lanterna esclarece
Apenas vêem diamantes com seu olhar enfeitiçado.
III
Viajantes fantásticos,
Nos vossos olhares inscritos
Trazeis narrativas nobres e mares profundos.
Abri-nos o escrínio de vossas ricas memórias,
Essas jóias maravilhosas feitas de astros e éteres.
Farei desfilar por nossos espíritos como telas
Essas jóias na sua verdadeira panorâmica.
Viajaremos imóveis. Não precisamos de velas o de vapor
Para aliviar o tédio que nos aprisiona.
Digam? Que nos trazeis?
IV
Vimos areais vagas e astros
E, apesar dos perigos e dos imprevisíveis desastres,
Muitas vezes fomos acometidos de tédio, tal como aqui.
A glória do sol sobre o mar violeta,
O esplendor das cidades ao pôr-do-sol
Incendiavam nos nossos corações um ardor inquieto
De mergulhar num céu de reflexos apelativos.
Mas atenção, as mais ricas cidades, as mais vastas paisagens
Nunca exerceram sobre nós a misteriosa atracção
Que sempre exerce a mutabilidade das nuvens.
E havia o desejo. Deixava-nos inquietos
Se bem que a experiência do saber o reforce.
Ó desejo, ó frondosa árvore, mais vivaz do que o cipreste,
Crescerás sempre? Velha árvore nutrida pelo prazer,
Enquanto tua casca endurece e cresce,
Teus ramos querem ver o sol mais próximo!
Regressamos à viagem. Tivemos o cuidado
De trazer alguns esboços para o nosso álbum voraz;
Quanto mais exótica a imagem mais prestigiosa, não é verdade?
Reparai nestes ídolos com trombas de elefantes - saudámo-los.
Vede estes troncos constelados de jóias luminosas;
Estes palácios eram tão ricos de feérica pompa
Que para os nossos banqueiros seriam um sonho ruinoso.
E estes vestidos? Não são para os olhos uma autêntica maravilha?
Olhai para os dentes e os dedos destas mulheres cobertas de tinta!
Este encantador era tão perito que as suas próprias serpentes lhe faziam carícias.
V
E que mais ainda?
Charles Baudelaire, As Flores do Mal. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Lisboa, Relógio d'Água, 2003 [ed. original 1857], p. 289-295.
O miúdo que coleccionava mapas e cromos
Imagina que o seu gosto que cresce expande o universo;
Tão grande é o mundo à luz da vela, como provinciano
Se revela quando a memória o desdobra!
Um dia, nos vamos, o cérebro, em revoltas chamas,
O coração pleno de rancor de amargura e de desejo
E não paramos embalados pelo ritmo das vagas,
O nosso infinito ondulando com o mar finito.
Uns, felizes por escapar a uma pátria infame,
Outros, ao horror que o gregário lhe deixou,
Outros são os astrólogos afogados nos olhos de uma mulher
Uma Circe qualquer cheirando a perigo e a tirana.
Não querem voltar a bichos, razão por que a luz
O espaço e os céus inflamados os inebriam;
O frio que endurece e o sol que bronzeia
Apagam lentamente o rasto outrora dos afectos.
Para os verdadeiros viajantes, no entanto a viagem não tem porquê.
Corações leves, a balões semelhantes,
Nunca se afastam da rota que o destino traça -
"Vamos", apenas dizem. E vão.
Seus desejos são nuvens em mudança permanente,
Sonham inexperientes com volúpias dotadas de imprevisível -
Formas contínuas variáveis e desconhecidas
Cuja escrita o espírito humano nunca decifrou.
II
Não pode o berlinde abafar o pião, eis
Porque o imita - rodopio gira e dança.
Assim, o sonho e a realidade que o espicaça
Como um anjo cruel exigindo às estrelas que não brilhem.
Invulgar figura a de um cursor sem guia
Que, inexistente, é indiferente onde se fixa.
Esse cursor é o homem confiante no ponto ideal,
Na busca de repouso desliza como um louco.
Senão, vejamos.
A alma é um três mastros rumo à Ilha dos Amores;
Da ponte o mestre grita "olho vivo, marinheiro",
Da gávea uma voz lhe responde entusiasta
"Amores à vista, mestre". Engano. É mais um escolho.
Para o homem da vigia, cada ilha no horizonte
É a tal ilha assinalada no mapa do destino;
Sua imaginação alimenta-se dessa iguaria e,
Ao raiar do dia, apenas depara com recifes pela frente.
Pobre homem da vigia, vítima alucinada!
Não seria melhor pô-lo a ferros? Deitar ao mar
Esse marinheiro fantasista, inventor de américas,
Cujas miragens tornam o abismo, se possível, mais amargo?
Quantos vagabundos, de pés na lama,
Não sonham, de nariz no ar, com paraísos brilhantes!
Nas missangas que sua lanterna esclarece
Apenas vêem diamantes com seu olhar enfeitiçado.
III
Viajantes fantásticos,
Nos vossos olhares inscritos
Trazeis narrativas nobres e mares profundos.
