terça-feira, 18 de março de 2014

Sei lá! José Gomes Ferreira

De vez em quando esbarrava nas árvores e candeeiros públicos.
Por este simples motivo: o de me esquecer de olhar para o caminho, afundado em meditações desta espécie:
Personalidade? Que significa essa história de ter, ou de não ter, personalidade? Existe alguma fórmula de elixir secreto ou qualquer aparelho de delicadeza pesquisadora especial que nos permita determinar imediatamente, sem receio de nos enganarmos, se alguém possui esse dom misterioso? Um certo azul nos olhos? O queixo levantado? A maneira majestosa de subir para o autocarro? Ou de entrar nos apertões do Metro, afastando com os dedos, em piparote, a muralha de pedras vivas que impede a passagem para os corredores vazios? Certos raios magnéticos com que as mulheres nos fulminam, obrigando a agachar os homens até ao destino de capachos? As jubas de leões invisíveis de certos calvos hieráticos? O silêncio sistemático do Pacheco de Eça? As palavras ocamente acrobatas de certos frequentadores de salas e bares?
Sei lá!

José Gomes Ferreira, Calçada do Sol. Diário Desgrenhado de um Homem Qualquer Nascido no Princípio do Século XX. Lisboa, Livraria Morais, 1983. p. 71

5 comentários:

  1. EGOÍSMOS
    A última vez que nasci, estava a nascer pela primeira vez, novamente. Sabia algumas línguas, era economicamente autónoma e tinha idade suficiente para não ter demasiadas censuras… Ter idade facilita, podemos dizer mais, sem inibições… ninguém tem medo e prometi a mim mesma que só as teria para nunca deixar de ser generosa… E como sempre, na minha frente, o mapa chamava-me. Olhei para o globo e perguntei-lhe, a ele e a mim, para onde ir… Boston esteve à minha espera, fui ver, estive lá 3 ou 4 dias, e regressei desiludida. Não era o lugar, eu queria nascer deveras… Voltei a olhar o mapa e quando uma amiga me perguntou “mas para onde queres ir?” Eu respondi –lhe à portuguesa, __Para a China!
    Cheguei, estive uns meses no Campus, numa espécie de hotel para os professores estrangeiros, e em seguida, reivindiquei um apartamento com mais espaço,… ocupo muito e sempre me habituei a casas fartas… e paulatinamente comecei a perguntar-me “que queres para jantar?”, “onde gostavas de caminhar?”, “que roupas queres vestir?”, “onde queres ir nadar?”, “a que horas queres ir à biblioteca?”, “olha e escolhe os morangos para ti….”, “sim, também podes comer isso e isso e isso…” , “escolhe deolinda, escolhe!” e pouco a pouco fui aprendendo a existir mesmo… e hoje até pergunto “em que idioma gostavas de ir passear?” e “que tal, o yoga ou o Kung Fu?” e cada dia é mesmo outro dia escolhido por mim, para mim… A única obrigação é o trabalho de investigação e as aulas, mas gosto muito… Os estudantes são curiosos, calmos, pacíficos, silenciosos, misteriosos até … Há tempos, perguntaram-me onde tinha casado e com quem … mostrei-lhes os túmulos de Inês e de Pedro, a nave que atravessara ao encontro do meu príncipe fardado de amor, falei-lhes do frio, do calor, das bombas, dos filhos… do meu pai… das “estórias”, do mato, dos rios e dos crepúsculos vermelhos das minhas praias…. das ondas e do mar… e falei-lhes de amor!
    Quero perceber como sou… Quero poder ver-me, com as minhas opções… e alterá-las se não gostar… Estou por fazer, o que me estimula… Já entendo alguns comportamentos dos meus alunos… mas não todos… eles não se tocam, não se abraçam, não se beijam,… E eu tento que percebam os nossos códigos culturais e tento entender os deles… Tenho já uns amigos a quem posso perguntar tudo… Os contos deles são cheios de fantasmas e de mortos e as anedotas também… Investiguei e já sei o que aconteceu e de como Edgar Allan Poe se deixou influenciar, bem como um ou outro escritor português, pelas estranhas “estórias” chinesas…
    Costumo dizer que vivo hoje, como se fosse durar 200 anos… Integro-me, aprendi a andar de autocarro, a dizer expressões em mandarim, a não gastar dinheiro, a não beber café, a ficar sozinha de noite sem medo do escuro e, há cerca de um mês, ao ler um post no FB desatei a rir às gargalhadas como nunca tinha acontecido antes… e agora, quase não há um dia em que eu não rio… e quando isso acontece, rio muito… estou leve, esvaziada, ou lá o que é,… estou mais perto dum “eu” que procuro a todo o custo fazer existir…. Construo-me? Sim, talvez seja só “words, words, words.”.
    Como dizia aqui simpaticamente a Isabel, “Roland Barthes”! Sim, “de papel”.

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  2. MEDITAÇÃO

    Uma amiga propôs-me, não há muito tempo, que eu começasse a redigir (acho honesta a palavra REDIGIR) as minhas memórias. Eu perguntei-lhe para quê. "É que V. deve ter tido uma vida muito interessante". Está enganada - e ainda mais enganada estará se pensar que uma vida interessante desembucha, como que por fatalidade, em memórias interessantes.
    A minha vida, lisa, aplastada, chata como tem transcorrido, só pode ser inventada. E, seguramente, foi assim que eu passei a vida: a inventá-la. Penso que a peonagem da minha geração me compreende.

    Alexandre O'Neill, "Memórias", IN UMA COISA EM FORMA DE ASSIM, Lisboa, Presença, 1985, p. 40.

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    1. Prezado "anónimo",
      Com esta "redacção" só quis mostrar às pessoas sofridas, que em vez de se fecharem e de adoecerem como O'Neill, podem usufruir os lugares comuns e viver sem angústias... Mas o "blog" é capaz de exigir uma outra forma de estar... mais silenciosa e mais brilhante... e vejo agora que não foi boa ideia, porque se O'Neil ou Pessoa não tivessem escrito, estaríamos todos mais pobres... A literatura carece de fome e sofrimento?!

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    2. Minha prezada comentadora

      A introdução do texto de O'Neill foi anterior (a diferença de fusos horários pode colaborar involuntariamente na construção de alguns equívocos...) à sua "redacção", que inteiramente desconhecia quando inscrevi a "Meditação" do poeta. Poeta que, ao contrário do que me parece ser a sua sensibilidade, não creio que tenha vivido e escrito à custa do muito sofrer. No entanto, julgo-o um entre muito poucos. Ainda acredito, sim, que tanto a literatura como, mais especificamente, a poesia são carência. Carecem da fome da dor.
      Por isso, na sua narrativa, muito me tocou a força na libertação de si e a gradual conquista das "novas novidades" do mundo. À custa de si. A leste do Leste, o Oriente "donde vem tudo", como deixou dito outro poeta. Um dos tais que não aprenderam a viver sem a angústia dos lugares comuns.
      Quando escreve, parece ter-lhe sido fácil. Ou leve. Como é que fez? Como é que se faz?

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  3. Conheci A. O'Neill. Uma amiga minha que viveu com ele alguns anos adoeceu também... era (in)habitável!
    Como fiz? Como faço? Estudo metalexicografia!!!

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