A estrada ia entre campos e ao longe, às vezes, viam-se serras. Era o princípio de Setembro e a manhã estendia-se através da terra, vasta de luz e plenitude. Todas as coisas pareciam acesas.
E, dentro do carro que os levava, a mulher disse ao homem:
- É o meio da vida.
Através dos vidros, as coisas fugiam para trás. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as árvores e os rios fugiam e pareciam devorados sucessivamente. Era como se a própria estrada os engolisse.
Surgiu uma encruzilhada. Aí viraram à direita. E seguiram.
- Devemos estar a chegar - disse o homem.
E continuaram.
Árvores, campos, casas, pontes, serras, rios, fugiam para trás, escorregavam para longe.
A mulher olhou inquieta em sua volta e disse:
- Devemos estar enganados. Devemos ter vindo por um caminho errado.
- Deve ter sido na encruzilhada - disse o homem, parando o carro. - Virámos para o Poente, devíamos ter virado para o Nascente. Agora temos de voltar até à encruzilhada.
A mulher inclinou a cabeça para trás e viu quanto o Sol já subira no céu e como as coisas estavam a perder devagar a sua sombra. Viu também que o orvalho já secara nas ervas da beira da estrada.
- Vamos - disse ela.
O homem virou o volante, o carro deu meia volta na estrada e voltaram para trás.
A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, encostou a cabeça nas costas do banco e pôs-se a imaginar o lugar para onde iam. Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso.
Ela pensou que a casa devia ser silenciosa, cheia de paz e branca, rodeada de roseiras; e pensou que o jardim devia ser grande e verde, percorrido de murmúrios.E alguém lhe tinha dito que no jardim passava um rio claro, brilhante, transparente. No fundo do rio via-se a areia e viam-se as pequenas pedras limpas e polidas. Nas margens crescia erva fina, misturada com trevo. E árvores de copa redonda, carregadas de frutos, cresciam nesse prado.
- Logo que chegarmos - disse ela -, vamos tomar banho no rio.
- Tomamos banho no rio e depois deitamo-nos a descansar na relva - disse o homem, sempre com os olhos fitos na estrada.
E ela imaginou com sede a água clara e fria em roda dos seus ombros, e imaginou a relva onde se deitariam os dois, lado a lado, à sombra das folhagens e dos frutos. Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.
Através dos vidros, campos, pinhais, montes e rios fugiam para trás.
- Devemos estar a chegar à encruzilhada - disse o homem.
E seguiram.
Rios, campos, pinhais e pontes. E meia hora passou.
- Já devíamos ter chegado à encruzilhada - disse o homem.
- Com certeza nos enganámos no caminho - disse a mulher.
- Não nos podemos ter enganado - disse o homem -, não havia outro caminho.
E seguiram.
- A encruzilhada já devia ter aparecido - disse o homem.
- O que é que vamos fazer? - perguntou a mulher.
- Seguir em frente.
- Mas estamos a perder-nos.
- Não vejo outro caminho - disse o homem.
E seguiram.
Encontraram rios, campos, montes; atravessaram rios, campos, montes; perderam rios, campos, montes. As paisagens fugiam, puxadas para trás.
- Estamos a perder-nos cada vez mais - disse a mulher.
- Mas onde há outro caminho? - perguntou o homem.
E parou o carro.
À esquerda havia uma grande planície vazia; à direita uma colina coberta de árvores.
- Vamos subir ao alto da colina - disse o homem. - De lá devem avistar-se todos os caminhos em redor.
Subiram ao alto da colina e não avistaram estradas; mas avistaram um cavador a cavar numa horta.
Caminharam para ele e perguntaram-lhe se sabia o caminho para a encruzilhada.
- Sei - disse o cavador -, é para além.
- Podes guiar-nos até lá?
- Posso, mas primeiro tenho de acabar este rego para a água passar. Demoro pouco.
- Nós esperamos - disse o homem.
- Tenho sede disse a mulher.
- Além, atrás dos penedos - disse o cavador, apontando -, há uma fonte. Ide lá beber enquanto eu acabo o rego.
