Conheceram-se numa pequena cidade do Sul. A noite estava quente, jantavam numa esplanada aberta sobre o lago com reflexos prateados e a descoberta da singularidade dos nomes próprios atraiu-os: Maria Eduarda, Jacinto. Mais tarde, ela concordou em antecipar a partida, viajando com ele ainda nessa noite para Lisboa. À chegada, convidou-o a entrar. Estava em mudanças, avisou, naquela semana, a casa transformada num armazém de malas e caixotes.
De Viseu, para onde saiu naquela madrugada de Setembro, ele ligou-lhe à hora de almoço. Estou a ver – ela adivinhou-lhe na voz a perplexidade – uma torre de Nova Iorque atingida por um avião. Não, não é ficção!
Encontraram-se em Aveiro, no fim de semana seguinte. Ele esperava-a na estação e conduziu-a até à Barra. Na pequena praça dominada pelo imponente e belíssimo farol, deram-se as mãos.
Antes de regressarem, marcaram nas agendas: Porto. Depois, o pacto entre eles foi-se definindo. Encontrar-se-iam, sempre que lhes fosse possível, em cidades. Enviavam mensagens a indicar horários, gares e aeroportos, onde também trocavam o beijo da chegada e o longo abraço da despedida. Não colocaram nunca a hipótese de partilharem o quotidiano, que aliás tacitamente ocultavam um ao outro. Coleccionavam avidamente as fotografias que faziam, surpreendendo os pormenores da vida urbana, alguns enquadramentos de edifícios e espaços públicos, seguindo os passos dos residentes.
Durante mais de uma década percorreram boa parte de Portugal e algumas cidades do resto da Europa (Espanha, Itália, França), e foram até Maputo, Toronto, Sidney e Xangai. Foi aqui, quando passeavam numa noite gélida, no cais do Bund, ao longo do rio Huangpu, que ele confessou que não teria tempo de vida senão para mais uma visita. Queres escolher? – perguntou ele. Nova Iorque, onde afinal nunca fomos? Se sou eu a escolher, diz-me a data e eu indicarei o local.
Foi a Tormes que ela o conduziu. Durante dois dias passearam pelas veredas da serra, desde a pequena estação na margem do rio até à "rude" e "silvestre" casa que Eça descreveu, soltando as palavras dos heróis do romance: "Que beleza!". Ele caminhava com dificuldade, mas sem queixumes. Obrigado disse ele, por esta espécie de regresso às origens. Aqui, do campo, sente-se melhor a magnificência da cidade, essa "criação augusta" de que falava o meu homónimo. Mas só há esplendor da cidade enquanto garantirmos o esplendor do campo.
Texto publicado no semanário Região de Leiria, edição de 6 de Março de 2014
O ÚLTIMO REFÚGIO
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Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros arruamentos.
Porém lá fora,à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade.
Num ímpeto de seiva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.
Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em órfãos e viúvas,
E em permanência olhando um horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.
Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!
E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos
Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!
[...]
Cesário Verde, "Nós", IN POESIA COMPLETA, Fixação de Texto de Joel Serrão, Lisboa, Dom Quixote, 2001, pp. 140-141.
A CIDADE NO CAMPO
ResponderEliminarEm meados de Setembro regressávamos à Beira. Cabeços e barrocas. Aqui cobertos de urze, alecrim, carqueja e alfazema. Além, dos olivais que subiam para descerem a caminho dos rios, numa escadaria quase inacessível, talhada na terra e na rocha por gerações de necessidade e determinação. Era o tempo de contemplarmos a frescura das hortas familiares a espreitarem-nos por entre a aridez do xisto, de reaprendermos os cheiros do suor, da terra quente, da esteva e do pinhal.
Amavas esta paisagem raiana, à beira do quase nada.
Com a aldeia é que tinhas mais dificuldade em saber estar. Não que te incomodassem as ruas mal calcetadas e sujas de esterco, as azinhagas atapetadas do mato roçado que apodrecia para ser estrume nas hortas e quintais, a grande casa em que havia degraus e degraus que subir e descer, as velas e os candeeiros de petróleo, a cozinha desprovida e o lume no chão. Convivias, ano após ano, com essas carências do mundo rural que nunca fora o teu. Sabias que ali era mais rijo o pão de cada dia, mas não aceitavas que o comessem por resignação. Admiravas, sim, os que haviam negado o destino, como o Pai, e procurado mundo noutro lugar.Demais, repugnavam-te a pequena intriga familiar que fazias por reprovar julgando-te discreta, os costumes de linguagem da vizinhança que censuravas quanto podias e não devias, os desusos de toilette e de higiene em que não te dispunhas a ceder um pouco que fosse.
Em cada manhã, dissipados na "casinha do quintal" os vestígios das noites dormidas sem casas de banho "à côté", procedias ao "banho por partes", usando com escrúpulo o bidé e o lavatório de esmalte, peças imprescindíveis nos vários quartos de dormir. Concluídas as abluções, havia que eliminar os líquidos sobrantes.
