O barco balouçou e vazou-o no mar (um copo a vazar o seu conteúdo num tanque). Macário contraiu-se, de medo e de frio, e pensou: «Por agora estou salvo.» Opôs o corpo ao mar e, sobretudo, à escuridão. Bracejou, à procura da carne líquida das ondas, e do sentido da ilha, no seu ondear oculto. Começou a viagem dolorosa em que os braços e as pernas tinham de vestir a resistência da madeira e comportar-se como remos. Era uma viagem sem paisagem, através da ausência. Macário apavorava-se nela, agudamente servo de si próprio. Media, braçada a braçada, a água que o exilava da ilha, até que os joelhos tocaram os rochedos e as casas apareceram levantadas ao alto sobre a neblina. Ultrapassou as rochas e estendeu-se no princípio da praia, desamparado como uma concha.
Maria Gabriela Llansol, A Terra Fora do Sítio, Edição Parque Expo 98, 1997. p. 22-23.
sábado, 30 de novembro de 2013
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
As viagens são uma boa cura para doentes de amor. Ortega y Gasset
Sólo salva al enamorado un choque recibido violentamente de fuera, un tratamiento a que alguien le obligue. Se comprende que la ausencia, los viajes sean una buena cura para enamorados. La lejanía del objeto amado lo desnutre atencionalmente; impide que nuevos elementos de él mantengan vivo el atender. Los viajes, obligando materialmente a salir de sí mismo y resolver mil pequeños problemas, arrancándonos del engaste habitual y apretando contra nosotros mil objetos insólitos, consiguen forzar la consigna maniática y abren poros en la conciencia hermética, por donde entra, con el aire libre, la perspectiva normal.
Ortega y Gasset, Estudios Sobre el Amor. Madrid, Revista de Occidente en Alianza Editorial, 1981, p. 19.
Ortega y Gasset, Estudios Sobre el Amor. Madrid, Revista de Occidente en Alianza Editorial, 1981, p. 19.
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
Parti então, com muita alegria. Eça se Queirós
Parti então, com muita alegria, para a minha apetecida romagem às Cidades da Europa.
Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, à pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia num wagon, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me escangalhavam a entranha. Quatorze vezes subi derreadamente, atrás de um criado, a escadaria desconhecida dum Hotel; e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma cama desconhecida, donde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas desconhecidas um café com leite que me sabia a fava, um banho de tina que me cheirava a lodo. Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito. Em mais de trinta mesas-redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-a-la-mode, já frio, com molho coalhado - e que o copeiro me trouxesse a garrafa de Bordeus que eu provava e repelia com desditosa carantonha. Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove Catedrais. Trilhei molemente, com uma dor surda na nuca, em quatorze museus, cento e quarenta salas revestidas até aos tectos de Cristos, heróis, santos, ninfas, princesas, batalhas, arquitecturas, verduras, nudezes, sombrias manchas de betume, tristezas das formas imóveis!... E o dia mais doce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho inglês de penca flamejante que habitara o Porto, conhecera o Ricardo, o José Duarte, o Visconde do Bom Sucesso, e as Limas da Boa Vista... Gastei seis mil francos. Tinha viajado.
Eça de Queirós, A Cidade e as Serras.
Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, à pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia num wagon, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me escangalhavam a entranha. Quatorze vezes subi derreadamente, atrás de um criado, a escadaria desconhecida dum Hotel; e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma cama desconhecida, donde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas desconhecidas um café com leite que me sabia a fava, um banho de tina que me cheirava a lodo. Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito. Em mais de trinta mesas-redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-a-la-mode, já frio, com molho coalhado - e que o copeiro me trouxesse a garrafa de Bordeus que eu provava e repelia com desditosa carantonha. Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove Catedrais. Trilhei molemente, com uma dor surda na nuca, em quatorze museus, cento e quarenta salas revestidas até aos tectos de Cristos, heróis, santos, ninfas, princesas, batalhas, arquitecturas, verduras, nudezes, sombrias manchas de betume, tristezas das formas imóveis!... E o dia mais doce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho inglês de penca flamejante que habitara o Porto, conhecera o Ricardo, o José Duarte, o Visconde do Bom Sucesso, e as Limas da Boa Vista... Gastei seis mil francos. Tinha viajado.
Eça de Queirós, A Cidade e as Serras.
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
É esse o perigo de nos tornarmos ilhéus. D. H. Lawrence
Desta pequena ilha no espaço passava-se, estranhamente, aos grandes domínios obscuros do tempo, onde as almas que nunca morrem passam e repassam, em missões vastas e estranhas. A pequena ilha terrestre diminui, como um trampolim, e reduz-se a nada, porque dela se saltou, sem saber como, para o amplo mistério escuro do tempo onde o passado é vivo e vasto e o futuro não está isolado.
É esse o perigo de nos tornarmos ilhéus. Na cidade, quando se vai de polainas brancas e se evita o trânsito, com o medo da morte metido na espinha, está-se protegido dos terrores do tempo infinito. O momento é a ilhota no tempo de cada um, é o universo espacial que passa vertiginosamente à nossa volta.
Mas, quando nos isolamos numa ilha pequena no mar do espaço e o momento começa a inchar e a expandir-se em grandes círculos, vai-se a terra sólida e a nossa alma escura, nua, escorregadia, acha-se no mundo intemporal, onde os carros da chamada morte se precipitam pelas velhas ruas dos séculos e as almas se apinham nos caminhos a que nós, no momento, chamamos anos passados. As almas dos mortos estão vivas, de novo, e pulsam activamente em redor de nós. Estamos perdidos no outro infinito.
D. H. Lawrence, Amor no Feno e Outros Contos. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010. Edição Biblioteca Editores Independentes, p. 127-128.
É esse o perigo de nos tornarmos ilhéus. Na cidade, quando se vai de polainas brancas e se evita o trânsito, com o medo da morte metido na espinha, está-se protegido dos terrores do tempo infinito. O momento é a ilhota no tempo de cada um, é o universo espacial que passa vertiginosamente à nossa volta.
Mas, quando nos isolamos numa ilha pequena no mar do espaço e o momento começa a inchar e a expandir-se em grandes círculos, vai-se a terra sólida e a nossa alma escura, nua, escorregadia, acha-se no mundo intemporal, onde os carros da chamada morte se precipitam pelas velhas ruas dos séculos e as almas se apinham nos caminhos a que nós, no momento, chamamos anos passados. As almas dos mortos estão vivas, de novo, e pulsam activamente em redor de nós. Estamos perdidos no outro infinito.
D. H. Lawrence, Amor no Feno e Outros Contos. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010. Edição Biblioteca Editores Independentes, p. 127-128.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Nitzsche. Claudio Magris
É cada vez mais difícil, na actual irrealidade do mundo, responder à questão de Nietzsche: "onde é que me posso sentir em casa?"
Claudio Magris, Trois Orients. Récits de Voyage. Paris, Rivages, 2006
Claudio Magris, Trois Orients. Récits de Voyage. Paris, Rivages, 2006
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
Nunca teve vontade de partir? Milan Kundera
O jovem olha-a nos olhos, ouve-a e depois diz-lhe que aquilo a que ela chama recordação é, na realidade, oura coisa muito diferente: enfeitiçada, vê-se a esquecer.
Tamina aprova.
E o jovem continua: o olhar triste que ela lança para trás já não é a expressão da fidelidade a um morto. O morto desapareceu do seu campo visual e ela olha apenas para o vazio.
Para o vazio? Mas então o que é que lhe torna o olhar tão pesado?
Não está pesado de recordações, explica o jovem, mas de remorsos. E Tamina nunca se perdoará o ter esquecido.
- E o que é que tenho de fazer? - pergunta Tamina.
- Esquecer o seu esquecimento - diz o jovem.
Tamina sorri com amargura:
- Explique-me como é que consigo.
- Nunca teve vontade de partir?
- Sim - confessa Tamina. - Tenho uma terrível vontade de partir. Mas para onde?
- Para qualquer sítio onde as coisas são leves como uma brisa. Onde as coisas perderam o peso. Onde não há remorsos.
Milan Kundera, O Livro do Riso e do Esquecimento. 9ª edição. Lisboa, Dom Quixote, 2001, p. 156-157.
Tamina aprova.
E o jovem continua: o olhar triste que ela lança para trás já não é a expressão da fidelidade a um morto. O morto desapareceu do seu campo visual e ela olha apenas para o vazio.
Para o vazio? Mas então o que é que lhe torna o olhar tão pesado?
Não está pesado de recordações, explica o jovem, mas de remorsos. E Tamina nunca se perdoará o ter esquecido.
- E o que é que tenho de fazer? - pergunta Tamina.
- Esquecer o seu esquecimento - diz o jovem.
Tamina sorri com amargura:
- Explique-me como é que consigo.
- Nunca teve vontade de partir?
- Sim - confessa Tamina. - Tenho uma terrível vontade de partir. Mas para onde?
- Para qualquer sítio onde as coisas são leves como uma brisa. Onde as coisas perderam o peso. Onde não há remorsos.
Milan Kundera, O Livro do Riso e do Esquecimento. 9ª edição. Lisboa, Dom Quixote, 2001, p. 156-157.
domingo, 24 de novembro de 2013
sábado, 23 de novembro de 2013
Cada um segue caminho. René Barjavel
Cada um segue o seu caminho, que não é semelhante a nenhum outro, e ninguém chega ao mesmo lugar, nem na vida nem na morte.
René Barjavel, Chemins de Karmandou, 1969.
René Barjavel, Chemins de Karmandou, 1969.
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
Raros mortais que tinham a curiosidade dos caminhos. Vitorino Nemésio
Quando hoje falamos de turismo, de pousadas, de auto-estradas e de pérgolas, mal cuidamos nos tratos que passavam, há cem ou duzentos anos, os raros mortais que tinham a curiosidade dos caminhos. É verdade que essa espécie de sexto sentido, o dos horizontes laços, a poucos era dado. Andava-se de macho ou de liteira por dura necessidade. Os ricos afundavam-se em churriões ou cadeirinhas, confiando-se aos solavancos das parelhas de muda e à guarda dos criados de libré, de bacamarte aperrado. Os mais comodistas ou decrépitos nem precisavam de apear-se, em certos extremos: tinham no no assento da carruagem o beliche de wagon-lits e a cabine-lavabo. Assim, geralmente, não conservavam da jornada mais do que os ossos moídos.
Nós portugueses, grandes navegadores e escuteiros de continentes, fomos sempre fracos conhecedores dos cantos da própria casa, dando-se o caso espantoso de termos batido a Abissínia, o Tibé, o inferno, deixando intactos os recessos fragosos da Serra da Estrela e do Barroso. A não ser o bom do D. Frei Bartolomeu dos Mártires, o santo Arcebispo de Braga, que a crermos Frei Luis de Sousa, jornadeou precisamente pelas Alturas do Barroso e desvios interamnenses, as primeiras notícias que temos de peregrinos de terrinhas escondidas são de viajantes estrangeiros dos séculos
XVIII e XIX.
