quarta-feira, 12 de março de 2014

Se tivesse que morrer esta noite regressava. Miguel Serras Pereira

Se tivesse que morrer...

Se tivesse que morrer esta noite regressava
regressava de novo à tua espera à mesma rua
Talvez a mais deixasse aqui apenas
a folha de um recado meio esquecido
Regressava às horas desta tarde relendo devagar
de minuto a minuto o número da tua porta
onde chegaria como há pouco outra vez adiantado

Regressava ao salgueiro onde agora moras
Regressava enquanto a noite que me leve se afastasse
e não te dizia adeus - olhava a terra
as árvores de água profunda onde os rios nascem
ouvindo os pássaros e a brisa do crepúsculo
quando o crepúsculo os confunde num só ramo

Se tivesse que morrer esta noite regressava
navegando a coberto da morte por estas esquinas
que se aceram entre os meus passos e os teus dedos
no olhar amargo que rasguei para te ver
onde a carne do rosto quebra os últimos espelhos

Se tivesse que morrer esta noite regressava
junto de ti até ao fim por um momento
para te dizer que amanhã é outro dia
e que é sempre amanhã ainda onde te encontro

Miguel Serras Pereira, Trinta Embarcações para Regressar Devagar. Lisboa, Relógio d'Água, 1993

1 comentário:

  1. A CANÇÃO DE EURIDICE

    Injusto embora,
    como injusto tem de ser o que é destino,
    Cabe-me esperar que canses da demora
    E que, sem já saberes se é canto ou hino,
    Toques e dances porque te morri
    Aqui, agora.

    Em mi bemol,
    A clave desenhada e a escala descendida
    Roubar-te-ão ao corpo intacto o sol
    E a certeza do regresso à vida.
    Porém, é mito o que te prometi!
    Que não se evole!

    Euridice!
    Chamaste e achaste e ataste a mão atada
    E quiseste que o sim da Morte não fingisse
    E fizeste do caminho a alvorada.
    Mas sem olhar, saberes-me atrás de ti?
    Quem disse?

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