... que uns quantos peregrinos passavam por uma via que está quase no meio da cidade onde nasceu e viveu e morreu a gentilíssima dama. Os quais peregrinos andavam, segundo me pareceu, muito pensativos; pelo que eu, pensando neles, disse para mim mesmo: “Estes peregrinos parecem-me de longínqua parte, e também não creio que tivessem ouvido falar ainda desta dama, e disso não sabiam nada; antes os seus pensamentos são sobre outras coisas que não estas aqui, que pensam talvez nos seus amigos distantes, os quais nós não conhecemos”. Depois dizia para mim mesmo: “Eu sei que, se eles fosse de terras próximas, pareceriam perturbados nalgum aspecto passando pelo meio da dolorosa cidade.” Depois dizia para mim mesmo que eles saíssem da cidade, pois que eu diria palavras que fariam chorar quem quer que as escutasse.” Pelo que, passados estes alem da minha vista, propus-me fazer um soneto no qual eu manifestasse aquilo que eu tinha dito para mim mesmo; e para que mais parecesse piedoso, propus-me dizê-lo como se eu lhes tivesse falado; e disse esse soneto, o qual começa: Ó peregrinos que pensoso’ andais. E disse “peregrinos” segundo a larga significação do vocábulo; porque peregrinos se podem entender de dois modos, num lato e num restrito: no lato, enquanto é peregrino todo aquele que está fora da sua pátria, em modo restrito não se entende peregrino senão quem vai para a casa de São Tiago ou regressa. E por isso é de saber que de três modos se chamam propriamente as gentes que vão a serviço do Altíssimo: chamam-se palmeirins enquanto vão ultramar, lá onde muitas vezes trazem a palma; chamam-se peregrinos enquanto vão à casa da Galiza, pois que a sepultura de São Tiago estava mais distante da sua pátria que a de qualquer outro apóstolo; chamam-se romeiros enquanto vão a Roma, lá onde estes a quem chamo peregrinos iam.
Este soneto não divido, pois que assaz o manifesta o seu relato.
Ó peregrinos que pensoso’ andais,
talvez de coisa que não é presente,
vós vindes de um tão remota gente,
tal como à vista vós nos demonstrais,
que não plangeis enquanto vós passais
p’lo meio da cidade assim dolente,
como aquelas pessoas cuja mente
não entendesse gravidades tais?
Se vós ficásseis por querê-lo ouvir,
por certo o cor do suspirar me diz
que já não saireis, lagrimando.
Ela perdeu sua Beatriz;
dela as palavras que um pode exprimir
Têm virtude de outrem pôr chorando.
Dante Alighieri, Vida Nova. Tradução de Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa, Relógio de Água, 2010. P. 121-123.
DE SI A ALMA SE ESQUECE
ResponderEliminarOndados fios de ouro reluzente,
Que, agora da mão bela recolhidos,
Agora sobre as rosas esparzidos,
Fazeis que a sua graça se acrescente;
Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios incendidos,
Se de cá me levais alma e sentidos,
Que fora, se de vós não fora ausente?
Honesto riso, que entre a mor fineza
De perlas e corais nasce e aparece,
Oh! Quem seus doces ecos já lhe ouvisse!
Se, imaginando só tanta beleza,
De si com nova glória a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah! quem a visse!
Camões, claro, num dos seus petrarquianos (se é que me posso exprimir assim, caro anónimo) sonetos.
ResponderEliminarE pronto! Já aprendi algo precioso hoje: a distinção entre peregrino, palmeirim e romeiro. De todos eles, só do último desconfiava ser essa a origem do vocábulo. Grata!
ResponderEliminarDe facto!
ResponderEliminarPeço ao autor - caro, claro!- deste blog mil desculpas pelo quase indesculpável lapso da não identificação do poema.
Digo "quase" dado que, para os seus leitores, a autoria é, por certo, da ordem da evidência. Sim, Ele. Camões. À sombra de Petrarca, sim. Segundo a leitura de José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, em LÍRICA DE CAMÕES, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, p. 132.