Abri-nos o escrínio de vossas ricas memórias,
Essas jóias maravilhosas feitas de astros e éteres.
Farei desfilar por nossos espíritos como telas
Essas jóias na sua verdadeira panorâmica.
Viajaremos imóveis. Não precisamos de velas o de vapor
Para aliviar o tédio que nos aprisiona.
Digam? Que nos trazeis?
IV
Vimos areais vagas e astros
E, apesar dos perigos e dos imprevisíveis desastres,
Muitas vezes fomos acometidos de tédio, tal como aqui.
A glória do sol sobre o mar violeta,
O esplendor das cidades ao pôr-do-sol
Incendiavam nos nossos corações um ardor inquieto
De mergulhar num céu de reflexos apelativos.
Mas atenção, as mais ricas cidades, as mais vastas paisagens
Nunca exerceram sobre nós a misteriosa atracção
Que sempre exerce a mutabilidade das nuvens.
E havia o desejo. Deixava-nos inquietos
Se bem que a experiência do saber o reforce.
Ó desejo, ó frondosa árvore, mais vivaz do que o cipreste,
Crescerás sempre? Velha árvore nutrida pelo prazer,
Enquanto tua casca endurece e cresce,
Teus ramos querem ver o sol mais próximo!
Regressamos à viagem. Tivemos o cuidado
De trazer alguns esboços para o nosso álbum voraz;
Quanto mais exótica a imagem mais prestigiosa, não é verdade?
Reparai nestes ídolos com trombas de elefantes - saudámo-los.
Vede estes troncos constelados de jóias luminosas;
Estes palácios eram tão ricos de feérica pompa
Que para os nossos banqueiros seriam um sonho ruinoso.
E estes vestidos? Não são para os olhos uma autêntica maravilha?
Olhai para os dentes e os dedos destas mulheres cobertas de tinta!
Este encantador era tão perito que as suas próprias serpentes lhe faziam carícias.
V
E que mais ainda?
Charles Baudelaire, As Flores do Mal. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Lisboa, Relógio d'Água, 2003 [ed. original 1857], p. 289-295.
terça-feira, 3 de junho de 2014
segunda-feira, 2 de junho de 2014
Viajar com Simone de Beuavoir (2). Éric Levéel
Mais do que uma advogada feminista [a obra mais famosa de Simone de Beauvoir, Le Deuxième Sexe, foi publicada em 1949], oferecia às suas congéneres uma porta de saída como aquela que ela própria tinha procurado em 1929, quando concluiu a sua agregação em Filosofia na Sorbonne e conheceu Jean-Paul Sartre. Uma vida se desenhava então, criada peça a peça pelas experiências, os encontros e as viagens de formação, de descoberta, e, mais tarde, políticas. Mademoiselle de Beauvoir iria certamente ver degradada a sua imagem junto do seu meio de origem, vista aí como uma hetaïre sem dote e sem relações sociais. Mas antes de mais e acima de tudo, ela transformar-se-ia numa mulher de verdade, numa pensadora de grande qualidade, fazendo da sua vida esse maravilhoso objecto que construímos do nosso modo ao longo dos anos e segundo dados objectivos deste mundo em vez dos dados enganadores ou falsos dos da sua envolvência de nascimento.
Le Deuxième Sexe esconde muitas coisa; é sempre a referencia e a obra imediatamente citada quando o nome de Simone de Beauvoir é mencionado. Mas é um erro grave limitar a experiência de uma vida a uma obra, por mais brilhante que seja. Nem é no vazio nem por acaso que alguém se torna a mãe do feminismo; é preciso observar-se, na sua própria existência criada, para a comparar à da maioria das mulheres. Mais do que dissertar longamente sobre as teses avançadas por Simone de Beauvoir a propósito da condição feminina em França e noutros países, precisamos de nos interrogar sobre como é que ela chegou àquelas conclusões tão pertinentes e e sempre tão tristemente actuais. Uma obra abriga o seu autor, é uma extensão do seu ser, um espelho da sua experiência pessoal.
Se se considerar, como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que a existência precede a essência e que, por consequência, ela é construída e não concebida segundo os caprichos de um Deus omnipresente, podemos então considerar que a viagem constitui um dado primordial da experiência existencial e humana de Simone de Beauvoir, no que isso implica de superação de uma situação e de projecção do outro. O homem e a mulher não são seres fixos mas seres em andamento; estar em situação é tentar chegar à autenticidade e é também tentar sair de si próprio para melhor se compreender. Viajar é em primeiro lugar apropriar-se do mundo.
Éric Levéel, "Introduction". Simone de Beauvoir. Tout Connaître du Monde. Colecção Voyager Avec... Paris, La Quinzaine Littéraire, 2008, p. 10-11.