Como de costume, pegaste com cuidado no balde e abriste mais a janela do quarto, no primeiro andar. Desrespeitando, porém, a regra e o senso ali comuns, sem olhares a rua nem avisares que água ia, despejaste. Em frente, a três metros de distância, a mulher do médico acabava de assomar à porta para estimar o calor que haveria de fazer no novo dia. Caiu-lhe a enxurrada. Choveram sobre ti o protesto, a grita, o enxovalho público. O diz que tinha ouvido a quem tinha visto...
Campestre? Só a paisagem!
in RETRATO DE MÃE COM OBJECTOS, a publicar
Obrigado, M. S. C. pela evocação e pelo privilégio do acesso a um texto ainda inédito. Curiosa a distinção entre campo e aldeia, porventura mais pertinente ontem do que hoje. Recordei, a propósito, uma comunicação de Alberto Pimenta em que comentando A Cidade e as Serras escreve que o que distingue o mundo urbano do mundo rural é o lixo. Para aquele o lixo é um problema, para este não. O mundo rural consome o seu próprio lixo. Magnífico texto, fico ansioso pela publicação.
ResponderEliminarOntem, espreitei no seu blogue e deparei-me com este texto. “Afinal é humano” – pensei e como ia alta a madrugada, mais alta ainda que agora, deixei para hoje o comentário.
ResponderEliminarEncontro neste seu texto uma humanidade que ainda não tinha visto em qualquer outro que escreveu, pelo equívoco, pela fragilidade e pela descoberta do óbvio.
Pela primeira vez, que me apercebesse, conseguiu despir essa formalidade em que se refugia e falou de emoções, sem se distanciar delas.
É um excelente texto. Cativará qualquer leitor. Parabéns.
É muito conseguido este conto. A minha área de estudo sempre foi a literatura, ou melhor, poesia e conto. Li centenas de contos. Analisei muitos e há dias li este e fiquei surpreendida. Hoje voltei ao blogue e, nuns tempos de pausa, submeti-o a análises sucessivas...e ele ia resistindo...elaborei um esquema, e ele ficava cada vez mais belo...os meus parabéns, João! O que acho mais lindo, e que também se verifica com os melhores dos melhores contistas de língua portuguesa, como Machado de Assis, Eça de Queirós e Carlos Drummond de Andrade é que sendo tão curto diz tanto... e tem uma intenção comunicativa tão forte, relativamente a uma nova ordem, que faz dele um texto vivo e moderno, mas atemporal porque contempla cumplicidades e sentimentos que serão eternos e preocupações de ordenamento da cidade e do campo cada vez mais atuais… E este é mesmo muito curto, em termos de extensão. O Autor sabia bem o que estava a fazer!
ResponderEliminarPois é! Não é nada fácil (é até bastante difícil) encontrar o ritmo certo, a quantidade de informação adequada, a alternância entre o caso íntimo e o tema universal tratados, num texto tão curto.
ResponderEliminarHá uma eficácia intrínseca do texto, para além do valor do seu conteúdo, que é notável.
Concordo consigo, Isabel, e a intertextualidade tão conseguida alonga o texto e multiplica as "estórias"... o leitor obriga-se a diversas leituras e memórias. É um texto de introspeção e de apelo aos sentidos... e a linguagem adequa-se a um sujeito de enunciação citadino e fica assim, como transparente... mostrando... permitindo-nos ver... é muito sóbria, discreta, elegante.... Gosto mesmo! Poderia estar horas a falar deste conto com prazer... Mas, vou trabalhar!
Eliminar"Compreender é vibrar" diria Heidegger. É esse o efeito dos seus comentários, Deolinda. Palavras que fazem compreender. Invulgar, e muito a propósito, a referência ao prazer quando se trata da análise de um texto. Como Roland Barthes. Obrigada.
EliminarAqui, pela calada da noite, vim procurar mais "conto" e encontrei as suas observações... Devemos ser ambas da mesma geração, com idênticas referências. Obrigada, é muito gentil... Roland Barthes,... bem, vou "adiar o prazer" de conversar consigo... a ver se o nosso amigo se anima e escreve mais um conto...
EliminarAssim espero...
ResponderEliminarComo na música, não consigo libertar-me de "A Cidade e as Serras"...