13-10-1948
Vitorino Nemésio, Viagens ao Pé da Porta. Lisboa, Editorial Pórtico, S/d, p. 29/30.
Nós portugueses, grandes navegadores e escuteiros de continentes, fomos sempre fracos conhecedores dos cantos da própria casa, dando-se o caso espantoso de termos batido a Abissínia, o Tibé, o inferno, deixando intactos os recessos fragosos da Serra da Estrela e do Barroso. A não ser o bom do D. Frei Bartolomeu dos Mártires, o santo Arcebispo de Braga, que a crermos Frei Luis de Sousa, jornadeou precisamente pelas Alturas do Barroso e desvios interamnenses, as primeiras notícias que temos de peregrinos de terrinhas escondidas são de viajantes estrangeiros dos séculos
XVIII e XIX.
13-10-1948
Vitorino Nemésio, Viagens ao Pé da Porta. Lisboa, Editorial Pórtico, S/d, p. 29/30.
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Uma viagem sentimental sobre uma mula tordilha. Ortega y Gasset
Por terras de Sigüenza e Berlanga do Douro, nos dias de Agosto lancinados pelo sol, fiz eu - Rubin de Cendaya, [pseudónimo de Ortega y Gasset] místico espanhol - uma viagem sentimental sobre uma mula tordilha de altas orelhas inquietas. São as terras que o Cid cavalgou. São, além disso, as terras onde surgiu o primeiro poeta castelhano, o autor do poema chamado Myo Cid.
Não se julgue por isto que sou de temperamento conservador e tradicionalista. Sou um homem que ama verdadeiramente o passado. Os tradicionalistas, pelo contrário, não o amam: querem que não seja passado, mas sim presente. Amar o passado é alegrar-se de que efectivamente tenha passado e de umas coisas, perdendo essa rudeza com a qual ao estarem presentes arranham os nossos olhos, os nossos ouvidos e as nossas mãos, ascendam à vida mais pura e essencial que têm na reminiscência.
O valor que damos a muitas das realidades presentes não é merecido por estas em si mesmas; se nos ocupamos delas é porque existem, porque estão aí, diante de nós, ofendendo-nos ou servindo-nos. A sua existência, não elas, tem valor. Pelo contrário, daquilo que foi interessa-nos a sua qualidade íntima e própria. De modo que as coisas, ao penetrar no âmbito do pretérito, ficam despojadas de toda a aderência utilitária, de toda a hierarquia fundada nos serviços que enquanto existentes nos prestaram, e assim, absolutamente despidas, é quando começam a viver do seu vigor essencial.
Por isso, é conveniente lançar, de vez em quando, um longo olhar em direcção à profunda alameda do passado: nela aprendemos os verdadeiros valores - não no mercado do dia.
Ortega y Gasset, Notas de Andar e Ver (Viagens, Gentes e Países). Lisboa, Fim de Século, 2007, p. 29-30.
Não se julgue por isto que sou de temperamento conservador e tradicionalista. Sou um homem que ama verdadeiramente o passado. Os tradicionalistas, pelo contrário, não o amam: querem que não seja passado, mas sim presente. Amar o passado é alegrar-se de que efectivamente tenha passado e de umas coisas, perdendo essa rudeza com a qual ao estarem presentes arranham os nossos olhos, os nossos ouvidos e as nossas mãos, ascendam à vida mais pura e essencial que têm na reminiscência.
O valor que damos a muitas das realidades presentes não é merecido por estas em si mesmas; se nos ocupamos delas é porque existem, porque estão aí, diante de nós, ofendendo-nos ou servindo-nos. A sua existência, não elas, tem valor. Pelo contrário, daquilo que foi interessa-nos a sua qualidade íntima e própria. De modo que as coisas, ao penetrar no âmbito do pretérito, ficam despojadas de toda a aderência utilitária, de toda a hierarquia fundada nos serviços que enquanto existentes nos prestaram, e assim, absolutamente despidas, é quando começam a viver do seu vigor essencial.
Por isso, é conveniente lançar, de vez em quando, um longo olhar em direcção à profunda alameda do passado: nela aprendemos os verdadeiros valores - não no mercado do dia.
Ortega y Gasset, Notas de Andar e Ver (Viagens, Gentes e Países). Lisboa, Fim de Século, 2007, p. 29-30.
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
terça-feira, 19 de novembro de 2013
Mujer de mi gran viaje. Vicente Huidobro
Te amo mujer de mi gran viaje
Como el mar ama al agua
Que lo hace existir
Y le da derecho a llamarse mar
Y a reflejar el cielo y la luna y las estrelas
Vicente Huidobro, El Pasajero de Su Destino. Sevilha, Sibilina, 2008, p. 263.
Como el mar ama al agua
Que lo hace existir
Y le da derecho a llamarse mar
Y a reflejar el cielo y la luna y las estrelas
Vicente Huidobro, El Pasajero de Su Destino. Sevilha, Sibilina, 2008, p. 263.
segunda-feira, 18 de novembro de 2013
Sou mau viajante. Somerset Maugham
Embora seja muito viajado, sou mau viajante. O bom viajante tem o dom de surpreender-se. Tem um interesse perpétuo pelas diferenças que encontra entre o que conhece no seu país e o que vê no estrangeiro. Se possuir um sentido apurado do absurdo, encontra constantemente motivo para se rir do facto de as pessoas que o rodeiam não se vestirem como ele e não consegue deixar de se espantar por aquelas pessoas comerem com pauzinhos e não com garfos ou escreverem com um pincel e não com uma caneta. Como tudo lhe é estranho, repara em tudo o que, consoante o seu estado de espírito, pode ser divertido ou edificante. Já eu tomo tudo por certo tão rapidamente, que deixo de ver o que seja de invulgar no meu novo ambiente. Parece-me tão evidente que o birmanês use um paso colorido, que só com um esforço deliberado da minha parte consigo fazer a observação de que ele não usa calças como eu. A mim, parece-me igualmente natural andar de riquexó ou de carro e sentar-me no chão ou numa cadeira, e assim me esqueço quando estou alguma coisa estranha ou insólita. Eu viajo porque gosto de andar de um lado para o outro, aprecio a sensação de liberdade que isso me dá, agrada-me estar livre de laços, responsabilidades, deveres, e gosto do desconhecido. Conheço pessoas invulgares que me divertem por um momento e que, por vezes, me sugerem um tema para um texto. Sinto-me muitas vezes cansado de mim mesmo e tenho a impressão de que, viajando, posso enriquecer a minha personalidade e assim mudar um pouco. Nunca regresso de uma viagem exactamente com o mesmo eu que levei comigo.
Somerset Maugham, Um Gentleman na Ásia. Lisboa, Edições Tinta da China, 2013, p. 26-27.
Somerset Maugham, Um Gentleman na Ásia. Lisboa, Edições Tinta da China, 2013, p. 26-27.
domingo, 17 de novembro de 2013
Viagem a Myconos (3). Ruben A
Vou tomar banho a uma praia defendida do vento e a água é cristalina e pura, quase fria, sem ondas. Estendo-me na praia e oiço Debussy, a mais completa imagem-som que senti na vida - oiço o piano de muitos prelúdios a ritmarem-se em escalas diferentes. Vêm quase silenciosos, falam em frases muito curtas, aparecem e desaparecem, vêem-se no desdobrar de sons minúsculos trazidos por uma onda que se recolhe cada vez que se abre. É uma praia deserta onde um barco lembra a existência de qualquer coisa pareci da com a raça do Homem. É um barco que me liga de som à existência, é a única imagem que tem nome. Oiço mais atentamente, oiço horizontal, para sentir o som vindo da melodia que se esvai e renasce naquele portinho tão cheio de tonalidades perceptíveis. Uma grandeza enche-me, completa-se na alvura da ilha - estou horas a ouvir qualquer coisa de extraordinário que fica gravado na minha imaginação como o recordar harmonioso um piano afinado pelo próprio teclado da natureza. É um Debussy monstro que se agiganta no microcosmos, trânsito de uma nota cromática que penetra suave nos poros audíveis da minha sensibilidade.
Volto a pé a Myconos. Volto à baía, ver os amigos que nas mesas me esperam. Ainda não chegaram os turistas, os ilhéus andam todos cá por fora e o palhabote nem entra na baía, as lanchas vão fora da barra apinhadas de gente. Basta o barco uivar para ser uma correria. Não consigo cabine. Nada tem importância, não há dificuldades, tudo se arranja. É tudo fácil e simples. A minha partida da ilha tem de ser clandestina, pela calada da noite, com senha e contra-senha. Escala um barco grande de turistas - entra às seis e sai à meia-noite. Da ilha só vêem o cais, e alguns o branco, mas, como turistas, lêem de cor a natureza. Pela lei dos códigos marítimos não pode receber passageiros em portos intermediários. Mas tudo se arranja. Metem-me num grupo de excursionistas, e um dos gregos amigos escreve logo uma carta para o comissário de bordo e fornece-me um bilhete de visita ao navio. A bagagem lá irá parar - eu que não me preocupe, nada de agitação. Calma, conversa e mais um anis com gelo. Nada de pressas, mais um cigarro. O grego confia, posso pagar quando quiser, a bordo ou à chegada a Atenas, ou mandar o dinheiro de Portugal. Não há pressas, tudo é à base de confiança.
A minha saída de Myconos reveste-se de aspectos rocambolescos, sou metido a bordo em manada de excursionistas com guia à frente - cá vou eu de cabeça baixa, clandestino na igualdade de direitos humanos dada pelos Gregos a todos os homens.
Antes da última aventura fui despedir-me de Joseph à sua mesa, já batida pela lua oscilando entre restos de batatas fritas e um molho prateado de combustível oleoso. Abraçou -se, deu-me um beijo, e comunicou a todos os estranhos e aos já conhecidos a minha partida. Mirou-me de alto a baixo e em francês disse-me apenas - au revoir et bonne santé - toujours bonne santé - Fiquei com a língua enjaulada. Mas no súbito lembrei-me a estupenda palavra grega para o saudar: IASÚI.
Ao subir a escada daquele portaló de luxo olhei para a correnteza de casario e mirei emocionado toda a simplicidade que o branco deixara pendurado na noite prateada da baía. Olhei mais. Vi que todos eram amigos e agarrado à manada, sentindo as varas dos picadores, de saco debaixo do braço, ouvia a voz do intérprete que divagava ao som da orquestra de bordo, mal sonhando que levava mais um no rebanho, parido de geração espontânea ali em Myconos ao pé da ilha sagrada. Misturado como choca em praça de touros flutuante, dei entrada nos salões como agente clandestino dos deuses. Arrepiavam-me os ossos, sentia tonturas ao ouvir palmas de fim de dança. No entanto tudo se passava normal, os gregos amigos, e amigos dos deuses lá puseram a minha bagagem, a carta entregue e logo a cabine pronta para me acolher até ao Pireu. Simples, sem complicações, sem nada, tudo branco. Posso dizer que abandonei a ilha como mais poderia desejar, mas como nunca havia pensado.
