sexta-feira, 14 de março de 2014

Passagem do tempo

Passagem do tempo, nas Caldas

Este é um livro onde se sobrepõem distintas narrativas, feitas de imagens e de palavras, tendo a cidade por objecto. Uma cidade concreta, com as suas praças e ruas e esquinas, com os olhares que suscita e os sentimentos que desperta, Caldas da Rainha dos últimos cem anos, aproximadamente; mas onde podemos ler os caminhos, as dúvidas e hesitações, as dificuldades por que passaram outras cidades da mesma condição.
O ponto de partida da construção do livro é o efeito da passagem do tempo na cidade. Uma fotografia antiga de um determinado lugar urbano é confrontada com uma outra fotografia, do mesmo lugar e perspectiva, como se o mesmo fotógrafo, entretanto regressado, pretendesse tão só registar a mudança externa, apesar das décadas entretanto decorridas. De facto, sabemos que há um segundo fotógrafo, que aceita as opções do primeiro, o ângulo decidido pelo primeiro, o enquadramento elaborado pelo primeiro. Este mimetismo é aparente. Porque o tempo introduziu novos elementos na paisagem urbana, alterou as escalas e os valores, e, da mesma forma que nada faz crer que o fotógrafo original, se acaso voltasse ao cenário anteriormente registado, repetiria as escolhas anteriores, o segundo fotógrafo tem uma visão própria, uma cultura e uma destreza técnica diferentes das daquele que lhe serve de guia.
Que motivou então o autor das segundas imagens e esta espécie de anulação autoral? Trata-se de um expediente, uma tentativa de contrariar ou anular a fatalidade enunciada por Heraclito (“não nos podemos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio), para sublinhar o efeito surpreendente das transformações ocorridas na cidade. Se o mesmo fotógrafo, animado pelas mesmos propósitos com que fotografou em 1920, voltasse em 2010 às Caldas, o resultado dos seus novos registos não poderia deixar de assinalar com dramatismo as transformações ocorridas (ou, com igual intensidade, as permanências e continuidades).
A surpresa que invade o observador de hoje, induzido ao confronto de imagens, contraria a experiência do cidadão habitante ou visitante regular da cidade. Este incorpora a passagem do tempo externa e interna, nas edificações e espaços públicos e em si próprio, observador e participante que é no processo de mudança. Sobressaltou-se com algumas evoluções, estremeceu de ansiedade com os riscos de outras, desejou umas e rejeitou outras, mas a todas absorveu num contínuo e num contíguo que tende a ver a cidade sempre a partir do último “layer”, amalgamando e esbatendo os que o antecederam.
As cidades estão em permanente reconstrução. Todos os dias se abrem e fecham feridas urbanas, se degradam e regeneram equipamentos urbanos, se desfazem e refazem e fazem edificações e artérias urbanas. A imobilidade contraria a experiência da cidade, que é um organismo em uso e, como tal, com exigências quotidianas de reparação e inovação.
E no entanto... não há cidade sem cidade ideal, não há cidade vivida sem cidade imaginária, não há experiência de cidade sem utopia de cidade. Desde o pensamento grego, sem excepção, a cidade dos homens foi confrontada com a cidade dos deuses, dos filósofos, a cidade temporal com a cidade eterna, a cidade das trevas com a cidade da luz. A mais expandida utopia de cidade, no tempo sem ruínas que é o nosso, é a cidade histórica.
A nostalgia da cidade ideal perpassa nos textos dos autores convidados a comentar as imagens. Cada um deles prefere à cidade que vê uma cidade desejada, muitas vezes a cidade da sua infância e adolescência, a cidade que recorda com as emoções que o tempo decantou. Com raras excepções, a passagem do tempo na cidade age em beneficio do passado e não do futuro, na convicção íntima dos observadores urbanos de hoje.
Aparentemente esse é o resultado que podemos esperar de um método de abordagem da passagem do tempo que confronta duas imagens extáticas realizadas com um intervalo significativo. E no entanto, a soma e a qualidade das observações convida à reflexão. A critica – que povoa os textos – propõe uma pausa para pensar. Alguma coisa correu mal com esta cidade?
Se alguma coisa correu mal, talvez um dos planos de análise se situe exactamente na cidade imaginária. Que cidade desejaram as gerações que nos precederam? Que utopia nos legaram que não soubemos ou não quisemos respeitar e integrar?
O debate sobre a cidade é talvez dos debates mais importantes a efectuar. É um debate crucial para a vida colectiva e para o futuro dos cidadãos, um debate fundamental para a democracia e a cidadania. Na cidade, na nossa cidade, há o que nos orgulha e o que nos envergonha. Temos o dever de partilhar organizadamente a visão que formámos do que queremos e não queremos para ela. Essa é a esperança ultima da utopia: fazer melhor cidade com a democracia e pela democracia. Sem ela ficamos prisioneiros do tempo e dos falsos profetas que apresentam como inevitável aquilo que podia não ter sido assim.

Prefácio ao livro Ontem & Hoje, coord. de José Luis Almeida e Silva e Carlos Cipriano. Caldas da Rainha, Gazeta das Caldas, 2014.

2 comentários:

  1. Formular as perguntas pertinentes é um exercício de inteligência. Urgente e necessário. Sobre as cidades. Sobre a memória das cidades. Sobre as imagens e os equívocos gerados nas cidades. A pluralidade de respostas que suscitam multiplicam as visões, o universo dos possíveis.
    Pensar a realidade como inevitável é negar a liberdade.

    Este texto é parte fundamental do livro que prefacia.
    Pode funcionar como um alerta. Qualquer coisa de muito útil.

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  2. O QUE É UMA CIDADE?

    Quero lá saber da Lisboa de pedra histórica, com ortigas nos pátios, nespereiras nos balcões e palácios de bafio como museus de silêncio podre.
    Nas cidades - e nos rios - interessa-me menos o leito pedregoso do que a corrente de pessoas vivas a rolarem por essas calçadas de manhã até à noite, cada qual pegada à sua sombra: esta a chorar porque lhe apareceu morto o canário na gaiola; aquele com olhos de letra a vencer amanhã; outra com o filho moribundo embrulhado no xaile roto; outra, ainda, desventurosa porque lhe fugiu uma malha da meia, e todos com a morte marcada para depois de amanhã.
    Descobrir as tragédias e as farsas desta multidão diária que cobre de carne humana e de tumulto os rossios, as janelas, as igrejas, os eléctricos, os cafés e as tabernas, eis uma das mais deliciosas ocupações do meu destino de espectador das ruas, espectador "sui generis" aliás, pois não me limito a assistir à vida do camarote do meu segundo andar, mas a saltar, de vez em quando a pés juntos, para o palco e a representar também algumas "rábulas"...

    José Gomes Ferreira, "Reportagem do Medo", IN O MUNDO DOS OUTROS, Lisboa, Portugália, 1950, p. 179.

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