ResponderEliminarO conto, do grego “kóntos”, remete-nos para a transgressão. Neste caso, a transgressão também do conceito de “amor” libertador e libertado. Constrói a figura de dois seres que se revisitam, num luxo ajudado pela distância espacial e temporal que permite vivências únicas, irrepetíveis “lembranças de alegria”, eternas pois. Um conto, breve, conciso e intenso, “computum”, enquanto súmula, que cria um novo cosmos em que os afectos (com “c” e tudo) se harmonizam num moto contínuo sustentável e iniciático… capaz de ser purificador…
E numa intertextualidade permanente desde o título, o conto convoca e evoca Eça de Queirós, para harmonizar “a cidade e as serras” e para recriar a ideia de um amor único, intelectualizado, crítico, em busca da perfeição…
Tenho de confessar que os comentários elogiosos deste pequeno texto me apanharam de surpresa. Por isso demorei a reagir. Em primeiro lugar, são inusitados. Em segundo lugar, são excessivos. Não quero no entanto parecer pobre e mal agradecido, presumido, e por isso não insisto neste ponto. O único mérito destes textos é que, adoptando o registo de uma crónica ficcionada, são o resultado de uma luta cruenta e sofrida contra a guilhotina das 29 linhas, 400 palavras, 2300 caracteres. Ninguém imagina o quanto tenho de inutilizar e a impressão de que, no final da mortandade perpetrada sobre a narrativa, se perderá inteligibilidade e modulações expressivas, ou seja restará um texto nu e sem alma. O esforço é tão sangrento e extenuante que preciso de cerca de um mês para dele recobrar e ousar repetir a dose. Devo-vos minhas queridas amigas um estímulo novo para empunhar o gládio do exterminador implacável. Por isso vos estou mais grato do que podeis supor.
ResponderEliminarO Autor está para a Obra como o Pai para o Filho. Obra e Filho libertam-se... vão pelo mundo, fazem conquistas...
Eliminar(Já agora, aproveito, no conto há uma gralha, onde se lê "formos" deveria ler-se "fomos"...). Pela primeira vez entro num blogue e não sei nada de nada... Provavelmente cometo infrações...
Quando fiz a apresentação pública e defesa (em dezembro de 2012) da tese de mestrado, disse que o facto de ter tido de amputar muitas partes do texto original, para conferir maior eficácia ao texto final, fora como "mandar sair de casa (ou mandar embora) filhos". De tal maneira que tinha organizado um ficheiro intitulado "excertos retirados da tese", que ainda hoje conservo. Alguns deles, aliás, preciosos para essa defesa.
ResponderEliminarCuriosamente, um colega de mestrado, o André Conceição, quando apresentou e defendeu a tese dele, "citou-me" dizendo que "cortar partes da tese era como mandar embora filhos, como disse a Isabel."
Mas "há males que vêm por bem", como diz o ditado, e eu acredito. O texto fica mais limpo. Aqueles pedaços que tiramos são nossos, sentimos-lhes a falta, foram necessários para a construção final do texto, mas o certo é que foram esses os excertos que escolhemos para tirar e não outros. E esse é um exercício de concisão, ou de contenção, como preferirmos, fundamental à depuração da escrita. À depuração do texto.
No meu caso, é isso o que mais aprecio no texto "A cidade e as serras", independentemente do conteúdo. Um texto limpo, depurado, na medida certa. E pode crer, João, aquilo que retirou da versão original do texto, está lá sem estar. Trata-se de um texto que revela ocultando e oculta revelando. Jogando sempre entre esses dois registos.
Escrevi o meu comentário anterior sem ter conhecimento da resposta de Deolinda Pereira, em que a relação autor-obra é comparada à relação pai-filho. Também eu falo em termos de filhos. Coincidências... Pelo menos, até certo ponto.
ResponderEliminarA análise de texto deve ser uma ciência... não é coincidência, é a resposta ao A. que, neste caso, se considera aquém do teor da análise... Até fiquei triste, mas compreendo a postura dele. Muitos autores também ficam estupefactos com o que escreveram e consideram que houve mistério na conceção. Posso saber qual foi o tema da sua tese de mestrado?
ResponderEliminarConcedo, Deolinda. Não é mera coincidência.
EliminarQuanto à minha tese de mestrado, tenho muito gosto em dizer-lhe o título: Criar Espaço Público para o Espaço Público (ensaio sobre as instituições de artes contemporâneas em Portugal). Era um mestrado em Gestão Cultural.
Hoje dei nova espreitadela ao seu blogue e a curiosidade trouxe-me até aqui. A mais recente publicação da última vez que aqui viera.
ResponderEliminarQue interessante conversa originou a sua crónica!
A minha vida profissional foi passada a utilizar o texto como ponto de partida e o texto como ponto de chegada. Fá-lo-ão, por certo, a grande maioria dos professores, nomeadamente os dos níveis mais baixos no processo de ensino/aprendizagem, com vista à produção de texto e à aprendizagem da leitura e interpretação por parte dos alunos. Não posso pois exibir os dotes literários que não tenho, contudo, em minha modesta opinião, o que torna este texto excelente é o efeito de verosimilhança tão genialmente conseguido. O leitor é facilmente tentado a acreditar que o que conta não só é possível como verdadeiro e, de tal forma é convincente, que alguns lhe acharão um certo sabor autobiográfico, mesmo que o não tenha.
Concluindo: sabe a vida.