O breu imergia-me no azul, caldeado na imagem branca do balouçar via calças e mais calças a serem cortadas para os deuses e a afogarem os últimos sons que Debussy lançava num S.O.S. à minha procura.
Ruben A., "Viagem para Delos e Myconos", do livro Um Adeus aos Deuses. Edição Parque Expo, 1997.
Volto a pé a Myconos. Volto à baía, ver os amigos que nas mesas me esperam. Ainda não chegaram os turistas, os ilhéus andam todos cá por fora e o palhabote nem entra na baía, as lanchas vão fora da barra apinhadas de gente. Basta o barco uivar para ser uma correria. Não consigo cabine. Nada tem importância, não há dificuldades, tudo se arranja. É tudo fácil e simples. A minha partida da ilha tem de ser clandestina, pela calada da noite, com senha e contra-senha. Escala um barco grande de turistas - entra às seis e sai à meia-noite. Da ilha só vêem o cais, e alguns o branco, mas, como turistas, lêem de cor a natureza. Pela lei dos códigos marítimos não pode receber passageiros em portos intermediários. Mas tudo se arranja. Metem-me num grupo de excursionistas, e um dos gregos amigos escreve logo uma carta para o comissário de bordo e fornece-me um bilhete de visita ao navio. A bagagem lá irá parar - eu que não me preocupe, nada de agitação. Calma, conversa e mais um anis com gelo. Nada de pressas, mais um cigarro. O grego confia, posso pagar quando quiser, a bordo ou à chegada a Atenas, ou mandar o dinheiro de Portugal. Não há pressas, tudo é à base de confiança.
A minha saída de Myconos reveste-se de aspectos rocambolescos, sou metido a bordo em manada de excursionistas com guia à frente - cá vou eu de cabeça baixa, clandestino na igualdade de direitos humanos dada pelos Gregos a todos os homens.
Antes da última aventura fui despedir-me de Joseph à sua mesa, já batida pela lua oscilando entre restos de batatas fritas e um molho prateado de combustível oleoso. Abraçou -se, deu-me um beijo, e comunicou a todos os estranhos e aos já conhecidos a minha partida. Mirou-me de alto a baixo e em francês disse-me apenas - au revoir et bonne santé - toujours bonne santé - Fiquei com a língua enjaulada. Mas no súbito lembrei-me a estupenda palavra grega para o saudar: IASÚI.
Ao subir a escada daquele portaló de luxo olhei para a correnteza de casario e mirei emocionado toda a simplicidade que o branco deixara pendurado na noite prateada da baía. Olhei mais. Vi que todos eram amigos e agarrado à manada, sentindo as varas dos picadores, de saco debaixo do braço, ouvia a voz do intérprete que divagava ao som da orquestra de bordo, mal sonhando que levava mais um no rebanho, parido de geração espontânea ali em Myconos ao pé da ilha sagrada. Misturado como choca em praça de touros flutuante, dei entrada nos salões como agente clandestino dos deuses. Arrepiavam-me os ossos, sentia tonturas ao ouvir palmas de fim de dança. No entanto tudo se passava normal, os gregos amigos, e amigos dos deuses lá puseram a minha bagagem, a carta entregue e logo a cabine pronta para me acolher até ao Pireu. Simples, sem complicações, sem nada, tudo branco. Posso dizer que abandonei a ilha como mais poderia desejar, mas como nunca havia pensado.
O breu imergia-me no azul, caldeado na imagem branca do balouçar via calças e mais calças a serem cortadas para os deuses e a afogarem os últimos sons que Debussy lançava num S.O.S. à minha procura.
Ruben A., "Viagem para Delos e Myconos", do livro Um Adeus aos Deuses. Edição Parque Expo, 1997.
sábado, 16 de novembro de 2013
Viagem a Myconos (2). Ruben A.
Joseph manda vir outra rodada e de garfo em punho todos metem o bedelho no prato. Começam a chegar os turistas, são seis da tarde, Joseph está na ponta da ilha por onde eles entram. Primeiro olha à distância, depois fixa-se nas calças e de olho caído por uma leve distracção nem as persegue. «Calças de terceira classe» - digo eu. - «Nem de quarta», responde-me com ar de ligeira constipação. Passam mais turistas e Joseph continua a olhar para as calças com interesse clínico, repara no corte da rabada, «mal feitas», «pouca altura de anca», «estreitas no rabo». Joseph comanda o andamento da ilha, todos o adoram, todos vêm ter com ele. A casa de Joseph é um museu de dedicatórias de todos os costureiros de Paris, de todas as mulheres célebres do universo. E ele é um homem simples, o único na ilha de Myconos que usa colete. Se alguém passa de calças mais bem feitas, Jupien levanta-se da cadeira, olha atento, e devagar vai à sua loja. É ele que tem a chave no bolso e a bicha de pessoas espera o curandeiro, o homem que indiferente à celebridade, corta as melhores calças do mundo. Na loja manda logo vir café para todos, dá cigarros, faz preços para voltar, corta logo, risca e começa a trabalhar, depois entrega o resto às costureiras. Terminada a operação, as enfermeiras que se divirtam com os restos dos clientes - ele nada mais faz. Volta à baía. Senta-se. Manda vir nova rodada de anis, café e um prato de tiras de perna de carneiro e batatas fritas. Outra vez muitos garfos e ele comanda novamente. Faz o corte, risca os bocados e oferece o garfo para cada um provar o original.
É uma ilha em que cada homem tem uma história e cada casa é branca e só branca. Português de paleio, em carne e osso, que quisesse provar o sabor de Myconos, só eu ainda tinha por lá pairado! Novos amigos sentam-se à mesa: gregos que viajaram oceanos e passaram por Lisboa. Contam histórias em várias línguas. São famílias sobre famílias, primos todos uns dos outros - o capitão Luigio Guarouni que me tinha levado a Delos era sogro de um personagem de Ulisses - um homenzarrão que estava no cais quando eu cheguei. Estava a receber malas e carregar fruta. De aspecto brutal. Depois encontrei um tipo parecido, sentado numa mesa da baía, olhei, passei e continuei. A seguir entrei numa boutique e apareceu-me esse homem já transformado em capitão de barco, proprietário do melhor caíque que leva a Delos. Cada homem naquela terra é tudo - carregador, capitão de barco, amigo, e nesta palavra vai a melhor gratidão aos Gregos - eles são amigos, acolhedores, benvindos. Perdidos em arquipélagos sentem-se reconfortados pelos bens de outras gentes que os vêm visitar..
Na ilha há três táxis e uma camioneta, há várias praias, há vento e moinhos brancos, há capelinhas por toda a parte. Dá a impressão de que em certo momento da vida deste povo de Myconos logo que nascia alguém pagavam de tributo uma capelinha, erguiam a Deus o seu agradecimento.
É uma ilha em que cada homem tem uma história e cada casa é branca e só branca. Português de paleio, em carne e osso, que quisesse provar o sabor de Myconos, só eu ainda tinha por lá pairado! Novos amigos sentam-se à mesa: gregos que viajaram oceanos e passaram por Lisboa. Contam histórias em várias línguas. São famílias sobre famílias, primos todos uns dos outros - o capitão Luigio Guarouni que me tinha levado a Delos era sogro de um personagem de Ulisses - um homenzarrão que estava no cais quando eu cheguei. Estava a receber malas e carregar fruta. De aspecto brutal. Depois encontrei um tipo parecido, sentado numa mesa da baía, olhei, passei e continuei. A seguir entrei numa boutique e apareceu-me esse homem já transformado em capitão de barco, proprietário do melhor caíque que leva a Delos. Cada homem naquela terra é tudo - carregador, capitão de barco, amigo, e nesta palavra vai a melhor gratidão aos Gregos - eles são amigos, acolhedores, benvindos. Perdidos em arquipélagos sentem-se reconfortados pelos bens de outras gentes que os vêm visitar..
Na ilha há três táxis e uma camioneta, há várias praias, há vento e moinhos brancos, há capelinhas por toda a parte. Dá a impressão de que em certo momento da vida deste povo de Myconos logo que nascia alguém pagavam de tributo uma capelinha, erguiam a Deus o seu agradecimento.
sexta-feira, 15 de novembro de 2013
Viagem a Myconos (1). Ruben A.
As histórias contam-se no cais - a ilha vive para quem vem. Chegar é ser recebido de braços abertos como tendo há pouco partido - a língua que se fala não importa, uma pessoa senta-se à mesa e aparece logo quem oferece uma roda de resina ou de anis mergulhado em gelo, talvez mesmo estejam sentados os que só bebem água gelada, copos cheios a acompanhar o café turco, melado, doce de azedar o paladar. A vida é ali no cais que está e a ilha vem à baía ver quem chega. Quando não há visitantes a ilha descansa, alguns trabalham e outros falam. Na Grécia está sempre tudo a falar, percebe-se que gostam de falar e não dizer nada, falam, falam. Toda a gente fala e bebe qualquer coisa, fuma, oferece, dá.
Quando chegam as carradas, ou melhor as barcadas de turistas, só se vêem os turistas, os de Myconos vão a correr abrir as lojas, pôr o estendaI dos teares colado às janelas, às portas e escadas - as célebres escadas de Myconos que são todas exteriores. Vivem então os de Myconos dentro de casa e continuam a oferecer café, água, anis, cigarros a todo aquele que lá entra, mesmo que não compre nada, que não perceba patavina do artigo. Os de Myconos dão-se de amizade, de imediato, sem rodeios, sem protocolo. O único protocolo da ilha é não haver protocolos! Tudo é simples, corrido falado, acolhedor em grande escala. Há aqui em absoluto uma grande felicidade de viver, de contar, em troca de nada, de não ligar importância à vida. Tudo é muito simples, tudo se faz, tudo se arranja. Um par de calças e uma camisola encomendados às sete da tarde no célebre Joseph - o Jupien de Proust - está pronto certo, à medida e perfeito, ali às onze e um quarto da manhã do dia seguinte e entregue no hotel para maior conforto da prova final.
Myconos é uma ilha sem horário, está sempre aberta a tudo, fechada só quando os turistas embarcam para outros rumos. Nessa altura fecham-se as casas e na correnteza de todo o cais - que é avenida, rua, praça, monumento, santuário - a ilha continua a falar, a criar estilo, e das ruas estreitíssimas e em labirintos sai a fauna misturada a três sexos - os dois da ilha e um de importação recente, poliglota, hermafrodita e que de juba por tosquiar se ademana aos grupos em boutiques fantasques.
