Hão-de dizer-lhes, para os desalentar do seu nobre e patriótico empreendimento, que Portugal não é terra para viagens; que são escabrosos os caminhos, escalvados os montes, poeirentas as estradas, inóspitas as estalagens. Não façam caso. Deixem em sossego, no seu veraneio de sorvetes mornos e de cerveja choca, esse opiniáticos sportmen do automobilismo, insípidos sedentários lisboetas, de articulações perras, de estômago sujo e de língua grossa, aparafusados pelas pesadas cadeiras eles mesmos às cadeiras da Avenida, às de S. Pedro de Alcântara e às dos botequins do Rossio.
Calcem os meus amigos os seus sapatos ferrados, vistam a blusa de linho, afivelem a mochila, e partam alegre e confiadamente em terceira classe, para ir à caça, para subir uma serra, para coligir cantigas ou coleópteros, para fazer um herbário ou um álbum de instantâneos, ou simplesmente para armar aos pássaros, para ouvir correr a água, ramalhar os castanheiros, cantar as toutinegras. Seja com que pretexto for, de arte, de arqueologia, de geologia, de botânica, de poesia, de simples recreio, o contacto da natureza é sempre purificador e salutar. E a convivência dos homens simples, especializados no mister, é incomparavelmente mais interessante e mais instrutiva que a dos enciclopedistas, ainda os mais conspícuos, das nossas classes dirigentes.
Ramalho Ortigão, "Carta à Academia de Estudos Livres", datada de 6 de Agosto de 1899. publicada em Costumes e Perfis. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, p. 277-278.
ABUNDÂNCIAS FELIZES
ResponderEliminarSim! Europa do Norte, o que supões
Dos vergéis que abastecem teus banquetes,
Quando às docas, com frutas, os paquetes
Chegam antes das tuas estações?!
Oh! ricas primeurs da nossa terra
E as tuas frutas ácidas, tardias,
No azedo amoniacal das queijarias
Dos fleumáticos farmers de Inglaterra!
Ó cidades fabris, industriais,
De nevoeiros, poeiradas de hulha,
Que pensais do país que vos atulha
Com a fruta que sai dos seus quintais?
Todos os anos, que frescor se exala!
Abundâncias felizes que eu recordo!
Carradas brutas que iam para bordo!
Vapores por aqui fazendo escala!
Uma alta parreira moscatel
Por doce, não servia para embarque:
Palácios que rodeiam Hyde-Park,
Não conheceis esse divino mel!
Cesário Verde, "Nós", IN POESIA COMPLETA, Lisboa Dom Quixote, 2001, pp. 147-148.