Le Deuxième Sexe esconde muitas coisa; é sempre a referencia e a obra imediatamente citada quando o nome de Simone de Beauvoir é mencionado. Mas é um erro grave limitar a experiência de uma vida a uma obra, por mais brilhante que seja. Nem é no vazio nem por acaso que alguém se torna a mãe do feminismo; é preciso observar-se, na sua própria existência criada, para a comparar à da maioria das mulheres. Mais do que dissertar longamente sobre as teses avançadas por Simone de Beauvoir a propósito da condição feminina em França e noutros países, precisamos de nos interrogar sobre como é que ela chegou àquelas conclusões tão pertinentes e e sempre tão tristemente actuais. Uma obra abriga o seu autor, é uma extensão do seu ser, um espelho da sua experiência pessoal.
Se se considerar, como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que a existência precede a essência e que, por consequência, ela é construída e não concebida segundo os caprichos de um Deus omnipresente, podemos então considerar que a viagem constitui um dado primordial da experiência existencial e humana de Simone de Beauvoir, no que isso implica de superação de uma situação e de projecção do outro. O homem e a mulher não são seres fixos mas seres em andamento; estar em situação é tentar chegar à autenticidade e é também tentar sair de si próprio para melhor se compreender. Viajar é em primeiro lugar apropriar-se do mundo.
Éric Levéel, "Introduction". Simone de Beauvoir. Tout Connaître du Monde. Colecção Voyager Avec... Paris, La Quinzaine Littéraire, 2008, p. 10-11.
domingo, 1 de junho de 2014
Viajar com Simone de Beauvoir (1). Éric Levéel
Há cem anos [106, tomando como referencia 2014], a 9 de Janeiro de 1908, Simone de Beauvoir nascia numa vivenda do Boulevard Raspail, a artéria ainda meio camponesa de Paris em crescimento da Belle Époque. Puro produto da burguesia e da pequena nobreza, ninguém poderia prever o percurso espantoso desta jovem católica bem comportada. Ela teria sido o que o seu meio dela esperava - se não tivesse acontecido que a Grande Guerra alterou o jogo e precipitou financeiramente Georges de Beauvoir na classe média, isto é, na plebe, para este dandy aristocrata. A bela vivenda rematada por frontão triangular acima do Dôme foi substituída por um apartamento decente mas mais exíguo na rua de Rennes. Esta mudança representou um recuo social que transformaria, numa dezena de anos, Mademoiselle Bertrand de Beauvoir em Castor, trabalhador e viajante.
Antes da viagem geográfica, houve a viagem interior, o que determinou esta existência singular. A viagem não tende necessariamente para os países exóticos, pode antes do mais desenrolar-se em si própria, no seio da sua própria cidade. Antes de descobrir o mundo, Simone de Beauvoir descobriu a sua cidade que na sua infância e adolescência se limitava à Rive Gauche e ao XVIème arrondissement. Até nos seus primeiros tempos de estudante, fazia um caminho estritamente traçado pela sua mãe. O seu primo Jacques, o grande amor infeliz da sua adolescência, fê-la descobrir lugares desconhecidos na sua própria vizinhança; a experiência de equipas sociais permitiu-lhe aventurar-se no Este parisiense operário e popular de que a sua classe conservadora e reaccionária a teria querido proteger. A viagem beauvoiriana é polimorfa e inscreve-se numa opção de vida que faz apelo a um verdadeiro sistema filosófico fundado ma emancipação, na liberdade, na autenticidade. Faz igualmente apelo a uma curiosidade intelectual e a uma vontade de saber e de conhecer que são as bases primeiras da filosofia. Longe das teorias, a filosofia beuavoiriana é uma filosofia da experiência, das sensações e da descoberta de outro, seja onde for que ele se encontre.
Éric Levéel, "Introduction". Simone de Beauvoir. Tout Connaître du Monde. Colecção Voyager Avec... Paris, La Quinzaine Littéraire, 2008, p. 9
Antes da viagem geográfica, houve a viagem interior, o que determinou esta existência singular. A viagem não tende necessariamente para os países exóticos, pode antes do mais desenrolar-se em si própria, no seio da sua própria cidade. Antes de descobrir o mundo, Simone de Beauvoir descobriu a sua cidade que na sua infância e adolescência se limitava à Rive Gauche e ao XVIème arrondissement. Até nos seus primeiros tempos de estudante, fazia um caminho estritamente traçado pela sua mãe. O seu primo Jacques, o grande amor infeliz da sua adolescência, fê-la descobrir lugares desconhecidos na sua própria vizinhança; a experiência de equipas sociais permitiu-lhe aventurar-se no Este parisiense operário e popular de que a sua classe conservadora e reaccionária a teria querido proteger. A viagem beauvoiriana é polimorfa e inscreve-se numa opção de vida que faz apelo a um verdadeiro sistema filosófico fundado ma emancipação, na liberdade, na autenticidade. Faz igualmente apelo a uma curiosidade intelectual e a uma vontade de saber e de conhecer que são as bases primeiras da filosofia. Longe das teorias, a filosofia beuavoiriana é uma filosofia da experiência, das sensações e da descoberta de outro, seja onde for que ele se encontre.
Éric Levéel, "Introduction". Simone de Beauvoir. Tout Connaître du Monde. Colecção Voyager Avec... Paris, La Quinzaine Littéraire, 2008, p. 9
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