Misturo-me no branco caiado das ruas - as primeiras ruas caiadas e caiadas todas as semanas de lés a lés, ruas e casas vestidas de branco, tudo com degraus brancos numa apoteose em que o colorido dos habitantes sobressai como faúlha em forno de cal. O que me interessa em Myconos é a realidade visível da fé nas suas trezentas e sessenta igrejas e capelas, número magno para quatro mil habitantes. Num largo branco, pequeno, frente ao mar, com o único plátano da ilha, há cinco capelas com uma igreja no cento, tudo atento para branquear a alma. Passeio mais, ruas de uma Alfama imaculada, mais estreitas no cada vez, a um de frente, em bicha, sem cruzamentos. Chega nova barcada de turistas e salpicam momentaneamente a ilha de encarnados, amarelos, azuis, pretos, calças listradas, sacos multicolores. E o branco resiste, é forte, cromático. Continuo estático, indiferente aos que chegam ou partem.
Joseph aparece. Acabou de cortar mais meia dúzia de calças. Aparece e senta-se na ponta da baía, na primeira taberna com mesas e cadeiras frente ao semicírculo do cais. Senta-se e logo uma roda de amigos faz companhia, manda oferecer, - oferece anis com gelo, café turco, oferece o que se quiser tomar. Manda vir um prato com várias tiras de rostbeef com batatas fritas a fazerem de girassol. Um prato, uma faca e cinco garfos. O grande Joseph - Jupien faz o corte da carne e cada um de garfo em punho vai tirando uma lasca. A qualquer hora do dia, tanto faz, Joseph começa numa ponta do cais, às quatro horas já está a meio, e ao fim da tarde acaba no outro extremo, sempre numa mesa grande recheada de amigos e estranhos - melhor, os estranhos também são os amigos em Myconos. Amigos sempre diferentes, de nova colheita, de outros mundos. Ali, sentado como soba da ilha - Joseph, o único católico de Myconos, afirma que é ele quem tem a chave da igreja - ele é tudo - padre, sacristão, confessor, santo missal e a água benta. E é ali, em minoria de um, que a religião católica tem o seu defensor mais acérrimo, o único ser da ilha que pede ao padre de Tinos para três a quatro vezes por ano vir dizer missa à sua capela.
Quando chegam as carradas, ou melhor as barcadas de turistas, só se vêem os turistas, os de Myconos vão a correr abrir as lojas, pôr o estendaI dos teares colado às janelas, às portas e escadas - as célebres escadas de Myconos que são todas exteriores. Vivem então os de Myconos dentro de casa e continuam a oferecer café, água, anis, cigarros a todo aquele que lá entra, mesmo que não compre nada, que não perceba patavina do artigo. Os de Myconos dão-se de amizade, de imediato, sem rodeios, sem protocolo. O único protocolo da ilha é não haver protocolos! Tudo é simples, corrido falado, acolhedor em grande escala. Há aqui em absoluto uma grande felicidade de viver, de contar, em troca de nada, de não ligar importância à vida. Tudo é muito simples, tudo se faz, tudo se arranja. Um par de calças e uma camisola encomendados às sete da tarde no célebre Joseph - o Jupien de Proust - está pronto certo, à medida e perfeito, ali às onze e um quarto da manhã do dia seguinte e entregue no hotel para maior conforto da prova final.
Myconos é uma ilha sem horário, está sempre aberta a tudo, fechada só quando os turistas embarcam para outros rumos. Nessa altura fecham-se as casas e na correnteza de todo o cais - que é avenida, rua, praça, monumento, santuário - a ilha continua a falar, a criar estilo, e das ruas estreitíssimas e em labirintos sai a fauna misturada a três sexos - os dois da ilha e um de importação recente, poliglota, hermafrodita e que de juba por tosquiar se ademana aos grupos em boutiques fantasques.
Misturo-me no branco caiado das ruas - as primeiras ruas caiadas e caiadas todas as semanas de lés a lés, ruas e casas vestidas de branco, tudo com degraus brancos numa apoteose em que o colorido dos habitantes sobressai como faúlha em forno de cal. O que me interessa em Myconos é a realidade visível da fé nas suas trezentas e sessenta igrejas e capelas, número magno para quatro mil habitantes. Num largo branco, pequeno, frente ao mar, com o único plátano da ilha, há cinco capelas com uma igreja no cento, tudo atento para branquear a alma. Passeio mais, ruas de uma Alfama imaculada, mais estreitas no cada vez, a um de frente, em bicha, sem cruzamentos. Chega nova barcada de turistas e salpicam momentaneamente a ilha de encarnados, amarelos, azuis, pretos, calças listradas, sacos multicolores. E o branco resiste, é forte, cromático. Continuo estático, indiferente aos que chegam ou partem.
Joseph aparece. Acabou de cortar mais meia dúzia de calças. Aparece e senta-se na ponta da baía, na primeira taberna com mesas e cadeiras frente ao semicírculo do cais. Senta-se e logo uma roda de amigos faz companhia, manda oferecer, - oferece anis com gelo, café turco, oferece o que se quiser tomar. Manda vir um prato com várias tiras de rostbeef com batatas fritas a fazerem de girassol. Um prato, uma faca e cinco garfos. O grande Joseph - Jupien faz o corte da carne e cada um de garfo em punho vai tirando uma lasca. A qualquer hora do dia, tanto faz, Joseph começa numa ponta do cais, às quatro horas já está a meio, e ao fim da tarde acaba no outro extremo, sempre numa mesa grande recheada de amigos e estranhos - melhor, os estranhos também são os amigos em Myconos. Amigos sempre diferentes, de nova colheita, de outros mundos. Ali, sentado como soba da ilha - Joseph, o único católico de Myconos, afirma que é ele quem tem a chave da igreja - ele é tudo - padre, sacristão, confessor, santo missal e a água benta. E é ali, em minoria de um, que a religião católica tem o seu defensor mais acérrimo, o único ser da ilha que pede ao padre de Tinos para três a quatro vezes por ano vir dizer missa à sua capela.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
Viajava pela primeira vez. Gabriel Garcia Márquez
Eram os únicos passageiros da modesta carruagem de terceira classe. Como o fumo da locomotiva continuasse a entrar pela janela, a menina levantou-se do banco e colocou nele os únicos objectos que traziam: um saco de plástico com algumas coisas para comer e um ramo de flores envolvido em papel de jornal. Sentou-se no banco fronteiro, afastada da janela, em frente da mãe. Ambas guardavam um luto rigoroso e pobre.
A menina tinha doze anos e viajava pela primeira vez. A mulher parecia velha de mais para ser mãe dela, por causa das veias azuis das pálpebras, e do corpo pequeno, franzino e sem formas, metido num vestido talhado como uma sotaina. Viajava com a coluna vertebral firmemente apoiada nas costas do assento, segurando no regaço, com ambas as mãos, uma bolsa de verniz sem brilho. Tinha a escrupulosa serenidade de pessoa acostumada à pobreza.
Gabriel Garcia Márquez, "Uma Sesta de Terça-Feira", in Contos Completos, 1947-1992. 6a edição. Lisboa, Publicações D. Quixote, 2013, p. 17-18.
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
Do cansaço e do tédio da viagem. Antero de Quental
Que nome te darei, austera imagem,
Que avisto já num angulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cansaço e do tédio da viagem?
Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recua apavorada…
Mas eu confio em ti, sombra velada,
E cuido perceber tua linguagem…
Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos…
Dormirei no teu seio inalterável,
Na comunhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolável.
Antero de Quental. Os sonetos completos de Antero de Quental. Porto, Livraria Portuense, 1886.
Que avisto já num angulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cansaço e do tédio da viagem?
Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recua apavorada…
Mas eu confio em ti, sombra velada,
E cuido perceber tua linguagem…
Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos…
Dormirei no teu seio inalterável,
Na comunhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolável.
Antero de Quental. Os sonetos completos de Antero de Quental. Porto, Livraria Portuense, 1886.
terça-feira, 12 de novembro de 2013
A nossa última viagem foi aos Açores. Angelina Brandão
A nossa última viagem foi aos Açores numa época (1926) em que quase não se falava ainda nesse lindo arquipélago, e Raul Brandão partiu com o carinho que sempre dispensava a qualquer obra que empreendesse, e alguns milhares de escudos para estas nossas viagens de recreio.
As ilhas são maravilhosas na sua vegetação, encantadoras nos seus costumes, e as famílias açoreanas, quase todas fidalgas, são o mais obsequiadoras possível e de uma gentileza tão cativante que jamais esquece.
Que lindos e deliciosos dias passámos na Gorreana, solar de D. Angelina Gago e de seu marido Jaime Hintze - então governador civil em Ponta Delgada - modelos se educação e gentileza, nobres nos seus pergaminhos e nas suas virtudes.
À ilustre poetisa D. Alice Moderno, ao Dr. S. Bento e a muitas outras famílias, Morrison e Bulcão, no Faial, etc. que nos cumularam de atenções, devemos horas de conforto e amizade. Ms também junto delas, em todas as Ilhas, ficou um pouco do nosso coração.
Foi talvez esta a última viagem, que tanto nos encantou, a causa do avanço mais rápido da doença de Raul Brandão porque a sua saúde já era precária e o trabalho foi exaustivo, a aproximação constante do mar devia ter influído na depressão tão grande do seu coração.
Maria Angelina Brandão, Um Coração e uma Vontade. Memórias. Coimbra, Oficinas, Atlântida, 1959, p. 234-235.
As ilhas são maravilhosas na sua vegetação, encantadoras nos seus costumes, e as famílias açoreanas, quase todas fidalgas, são o mais obsequiadoras possível e de uma gentileza tão cativante que jamais esquece.
Que lindos e deliciosos dias passámos na Gorreana, solar de D. Angelina Gago e de seu marido Jaime Hintze - então governador civil em Ponta Delgada - modelos se educação e gentileza, nobres nos seus pergaminhos e nas suas virtudes.
À ilustre poetisa D. Alice Moderno, ao Dr. S. Bento e a muitas outras famílias, Morrison e Bulcão, no Faial, etc. que nos cumularam de atenções, devemos horas de conforto e amizade. Ms também junto delas, em todas as Ilhas, ficou um pouco do nosso coração.
Foi talvez esta a última viagem, que tanto nos encantou, a causa do avanço mais rápido da doença de Raul Brandão porque a sua saúde já era precária e o trabalho foi exaustivo, a aproximação constante do mar devia ter influído na depressão tão grande do seu coração.
Maria Angelina Brandão, Um Coração e uma Vontade. Memórias. Coimbra, Oficinas, Atlântida, 1959, p. 234-235.
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
Visitantes. António Osório
Visitantes
A pupila corrupta
fixo nos astros
- forasteiros
como nós
dentro do cosmos
sonâmbulo.
António Osório, Planetário e Zoo dos Homens. Lisboa, Presença, 1990, p. 38
A pupila corrupta
fixo nos astros
- forasteiros
como nós
dentro do cosmos
sonâmbulo.