Caminharam na direcção que o cavador apontara e atrás dos penedos encontraram a fonte.
A fonte caía do alto e espetava-se na terra, direita, limpa e brilhante como uma espada.
Ali beberam e ficaram com a cara e os cabelos todos salpicados de gotas, riram de alegria na frescura da água, esqueceram o cansaço, o caminho perdido, a viagem. A mulher sentou-se numa pedra coberta de musgo, o homem sentou-se ao seu lado e os dois permaneceram alguns momentos de mãos dadas, imóveis e calados.
Depois, um pássaro poisou perto da fonte e o homem disse:
- Temos de ir.
Levantaram-se e tomaram o caminho da horta, à procura do cavador.
Mas quando chegaram à horta o cavador não estava lá. Viram a água a correr nos regos; viram a salsa e a hortelã crescendo lado a lado; mas não viram o cavador. .
- Não quis esperar - disse o homem.
- Porque é que nos mentiu?
- Talvez não quisesse mentir. Talvez não pudesse esperar. Ou talvez se esquecesse de nós.
- E agora? - perguntou a mulher.
- Vamos voltar para o carro e vamos seguir na direcção que ele há pouco apontou. Subiram e desceram a colina em direcção ao carro, mas quando chegaram à estrada o carro tinha desaparecido.
- Devemos estar enganados; devemos ter vindo noutra direcção.
- Ou alguém nos roubou o carro.
- Onde estará o cavador?
- Talvez tenha ido à fonte à nossa procura.
- Temos de encontrar alguém - disse a mulher. - Vamos outra vez à fonte; com certeza o cavador foi lá ter.
E puseram-se de novo a caminho.
Subiram e desceram a colina; atravessaram a horta. Cheirava a hortelã e a terra regada. Mas do outro lado dos penedos não encontraram a fonte.
- Não era aqui - disse o homem.
- Era aqui- disse a mulher. - Era aqui. Tenho medo. Vamos voltar depressa para a estrada.
E foram pela estrada à procura do carro.
- Que vamos fazer? - perguntou a mulher.
- Alguém há-de passar - respondeu o homem.
Seguiram pela estrada. O Sol continuava a subir no céu.
- Estou cansada - disse a mulher.
- Quando chegarmos à terra para onde vamos, descansarás, estendida na relva, à sombra das árvores e dos frutos.
- Temos de encontrar depressa o caminho - disse a mulher.
Ao longe, entre pinhais, surgiu uma casa.
- Vamos até lá - disse o homem. - Talvez lá esteja alguém que nos saiba ensinar o caminho.
Havia uma ligeira brisa e os pinheiros ondulavam.
Bateram à porta da casa. Ninguém respondeu.
Escutaram e pareceu-lhes ouvir vozes. Tornaram a bater. Ninguém respondeu. Esperaram. Bateram de novo, com força, espaçadamente, nitidamente, devagar. As pancadas ressoaram. Ninguém respondeu.
Então o homem avançou o ombro direito e arrombou a porta. Mas a casa estava vazia.
Era uma pequena casa de camponeses. Uma casa nua, onde só estavam escritos os gestos da vida. Havia uma cozinha e dois quartos. Num rebordo da parede de cal estava
colocada uma imagem; em frente da imagem ardia uma lamparina de azeite; ao lado, alguém poisara um ramo de flores bentas na Páscoa.
Não havia ninguém na cozinha. Não havia ninguém nos quartos. Não havia ninguém nas traseiras, onde as roupas secavam, dependuradas no arame, gesticulando na brisa.
No forno a cinza ainda estava quente e em cima de uma mesa havia vinho e pão.
- Tenho fome - disse a mulher.
Sentaram-se e comeram.
Afinal, tudo é liturgia!
ResponderEliminarONDE?
ResponderEliminar"[...]
Ay Deus, e hu é?
D. Denis, CBN 533, J. J. Nunes, CANTIGAS D'AMIGO, XIX, p. 387.