Se tivesse que morrer...
Se tivesse que morrer esta noite regressava
regressava de novo à tua espera à mesma rua
Talvez a mais deixasse aqui apenas
a folha de um recado meio esquecido
Regressava às horas desta tarde relendo devagar
de minuto a minuto o número da tua porta
onde chegaria como há pouco outra vez adiantado
Regressava ao salgueiro onde agora moras
Regressava enquanto a noite que me leve se afastasse
e não te dizia adeus - olhava a terra
as árvores de água profunda onde os rios nascem
ouvindo os pássaros e a brisa do crepúsculo
quando o crepúsculo os confunde num só ramo
Se tivesse que morrer esta noite regressava
navegando a coberto da morte por estas esquinas
que se aceram entre os meus passos e os teus dedos
no olhar amargo que rasguei para te ver
onde a carne do rosto quebra os últimos espelhos
Se tivesse que morrer esta noite regressava
junto de ti até ao fim por um momento
para te dizer que amanhã é outro dia
e que é sempre amanhã ainda onde te encontro
Miguel Serras Pereira, Trinta Embarcações para Regressar Devagar. Lisboa, Relógio d'Água, 1993
A CANÇÃO DE EURIDICE
ResponderEliminarInjusto embora,
como injusto tem de ser o que é destino,
Cabe-me esperar que canses da demora
E que, sem já saberes se é canto ou hino,
Toques e dances porque te morri
Aqui, agora.
Em mi bemol,
A clave desenhada e a escala descendida
Roubar-te-ão ao corpo intacto o sol
E a certeza do regresso à vida.
Porém, é mito o que te prometi!
Que não se evole!
Euridice!
Chamaste e achaste e ataste a mão atada
E quiseste que o sim da Morte não fingisse
E fizeste do caminho a alvorada.
Mas sem olhar, saberes-me atrás de ti?
Quem disse?