António Osório, Planetário e Zoo dos Homens. Lisboa, Presença, 1990, p. 38
domingo, 10 de novembro de 2013
Essa nossa espécie de inocência. Eduardo Lourenço
Tal como a própria Grécia considerava aqueles que não falavam grego, os outros foram vistos primeiro como bárbaros, selvagens, como se dizia. Ora, quando lemos a Carta de Pero Vaz de Caminha ficamos muito admirados porque os portugueses não se espantaram com coisa nenhuma. Contrariamente àquilo que aconteceu com os conquistadores espanhóis, os portugueses nunca duvidaram que aqueles sujeitos - sobretudo as sujeitas - que eles encontraram fosse seres humanos: não só seres humanos, como seres humanos maravilhosos.
Começou aí uma espécie de leitura que vai criar muitas desilusões a uns e a outros, mas na verdade podemos considerar uma benção o facto de essa nossa espécie de inocência - nossa, dos portugueses, menos hipercultivados e sofisticados em relação ao que já era a grande cultura europeia -, o facto de essa nossa ignorância divina não ter excluído da humanidade aqueles primeiros sujeitos com que nos encontrámos.
E não só os encontrámos humanos - e as expressões disso duraram anos através da outra Europa -, não só os considerámos divinos, mas achámos, como diz a carta de Pero Vaz de Caminha, que essas jovens brasileiras, que ainda não tinham nome, eram mais belas que as mulheres (peço desculpa) de Entre Douro e Minho.
Eduardo Lourenço, Conferência proferida em Guimarães, na Sociedade Martins Sarmento, a 23 de Janeiro de 2010, publicada com o título Pequena Meditação Europeia. Lisboa, Guimarães, 2011. p 29-30.
Começou aí uma espécie de leitura que vai criar muitas desilusões a uns e a outros, mas na verdade podemos considerar uma benção o facto de essa nossa espécie de inocência - nossa, dos portugueses, menos hipercultivados e sofisticados em relação ao que já era a grande cultura europeia -, o facto de essa nossa ignorância divina não ter excluído da humanidade aqueles primeiros sujeitos com que nos encontrámos.
E não só os encontrámos humanos - e as expressões disso duraram anos através da outra Europa -, não só os considerámos divinos, mas achámos, como diz a carta de Pero Vaz de Caminha, que essas jovens brasileiras, que ainda não tinham nome, eram mais belas que as mulheres (peço desculpa) de Entre Douro e Minho.
Eduardo Lourenço, Conferência proferida em Guimarães, na Sociedade Martins Sarmento, a 23 de Janeiro de 2010, publicada com o título Pequena Meditação Europeia. Lisboa, Guimarães, 2011. p 29-30.
Hospitalidade. François Laplantine
As reflexões a seguir apresentadas não dizem respeito às múltiplas figuras de viajante, mas aos modos - eles também extremamente diversificados - pelos quais nós reagimos ao que chega de fora (o imigrado, o estrangeiro, o viajante...) e ao qual oferecemos ou não hospitalidade.
É este último termo que vamos interrogar. Vem do latim hospes e designa simultaneamente o hóspede e o estrangeiro. Pertence à mesma família das palavras hotel, hospedeiro, hoteleiro, hospício, hospital. Quanto à etimologia grega, é muito mais perturbadora. Xénos significa ao mesmo tempo o hóspede/hospedeiro e o estrangeiro, ou seja aquele que é recebido e o que recebe. Mas há mais. Os Gregos designavam pelo verbo xenitzo não só o facto de ser estrangeiro mas também o facto de parecer estranho. Criaram o termo xénosuné para nomear a hospitalidade e a palavra xénoktonia que significa literalmente o acto de matar os hóspedes ou os estrangeiros.
Estamos aqui na presença de uma significação eminentemente contraditória pela qual a hospitalidade pode converter-se em hostilidade e a boa vontade e confiança em má vontade e desconfiança. Jacques Derrida tratou a sobreposição provocada pelo duplo sentido criando um termo estranho: a hostipialidade [Anne Dufourmantelle, Jacques Derrida, De l'Hospitalité, Paris, Calman-Lévy, 1977].
Na hospitalidade, não existe necessariamente alguém que viaja, ou pelo menos chega de qualquer parte, e alguém que acolhe, alguém que convida e alguém que é convidado. Quem convida pode ser um hospedeiro, o dono da casa, mas também o Estado, a nação. O convidado pode ser um visitante, um turista, um nómada, um vagabundo, um imigrado, um exilado, um desenraizado, um apátrida. Pode ser um vivo ou um morto (como na mediunidade espírita que estudei tanto em Lyon como no Brasil), um ser humano ou um ser divino (e neste último caso, falamos na maioria das vezes de possessões).
Seja qual for a figura a reter, xénos, o estrangeiro, não é nunca o Outro absoluto, o heterogéneo, o excluído, mas também já não é o próximo, o familiar, o incluído. Se a distância é demasiado grande entre quem recebe e quem é recebido, não há nenhuma hospitalidade possível, mas ela também já não existe numa relação de excessiva proximidade. "O homem só ao homem oferece hospitalidade", escreve Derrida, e não a um monstro, sequer a uma planta ou a um animal. Dir-se-ia que somos como os animais que só oferecem hospitalidade à sua própria espécie. Ninguém viu um gato acolher um pássaro.
Recorremos ao termo hospitalidade nas seguintes expressões: "pedir hospitalidade", "oferecer hospitalidade", "conceder hospitalidade", "receber hospitalidade". Falamos ainda de "dever de hospitalidade", mas sobretudo de "direito de hospitalidade" (ou de "direito de asilo"). Onde é que convém - se é que convém - parar a expansão desta significação? Podemos deslizar imperceptivelmente para o convite e a recepção (falando então de convívio), o respeito, a tolerância, o socorro, a amizade ou até mesmo o amor? Mas neste último caso, sentimos que já não é a hospitalidade que está em causa [No filme Western, de Manuel Poirier, Nico e Paco são recolhidos, mais do que acolhidos, por diversas mulheres. A hospitalidade supõe de facto uma relação assimétrica criada pelo habitat. Marinette, Sabine e Nathalie abrem as suas portas a Nino e Paco que não têm tecto, nem trabalho, nem dinheiro, nem carro, nem mulher. Mas quando procuram preencher a sua solidão, manifestando disponibilidade para o encontro, já não é propriamente hospitalidade que estão a oferecer].
De facto, esta última situação procede à suspensão das oposições radicais do eu e o outro, do aqui e outro lugar. Ofereço hospitalidade a partir do momento em que percebo que existe uma comum e reciproca condição de estrangeiro entre nós, uma condição de estrangeiro partilhada e através da qual me recuso a designar outros como sendo e sobretudo como devendo continuar a ser "estrangeiros" [peço licença para remeter este ponto para o meu livro Je, Nous et Les Autres, edições Le Pomier, 1999].
A questão da hospitalidade coloca então uma tripla relação: com a língua, com a lei, com o lugar.
François Laplantine, "Voyage et Hospitalité". In Villes, Voyages, Voyageurs. Actes de la Rencontre de Villeurbanne. Paris, L'Harmattan, 2005, p. 55-59.
É este último termo que vamos interrogar. Vem do latim hospes e designa simultaneamente o hóspede e o estrangeiro. Pertence à mesma família das palavras hotel, hospedeiro, hoteleiro, hospício, hospital. Quanto à etimologia grega, é muito mais perturbadora. Xénos significa ao mesmo tempo o hóspede/hospedeiro e o estrangeiro, ou seja aquele que é recebido e o que recebe. Mas há mais. Os Gregos designavam pelo verbo xenitzo não só o facto de ser estrangeiro mas também o facto de parecer estranho. Criaram o termo xénosuné para nomear a hospitalidade e a palavra xénoktonia que significa literalmente o acto de matar os hóspedes ou os estrangeiros.
Estamos aqui na presença de uma significação eminentemente contraditória pela qual a hospitalidade pode converter-se em hostilidade e a boa vontade e confiança em má vontade e desconfiança. Jacques Derrida tratou a sobreposição provocada pelo duplo sentido criando um termo estranho: a hostipialidade [Anne Dufourmantelle, Jacques Derrida, De l'Hospitalité, Paris, Calman-Lévy, 1977].
Na hospitalidade, não existe necessariamente alguém que viaja, ou pelo menos chega de qualquer parte, e alguém que acolhe, alguém que convida e alguém que é convidado. Quem convida pode ser um hospedeiro, o dono da casa, mas também o Estado, a nação. O convidado pode ser um visitante, um turista, um nómada, um vagabundo, um imigrado, um exilado, um desenraizado, um apátrida. Pode ser um vivo ou um morto (como na mediunidade espírita que estudei tanto em Lyon como no Brasil), um ser humano ou um ser divino (e neste último caso, falamos na maioria das vezes de possessões).
Seja qual for a figura a reter, xénos, o estrangeiro, não é nunca o Outro absoluto, o heterogéneo, o excluído, mas também já não é o próximo, o familiar, o incluído. Se a distância é demasiado grande entre quem recebe e quem é recebido, não há nenhuma hospitalidade possível, mas ela também já não existe numa relação de excessiva proximidade. "O homem só ao homem oferece hospitalidade", escreve Derrida, e não a um monstro, sequer a uma planta ou a um animal. Dir-se-ia que somos como os animais que só oferecem hospitalidade à sua própria espécie. Ninguém viu um gato acolher um pássaro.
Recorremos ao termo hospitalidade nas seguintes expressões: "pedir hospitalidade", "oferecer hospitalidade", "conceder hospitalidade", "receber hospitalidade". Falamos ainda de "dever de hospitalidade", mas sobretudo de "direito de hospitalidade" (ou de "direito de asilo"). Onde é que convém - se é que convém - parar a expansão desta significação? Podemos deslizar imperceptivelmente para o convite e a recepção (falando então de convívio), o respeito, a tolerância, o socorro, a amizade ou até mesmo o amor? Mas neste último caso, sentimos que já não é a hospitalidade que está em causa [No filme Western, de Manuel Poirier, Nico e Paco são recolhidos, mais do que acolhidos, por diversas mulheres. A hospitalidade supõe de facto uma relação assimétrica criada pelo habitat. Marinette, Sabine e Nathalie abrem as suas portas a Nino e Paco que não têm tecto, nem trabalho, nem dinheiro, nem carro, nem mulher. Mas quando procuram preencher a sua solidão, manifestando disponibilidade para o encontro, já não é propriamente hospitalidade que estão a oferecer].
De facto, esta última situação procede à suspensão das oposições radicais do eu e o outro, do aqui e outro lugar. Ofereço hospitalidade a partir do momento em que percebo que existe uma comum e reciproca condição de estrangeiro entre nós, uma condição de estrangeiro partilhada e através da qual me recuso a designar outros como sendo e sobretudo como devendo continuar a ser "estrangeiros" [peço licença para remeter este ponto para o meu livro Je, Nous et Les Autres, edições Le Pomier, 1999].
