domingo, 9 de março de 2014

Tinha voado com os flamingos. Lídia Jorge

A história é breve e verdadeira [reporta-se a um a caso acontecido entre Maio e Junho de 2007], e narra-se mais ou menos da seguinte forma. Àquela data, ali na zona da península de Setúbal, uma família possuía um papagaio. O papagaio costumava voar para junto dos flamingos, subia para o dorso deles e por ali andava a dizer aquelas coisas que os papagaios dizem. Mas um dia o papagaio desapareceu. Consta que os donos percorreram os sapais de ponta a ponta, e nada. Puseram a anúncio, e nada. Só que ao mesmo tempo que os donos, em Portugal, perdiam a esperança de encontrar o seu papagaio, na Tunísia aparecia um papagaio no meio de um bando de flamingos. Tinha voado com os flamingos. E imaginam, por acaso, como os serviços tunisinos deram por que o papagaio era português? Pela simples razão de que o bicho, entre outras palavras, grasnava "amor, amor, amor". Ora os linguistas locais foram chamados a analisar a palavra insistentemente proferida e descobriram que a entoação era portuguesa de Portugal. Nem amor espanhol, com a aberto, nem amore italiano com as vogais todas ao alto, nem amor brasileiro que prolonga o ô bem fundo e arrasta o r final na profundidade da garganta, encorpando a palavra até ao sussurro. Não, não era nenhum deles - tratava-se do nosso amor, com as vogais bem sumidas, bem contidas, obrigando a pessoa a arredondar os lábios e a recuá-los logo, ao contrário dos franceses, que os têm de unir e fazer avançar em forma de bico ou de beijo. Nada disso, nem redondo, nem bico nem beijo. O "amor" do papagaio era amor pronunciado à portuguesa, rápido, sumido, pronunciado a meio gás, a meio da garganta. O nosso amor. Então a história terminou bem. Descoberta a nacionalidade, os tunisinos ligaram para os homólogos de Portugal, os funcionários foram examinar a lista dos papagaios perdidos e transformaram aquele espécime, de papagaio perdido em papagaio achado.

 Lídia Jorge, Contrato Sentimental. Lisboa, Sextante Editora, 2009, p. 128-129.

2 comentários:

  1. Que história encantadora! Exemplar. Distinguir um papagaio, já de si distinto por viajar de flamingo, pelo modo português como pronuncia uma palavra, é um acontecimento extraordinário. Que essa palavra seja exatamente a palavra amor, então nem sei o que dizer, supera todas as expectativas.
    Até porque os papagaios que conheci ao longo da vida (confesso que não foram em número significativo) tinham um vocabulário bem mais terra a terra, castiço, por assim dizer.
    Uma história como esta está ao nível das maravilhosas histórias das Mil e Uma Noites e de outras equivalentes na história da literatura universal.
    Que seja verdadeira só nos pode provocar uma enorme onda de felicidade pessoal e coletiva. A realidade é melhor e mais criativa que a ficção, uma vez mais, por muito que os fisccionistas se esforcem. Ninguém seria capaz de inventar uma história assim, com estes contornos: simultaneamente tão maravilhosa e tão verosímil; tão extraordinária e tão simples.

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  2. CANÇÃO

    Se tu ouvisses
    o loendro amargo chorar,
    que farias, meu amor?
    Suspirar!

    Se tu sentisses a luz
    chamar-te quando se vai,
    que farias, meu amor?
    Lembrar-me-ia do mar.

    Se eu um dia te dissesse
    - amo-te - no meu olival,
    que farias, meu amor?
    Cravaria este punhal!

    Frederico Garcia Lorca, POEMAS, Selecção e tradução de Eugénio de Andrade, Lisboa, Assírio e Alvim, 2013, p. 86.

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