sexta-feira, 28 de março de 2014

Ninguém terá calcado mais terra portuguesa. (1) Ramalho Ortigão

Tenho, sem me querer gabar, a sincera convicção de que, a não serem alguns velhos viajantes de comércio, ou algum almocreve palentológico, anterior ao dilúvio dos caminhos de ferro, ninguém terá calcado mais terra portuguesa do que este seu criado. Ninguém, sobretudo, terá nela viajado com mais empenho, com mais curiosidade, com mais desinteresse, com mais amor. Bem sei que há quem me tenha por estrangeiro e não me admira, porque nunca, nem nas lareiras a que me tenho sentado pelas quebradas do Marvão, da Serra da Estrela, do Gerês ou de Monchique, nem nas feiras francas a que tenho ido, a Viseu, a Vila Real, a Loulé, a Évora, a Viana, a Penafiel, e a tantas outras, não encontrei nunca nenhum dos sujeitos que fazem ou desfazem a reputação dos outros no Rossio, no Chiado ou no Arco do Bandeira.
Daí podem ajuizar os excursionistas da Academia dos Estudos Livres se me interessará ou não o programa das viagens que eles projectam organizar e de que me acabam de dar notícia!

Ramalho Ortigão, "Carta à Academia de Estudos Livres", datada de 6 de Agosto de 1899. publicada em Costumes e Perfis. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, p. 275-276.

2 comentários:

  1. Quanta e quão fina ironia!
    Era todo um estilo... que se perdeu. Qualquer coisa de aristocrático, no sentido de não burguês.
    Outra coisa que se perdeu foi usar o verbo "calcar", neste ou noutro qualquer sentido. Já que estamos em maré de constatações, também caiu em desuso "calcorrear".
    O vocabulário vai-se restringindo por um lado e acrescentando-se por outro, julgo.

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  2. UMA FORMA DE CIVILIZAÇÃO

    Ao reler e limar ou acrescentar algo a trabalhos redigidos há dezenas de anos, evoquei a minha juventude de geógrafo andarilho e a profunda impressão de estabilidade que, a despeito de transformações que procurei rastrear, me deixou o convívio com o mundo rural português. Mais do que um "modo de vida" ele era uma "forma de civilização".

    Orlando Ribeiro, OPÚCULOS GEOGRÁFICOS, IV. O MUNDO RURAL, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 8.

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