A questão da hospitalidade coloca então uma tripla relação: com a língua, com a lei, com o lugar.
François Laplantine, "Voyage et Hospitalité". In Villes, Voyages, Voyageurs. Actes de la Rencontre de Villeurbanne. Paris, L'Harmattan, 2005, p. 55-59.
sábado, 9 de novembro de 2013
Em viagem ataca-me. Vitorino Nemésio
Faltava o élan de antigos encontros exemplares: Unamuno, V. Larbaud, Supervielle: – uns pela funda influência (Unamuno), outros pelas veleidades literárias, do tempo das ambições de morgado de Fafe em Paris. Como a nossa alma muda! E como me deixo arrastar! Por baixo das personagens corria-me o filme da infância. Quem sou é muito outro. Cada qual seja fiel ao que em verdade o informou. A alta civilização suíça a tantos níveis provoca-me a imagem da minha humildade traída. [...] Será mesmo para isto que cedemos à tentação do «diário»? Onde está a coragem e a entranha da verdade vivida? [...] Se tivesse juízo fazia o romance do Tempo Achado... O cinzeiro ali está para símbolo. E o quarto de hotel do viajante desconsolado...
[Diário, 27 Nov. 1969]
Eu tenho o virus da escrita, mas já pouco a virose. Em viagem, ataca-me.
[Diário, 29 Nov. 1969]
[Diário, 27 Nov. 1969]
Eu tenho o virus da escrita, mas já pouco a virose. Em viagem, ataca-me.
[Diário, 29 Nov. 1969]
[Diário : fragmento : Suíça, 1969 / Vitorino Nemésio]. – 1969 Nov. 27. – [2] p. em [2] f. ; 30 cm.
Autógrafo com emendas. – Fragmento respeitante ao conjunto por nós intitulado [Diário : 1935-1977] [89]. Descrição da ida a Neuchâtel. – Papel timbrado do hotel TOURING AU LAC [...].
BN Esp. E11/cx. 62
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
Preparo a minha viagem real a Portugal. Maria Gabriela Llansol
1 de Julho de 1979
[...]
Preparo a minha viagem real a Portugal, mentalmente, num clima de distanciamento progressivo das tartines. Aceito a crise económica que se prepara, a crise cultural permanente numa espécie de onda que me persegue e me põe, por um dia que começou agora, ao abrigo do circunstancial. Olho para mim mesma, sentada, sobrecarregada com estas preocupações que pouco a pouco se distanciam porque, como sempre, quero escrever.
Maria Gabriela Llansol, Numerosas Linhas. Livro de Horas III. Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 91.
[...]
Preparo a minha viagem real a Portugal, mentalmente, num clima de distanciamento progressivo das tartines. Aceito a crise económica que se prepara, a crise cultural permanente numa espécie de onda que me persegue e me põe, por um dia que começou agora, ao abrigo do circunstancial. Olho para mim mesma, sentada, sobrecarregada com estas preocupações que pouco a pouco se distanciam porque, como sempre, quero escrever.
Maria Gabriela Llansol, Numerosas Linhas. Livro de Horas III. Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 91.
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
É sempre necessário que regresse e se reintegre na comunidade de que tinha partido. Hélder Macedo
Dizer que Os Lusíadas representam uma viagem é óbvio ao ponto de irrelevante. Mas talvez já não seja tão óbvio, nem terá sido suficientemente acentuado, qual a natureza simbólica da viagem que a obra representa. Um poema épico tende a significar, como discurso de segundas intenções, um percurso espiritual, uma viagem iniciática personalizada num herói. E há um esquema básico subjacente a toda a viagem iniciática, o qual por sua vez corresponde a uma magnificação da fórmula cristalizada nos ritos de passagem. Este esquema define três momentos fundamentais: a chamada, a viagem propriamente dita, e o regresso. Depois de ter reconhecido a chamada à aventura (e recusá-la seria iniciar um processo inverso de autodestruição), o herói separa-se do mundo familiar da comunidade a que pertence e parte para o mundo desconhecido. Encontra aí forças fabulosas, umas que o ajudam e outras que se lhe opõem, e que ele pode ou não reconhecer pelo que são, mas cujos efeitos inevitavelmente sente. Para a sua aventura se tornar uma verdadeira iniciação, terá de conseguir expandir a sua identidade pessoal, ao ultrapassar sucessivos obstáculos, até que, no encontro com a Magna Mater - momento indispensável e objecto implícito da sua demanda -, tenha assumido o poder paterno de que depende a renovada continuidade da própria comunidade nele personalizada. Terá então merecido a apoteose que consagra o seu triunfo e a última benesse que simboliza em si a imortalidade colectiva que conquistou. Por esse razão é sempre necessário que regresse e se reintegre na comunidade de que tinha partido, de modo a assegurar, dentro dela, a circulação da regeneradora energia espiritual que a sua aventura libertou. Com efeito, do ponto de vista da comunidade, o regresso do herói constitui o propósito e é a única justificação da sua longa ausência. A viagem de todos os grandes heróis da aventura religiosa - Buda, Cristo, Maomé - corresponde, no essencial, a este esquema, sendo o propósito regenerador da sua demanda evidente nas religiões que trouxeram para as suas respectivas comunidades e na promessa literal de imortalidade que essas religiões contêm.
Hélder Macedo, Camões e a Viagem Iniciática. Lisboa, Morais, 1980, p. 33-34.
Hélder Macedo, Camões e a Viagem Iniciática. Lisboa, Morais, 1980, p. 33-34.
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
A Viagem (3). Sophia de Mello Breyner Andersen
A mulher porém entornou a cabeça para trás e respirou profundamente o cheiro das árvores e da terra. Estendeu a mão no ar e na ponta dos seus dedos poisou uma borboleta.
- Ah! - disse ela -, mesmo perdida, vejo como tudo é perfumado e maravilhoso. Mesmo sem saber se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu não sei onde leva, as árvores são verdes e frescas como se as alimentasse uma certeza profunda. Mesmo aqui a luz poisa leve nos nossos rostos como se nos reconhecesse. Estou cheia de medo e estou alegre.
- O ar e a luz - disse o homem - são bons e belos. Se não estivéssemos perdidos, esta caminhada seria uma viagem maravilhosa. Mas o ar e a luz não nos sabem ensinar a estrada.
Ouviram um pequeno murmúrio cristalino e, dando mais alguns passos, encontraram um rio.
Era um pequeno rio estreito e claro em cujas margens cresciam flores selvagens cor-de-rosa e brancas.
O homem e a mulher deitaram-se de bruços no chão, aproximaram a cara da água e começaram a beber.
- Que água tão limpa! - exclamou a mulher. - Vamos tomar um banho.
Despiram-se e entraram no rio.
Ora rindo, ora em silêncio, nadaram muito tempo. Mergulhavam de olhos abertos, tocando as pequenas pedras polidas do fundo, atravessando um mundo suspenso, transparente e verde. Trutas azuis deslizavam rente aos seus gestos.
Depois estenderam-se à sombra doirada da floresta sobre as relvas das margens. O perfil da mulher recortava-se entre as flores.
- Aqui é quase como na terra para onde vamos disse ela.
É - respondeu o homem -, mas aqui é um lugar de passagem.
E ambos se levantaram e se vestiram.
- Vamos? - perguntou ele.
- Espera um momento - respondeu a mulher.
Quero primeiro colher flores para levar.
Ajoelhou-se no chão e começou a fazer um ramo. E o homem reparou que ela colhia as flores arrancando-as com a raiz e perguntou:
- Por que é que colhes as flores com a raiz?
- Porque as quero plantar na terra para onde vamos. Não sei se lá há flores iguais a estas - respondeu a mulher.
E seguiram.
Agora o dia começava a cair.
- Tenho fome - disse a mulher.
- Temos as amoras - disse o homem.
Pousou o lenço no chão e desatou os nós.
Mas o lenço estava vazio.
Ficaram uns momentos calados. Depois o homem disse:
- As pontas do lenço estavam com certeza mal atadas e as amoras foram-se perdendo uma por uma à medida que íamos andando. Uma por uma. Nem as senti cair.
- Tenho fome - disse a mulher.
- Vamos para a frente - disse o homem.
Viram ao longe entre as árvores um clarão vermelho.
- É o pôr do Sol! - exclamou a mulher. - Já é o pôr do Sol!
- Vamos depressa - disse o homem. - Vem aí noite e ainda não encontrámos o caminho.
E foram quase correndo.
Entre as sombras do crepúsculo ouviram de repente vozes.
- Gente! - exclamou o homem. - Estamos salvos!
- Salvos? - perguntou a mulher.
E de novo se ouviram vozes:
- Estão para aquele lado - disse a mulher, apontando para a esquerda.
- Não, estão para além - disse o homem, apontando para a direita.
O homem agarrou a mão da mulher e correram os dois para a direita.
Mas à medida que iam correndo, as vozes iam-se tornando-se mais distantes.
- Vão mais depressa do que nós! - queixou-se a mulher.
- Mas - respondeu o homem - se conseguirmos ao menos seguir a direcção que levam estaremos salvos.
Assim foram, escutando e correndo, enquanto as sombras do crepúsculo cresciam. Até que as vozes deixaram de se ouvir e a noite caiu espessa e cerrada.
A Lua ainda não tinha nascido. Por todos os lados os rodeavam sombras, ruídos, murmúrios que eles confundiam com vultos, pessoas, vozes. Mas eram apenas trevas, troncos de árvores, galhos secos que estalavam, sussurrar de folhagens.
- Estamos perdidos? - perguntou a mulher.
- Não sabemos - disse o homem.
Seguiram devagar, de mão dada, em silêncio, encostados um ao outro.
Até que de repente viram que tinham chegado ao fim da floresta.
Cheios de esperança, avançaram para o espaço descoberto, mas, saindo do arvoredo, encontraram à sua frente um abismo.
Debruçados espreitaram. Porém, à luz das estrelas nada viam diante de si senão um poço de escuridão, enquanto um frio de mármore lhes tocava a cara.
- É um precipício - disse o homem. - A terra está separada em nossa frente. Não podemos dar nem sequer mais um passo.
- Olha! - respondeu a mulher.
E apontou um estreito carreiro que seguia rente ao abismo. Tinha à esquerda uma alta arriba de pedra e à direita o vazio. .
- Vamos - disse o homem.
- Tenho medo - disse a mulher.
- Estamos juntos - respondeu o homem -, não tenhas medo.
E seguiram pelo carreiro.
O homem ia à frente e a mulher atrás segurava-se com a mão esquerda aos penedos e com a mão direita ao ombro do homem.
Iam em silêncio sob o brilho escuro das estrelas, medindo cada gesto e cada passo.
Mas de repente o corpo do homem oscilou, rolaram pequenas pedras. Ele gritou à mulher:
- Segura-me!
Mas já o ombro dele escorregava das mãos dela. E a mulher gritou:
- Agarra-te à terra!
Mas nenhuma voz lhe respondeu, pois no grande silêncio nítido e sonoro só se ouvia o rolar das pedras.
Ela estava sozinha, vestida de terror, agarrada ao chão em frente do vazio.
- Responde! - gritou debruçada sobre o abismo. Longe, o eco da sua voz repetiu:
- Responde.
Estava estendida na terra, com as mãos enterradas na terra, e começou a gritar como quem está perdido no meio dum sonho. Depois parou de gritar e murmurou:
- Tenho de o ir procurar.
Seguiu de rastos pelo carreiro, tacteando o chão com as mãos à busca duma passagem por onde pudesse descer para procurar o homem. Mas não havia passagem.
Então tentou descer pela própria vertente do abismo. Agarrando-se a ervas e raízes deixou-se escorregar ao longo do precipício. Mas os seus pés não encontravam nenhum apoio onde pudessem firmar-se. Pois a vertente descia a pique, era uma parede lisa de pedra nua.
- Tenho de voltar para o carreiro - pensou a mulher - e tenho de procurar mais adiante uma passagem.
E, agarrada a ervas e raízes, içou-se para o carreiro.
Mas o carreiro tinha desaparecido. Agora havia apenas um estreito rebordo onde ela não cabia, onde nem os seus pés cabiam. Um rebordo sem saída. Aí ficou, de lado, com os pés um em frente do outro comovas figuras dos desenhos do Egipto, com o lado direito do seu corpo colado à pedra da arriba e o lado esquerdo já banhado pela respiração fria e rouca do abismo. Sentia que as erva se as raízes a que se segurava cediam lentamente com o peso do seu corpo. Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo. Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder.
Compreendeu que lhe restavam somente alguns momentos.
Então virou a cara para o outro lado do abismo. Tentou ver através da escuridão. Mas só se via escuridão. Ela, porém, pensou:
- Do outro lado do abismo está com certeza alguém.
E começou a chamar.
Sophia de Mello Breyner Andersen, "A Viagem". In Contos Exemplares. 9ª edição. Lisboa, Portugália Editora, 1970, p. 135-165.
- Ah! - disse ela -, mesmo perdida, vejo como tudo é perfumado e maravilhoso. Mesmo sem saber se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu não sei onde leva, as árvores são verdes e frescas como se as alimentasse uma certeza profunda. Mesmo aqui a luz poisa leve nos nossos rostos como se nos reconhecesse. Estou cheia de medo e estou alegre.
- O ar e a luz - disse o homem - são bons e belos. Se não estivéssemos perdidos, esta caminhada seria uma viagem maravilhosa. Mas o ar e a luz não nos sabem ensinar a estrada.
Ouviram um pequeno murmúrio cristalino e, dando mais alguns passos, encontraram um rio.
Era um pequeno rio estreito e claro em cujas margens cresciam flores selvagens cor-de-rosa e brancas.
O homem e a mulher deitaram-se de bruços no chão, aproximaram a cara da água e começaram a beber.
- Que água tão limpa! - exclamou a mulher. - Vamos tomar um banho.
Despiram-se e entraram no rio.
Ora rindo, ora em silêncio, nadaram muito tempo. Mergulhavam de olhos abertos, tocando as pequenas pedras polidas do fundo, atravessando um mundo suspenso, transparente e verde. Trutas azuis deslizavam rente aos seus gestos.
Depois estenderam-se à sombra doirada da floresta sobre as relvas das margens. O perfil da mulher recortava-se entre as flores.
- Aqui é quase como na terra para onde vamos disse ela.
É - respondeu o homem -, mas aqui é um lugar de passagem.
E ambos se levantaram e se vestiram.
- Vamos? - perguntou ele.
- Espera um momento - respondeu a mulher.
Quero primeiro colher flores para levar.
Ajoelhou-se no chão e começou a fazer um ramo. E o homem reparou que ela colhia as flores arrancando-as com a raiz e perguntou:
- Por que é que colhes as flores com a raiz?
- Porque as quero plantar na terra para onde vamos. Não sei se lá há flores iguais a estas - respondeu a mulher.
E seguiram.
Agora o dia começava a cair.
- Tenho fome - disse a mulher.
- Temos as amoras - disse o homem.
Pousou o lenço no chão e desatou os nós.
Mas o lenço estava vazio.
Ficaram uns momentos calados. Depois o homem disse:
- As pontas do lenço estavam com certeza mal atadas e as amoras foram-se perdendo uma por uma à medida que íamos andando. Uma por uma. Nem as senti cair.
- Tenho fome - disse a mulher.
- Vamos para a frente - disse o homem.
Viram ao longe entre as árvores um clarão vermelho.
- É o pôr do Sol! - exclamou a mulher. - Já é o pôr do Sol!
- Vamos depressa - disse o homem. - Vem aí noite e ainda não encontrámos o caminho.
E foram quase correndo.
Entre as sombras do crepúsculo ouviram de repente vozes.
- Gente! - exclamou o homem. - Estamos salvos!
- Salvos? - perguntou a mulher.
E de novo se ouviram vozes:
- Estão para aquele lado - disse a mulher, apontando para a esquerda.
- Não, estão para além - disse o homem, apontando para a direita.
O homem agarrou a mão da mulher e correram os dois para a direita.
Mas à medida que iam correndo, as vozes iam-se tornando-se mais distantes.
- Vão mais depressa do que nós! - queixou-se a mulher.
- Mas - respondeu o homem - se conseguirmos ao menos seguir a direcção que levam estaremos salvos.
Assim foram, escutando e correndo, enquanto as sombras do crepúsculo cresciam. Até que as vozes deixaram de se ouvir e a noite caiu espessa e cerrada.
A Lua ainda não tinha nascido. Por todos os lados os rodeavam sombras, ruídos, murmúrios que eles confundiam com vultos, pessoas, vozes. Mas eram apenas trevas, troncos de árvores, galhos secos que estalavam, sussurrar de folhagens.
- Estamos perdidos? - perguntou a mulher.
- Não sabemos - disse o homem.
Seguiram devagar, de mão dada, em silêncio, encostados um ao outro.
Até que de repente viram que tinham chegado ao fim da floresta.
Cheios de esperança, avançaram para o espaço descoberto, mas, saindo do arvoredo, encontraram à sua frente um abismo.
Debruçados espreitaram. Porém, à luz das estrelas nada viam diante de si senão um poço de escuridão, enquanto um frio de mármore lhes tocava a cara.
- É um precipício - disse o homem. - A terra está separada em nossa frente. Não podemos dar nem sequer mais um passo.
- Olha! - respondeu a mulher.
E apontou um estreito carreiro que seguia rente ao abismo. Tinha à esquerda uma alta arriba de pedra e à direita o vazio. .
- Vamos - disse o homem.
- Tenho medo - disse a mulher.
- Estamos juntos - respondeu o homem -, não tenhas medo.
E seguiram pelo carreiro.
O homem ia à frente e a mulher atrás segurava-se com a mão esquerda aos penedos e com a mão direita ao ombro do homem.
Iam em silêncio sob o brilho escuro das estrelas, medindo cada gesto e cada passo.
Mas de repente o corpo do homem oscilou, rolaram pequenas pedras. Ele gritou à mulher:
- Segura-me!
Mas já o ombro dele escorregava das mãos dela. E a mulher gritou:
- Agarra-te à terra!
Mas nenhuma voz lhe respondeu, pois no grande silêncio nítido e sonoro só se ouvia o rolar das pedras.
Ela estava sozinha, vestida de terror, agarrada ao chão em frente do vazio.
- Responde! - gritou debruçada sobre o abismo. Longe, o eco da sua voz repetiu:
- Responde.
Estava estendida na terra, com as mãos enterradas na terra, e começou a gritar como quem está perdido no meio dum sonho. Depois parou de gritar e murmurou:
- Tenho de o ir procurar.
Seguiu de rastos pelo carreiro, tacteando o chão com as mãos à busca duma passagem por onde pudesse descer para procurar o homem. Mas não havia passagem.
Então tentou descer pela própria vertente do abismo. Agarrando-se a ervas e raízes deixou-se escorregar ao longo do precipício. Mas os seus pés não encontravam nenhum apoio onde pudessem firmar-se. Pois a vertente descia a pique, era uma parede lisa de pedra nua.
- Tenho de voltar para o carreiro - pensou a mulher - e tenho de procurar mais adiante uma passagem.
E, agarrada a ervas e raízes, içou-se para o carreiro.
Mas o carreiro tinha desaparecido. Agora havia apenas um estreito rebordo onde ela não cabia, onde nem os seus pés cabiam. Um rebordo sem saída. Aí ficou, de lado, com os pés um em frente do outro comovas figuras dos desenhos do Egipto, com o lado direito do seu corpo colado à pedra da arriba e o lado esquerdo já banhado pela respiração fria e rouca do abismo. Sentia que as erva se as raízes a que se segurava cediam lentamente com o peso do seu corpo. Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo. Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder.
Compreendeu que lhe restavam somente alguns momentos.
Então virou a cara para o outro lado do abismo. Tentou ver através da escuridão. Mas só se via escuridão. Ela, porém, pensou:
- Do outro lado do abismo está com certeza alguém.
E começou a chamar.
Sophia de Mello Breyner Andersen, "A Viagem". In Contos Exemplares. 9ª edição. Lisboa, Portugália Editora, 1970, p. 135-165.
terça-feira, 5 de novembro de 2013
A Viagem (2). Sophia de Mello Breyner Andersen
- E agora? - perguntou a mulher.
- Vamos voltar outra vez para a estrada e continuar- disse o homem.
Saíram e atravessaram o pinhal. Mas a estrada tinha desaparecido.
- Tenho medo - disse a mulher. Agora tenho sempre cada vez mais medo. Tudo desaparece.
- Estamos juntos - disse o homem.
- Mas o que é que vamos fazer sem estrada?
- Vamos voltar para a casa - disse o homem - e lá esperaremos até que os donos cheguem e nos ensinem o caminho e nos ajudem.
E de novo atravessaram os pinhais. Mas no lugar onde tinha sido a casa agora havia só uma pequena clareira e pedras espalhadas.
Ambos ficaram mudos. Depois a mulher deixou-se cair no chão, e, estendida entre as pedras, chorou com a cara encostada à terra.
- Vamos - disse o homem.
- Para onde? - perguntou ela.
- Havemos de encontrar qualquer caminho.
- Para quê? Perdemos tudo quanto encontramos.
O homem ajoelhou ao lado da mulher e limpou na cara dela as lágrimas e a terra.
Depois levantou-a e ambos seguiram para a frente.
Atravessaram o pinhal e encontraram um campo.
Mas não se via nenhum caminho.
No meio do campo havia uma macieira carregada de maçãs vermelhas, polidas e redondas.
- São lindas! - disse a mulher.
Colheu uma para si e outra para o homem. Sentaram-se os dois nas ervas finas sob a sombra sossegada da árvore e a carne firme, fresca e limpa da maçã estalou entre os seus dentes. .
Era já o princípio da tarde, e no dia cheio de luz, encostados ao duro tronco escuro e rugoso, descansaram em silêncio, ouvindo só o levíssimo rumor da terra sob o sol.
Depois o homem disse: - Vamos.
Levantaram-se e seguiram.
Já no extremo daquele campo, junto à sebe que o separava de outro campo, a mulher exclamou:
- Devíamos ter colhido algumas maçãs para trazer. Não sabemos onde estamos, nem quanto teremos de andar até encontrarmos outra vez alguma coisa de comer.
- É verdade - respondeu o homem.
E, voltando para trás, caminharam para a macieira que no meio do campo se desenhava redonda.
Porém, quando chegaram ao pé da árvore, viram que nos ramos, entre as folhas, todos os frutos tinham desaparecido.
- Alguém passou por aqui, passou sem o vermos e colheu as maçãs todas - disse o homem.
- Ah! - exclamou a mulher - tão depressa! Tão depressa desaparece tudo! Encontramos as coisas. Estão ali. Mas quando voltamos já desapareceram. E nem sabemos quem as desfez e as levou.
Baixando a cabeça retomaram em silêncio a caminhada. Atravessaram sucessivos campos mas não encontraram ninguém que os guiasse e lhes respondesse. Junto de uma sebe viram no chão um tarro de cortiça e uma bilha de barro.
A mulher destapou o tarro e espreitou dentro da bilha. - Estão vazios - disse ela.
- Onde estará o dono?
Olharam em redor mas não se avistava ninguém. Chamaram, ninguém respondeu.
- Talvez esteja do outro lado da sebe - disse a mulher.
Atravessaram a sebe mas do outro lado não viram nenhum homem. Viram só um pequeno regato que corria quase escondido entre trevos e agriões. Ajoelhados lavaram as mãos e a cara. Na concha das suas mãos a mulher bebeu e deu de beber ao homem.
- Se tivéssemos trazido a bilha - disse ela - poderíamos levar água connosco.
- E também no tarro poderíamos levar frutos. Vamos buscar a bilha e o tarro.
Atravessaram a sebe.
Mas a bilha estava partida e o tarro estava todo roído.
- Quem a terá partido?
- Talvez a brisa ou algum animal passando.
- Quem o terá roído?
- Os ratos, as serpentes, as toupeiras, os cães selvagens.
- Quebrados e roídos já não servem.
- Vamos embora depressa - disse a mulher.
Era já o meio da tarde quando viram uma grande floresta, de cuja orla partia um carreiro.
- Vamos pelo carreiro. Indo por aqui temos que encontrar gente. Os carreiros são feitos para passarem pessoas. Os carreiros são feitos para levar até aos lugares onde há gente.
E entraram na floresta.
Carvalhos, castanheiros, tílias e bétulas, cedros e pinheiros cruzavam os seus ramos. Grandes raios de luz oblíqua passavam entre os troncos. O ar era verde e doirado.
- Que bonita floresta! - exclamou a mulher.
- Que bonita floresta! - exclamou o homem.
Aqui e além estalava um ramo seco. Às vezes uma pinha caía do alto. Ouvia-se o murmúrio da brisa nas folhas altas. Ouvia-se o canto dos pássaros escondidos. Ouvia-se o silêncio dos musgos e da terra.
E embalados na beleza, na música e no perfume da floresta, o homem e a mulher seguiram de mão dada pelo carreIro.
Até que ouviram ao longe um som de machadadas.
Foram andando e foram-se aproximando do som.
- Vem dali! - disse a mulher.
E saindo do carreiro meteram à direita.
Encontraram um lenhador a rachar lenha.
- Estamos perdidos - disse o homem -, andamos à procura do caminho para a estrada.
- Ide sempre a direito pelo carreira - disse o lenhador - e encontrareis a estrada.
- Obrigado - disse o homem.
E voltaram os dois para trás.
Mas não encontraram o carreiro.
- Como é que o perdemos? - disse a mulher.
- Vamos pedir ao lenhador que nos guie - disse o homem.
Voltaram ao lugar onde tinham falado ao lenhador. Mas só encontraram lenha rachada. O lenhador tinha desaparecido.
- Foi-se embora - disse a mulher.
- Não deve estar longe. Vamos chamar.
Repetidas vezes chamaram. Mas nenhuma voz, nenhum rumor humano lhes respondeu. Só ouviam cantos de pássaros, sons de ramos secos estalando, murmúrios de brisa nas folhas.
- Vamos escutar calados - disse o homem. - Ele não pode ainda estar longe, talvez se possa ainda ouvir o barulho dos seus passos.
E escutaram calados.
Mas só se ouviam os barulhos da floresta.
- Sei uma maneira melhor de escutar - disse a mulher.
E pôs-se de joelhos e encostou, primeiro um, depois outro, os ouvidos à terra.
Mas só ouviu o silêncio palpitante da terra.
- Só oiço a terra - disse ela.
- Vamos para a frente - respondeu o homem.
E seguiram.
Encontraram uma sebe carregada de amoras.
- São maravilhosas! - disse a mulher.
O homem colheu um punhado de amoras e estendeu-as a palma da mão à mulher. Ela provou e tomou a dizer:
- São maravilhosas!
Rindo, começaram os dois a colher amoras e, tendo reunido uma grande quantidade, sentaram-se no chão a comer. A luz oblíqua da tarde passava entre os troncos escuros e acendia o verde das ervas. Quando acabaram de comer, o homem disse:
- Temos de ir. Temos de encontrar a estrada e a terra para onde vamos.
- Como havemos de encontrar essa terra, se nem sabemos onde estamos?
- Temos de procurar - respondeu o homem.
Levantaram-se para partir.
- Espera - disse a mulher. - Quero levar amoras.
E, desatando o nó do lenço que trazia ao pescoço, abriu e estendeu o lenço no chão. Começaram os dois a colher amoras e reuniram uma grande pirâmide dentro do lenço. Depois ataram duas a duas as quatro pontas.
- Vamos - disse o homem passando o dedo entre os dois nós.
E retomaram o seu caminho.
Iam de mãos dadas através do ar doirado e verde. Esta floresta é linda! - disse a mulher.
- É - disse o homem -, mas não encontrámos ainda a estrada.
- Vamos voltar outra vez para a estrada e continuar- disse o homem.
Saíram e atravessaram o pinhal. Mas a estrada tinha desaparecido.
- Tenho medo - disse a mulher. Agora tenho sempre cada vez mais medo. Tudo desaparece.
- Estamos juntos - disse o homem.
- Mas o que é que vamos fazer sem estrada?
- Vamos voltar para a casa - disse o homem - e lá esperaremos até que os donos cheguem e nos ensinem o caminho e nos ajudem.
E de novo atravessaram os pinhais. Mas no lugar onde tinha sido a casa agora havia só uma pequena clareira e pedras espalhadas.
Ambos ficaram mudos. Depois a mulher deixou-se cair no chão, e, estendida entre as pedras, chorou com a cara encostada à terra.
- Vamos - disse o homem.
- Para onde? - perguntou ela.
- Havemos de encontrar qualquer caminho.
- Para quê? Perdemos tudo quanto encontramos.
O homem ajoelhou ao lado da mulher e limpou na cara dela as lágrimas e a terra.
Depois levantou-a e ambos seguiram para a frente.
Atravessaram o pinhal e encontraram um campo.
Mas não se via nenhum caminho.
No meio do campo havia uma macieira carregada de maçãs vermelhas, polidas e redondas.
- São lindas! - disse a mulher.
Colheu uma para si e outra para o homem. Sentaram-se os dois nas ervas finas sob a sombra sossegada da árvore e a carne firme, fresca e limpa da maçã estalou entre os seus dentes. .
Era já o princípio da tarde, e no dia cheio de luz, encostados ao duro tronco escuro e rugoso, descansaram em silêncio, ouvindo só o levíssimo rumor da terra sob o sol.
Depois o homem disse: - Vamos.
Levantaram-se e seguiram.
Já no extremo daquele campo, junto à sebe que o separava de outro campo, a mulher exclamou:
- Devíamos ter colhido algumas maçãs para trazer. Não sabemos onde estamos, nem quanto teremos de andar até encontrarmos outra vez alguma coisa de comer.
- É verdade - respondeu o homem.
E, voltando para trás, caminharam para a macieira que no meio do campo se desenhava redonda.
Porém, quando chegaram ao pé da árvore, viram que nos ramos, entre as folhas, todos os frutos tinham desaparecido.
- Alguém passou por aqui, passou sem o vermos e colheu as maçãs todas - disse o homem.
- Ah! - exclamou a mulher - tão depressa! Tão depressa desaparece tudo! Encontramos as coisas. Estão ali. Mas quando voltamos já desapareceram. E nem sabemos quem as desfez e as levou.
Baixando a cabeça retomaram em silêncio a caminhada. Atravessaram sucessivos campos mas não encontraram ninguém que os guiasse e lhes respondesse. Junto de uma sebe viram no chão um tarro de cortiça e uma bilha de barro.
A mulher destapou o tarro e espreitou dentro da bilha. - Estão vazios - disse ela.
- Onde estará o dono?
Olharam em redor mas não se avistava ninguém. Chamaram, ninguém respondeu.
- Talvez esteja do outro lado da sebe - disse a mulher.
Atravessaram a sebe mas do outro lado não viram nenhum homem. Viram só um pequeno regato que corria quase escondido entre trevos e agriões. Ajoelhados lavaram as mãos e a cara. Na concha das suas mãos a mulher bebeu e deu de beber ao homem.
- Se tivéssemos trazido a bilha - disse ela - poderíamos levar água connosco.
- E também no tarro poderíamos levar frutos. Vamos buscar a bilha e o tarro.
Atravessaram a sebe.
Mas a bilha estava partida e o tarro estava todo roído.
- Quem a terá partido?
- Talvez a brisa ou algum animal passando.
- Quem o terá roído?
- Os ratos, as serpentes, as toupeiras, os cães selvagens.
- Quebrados e roídos já não servem.
- Vamos embora depressa - disse a mulher.
Era já o meio da tarde quando viram uma grande floresta, de cuja orla partia um carreiro.
- Vamos pelo carreiro. Indo por aqui temos que encontrar gente. Os carreiros são feitos para passarem pessoas. Os carreiros são feitos para levar até aos lugares onde há gente.
E entraram na floresta.
Carvalhos, castanheiros, tílias e bétulas, cedros e pinheiros cruzavam os seus ramos. Grandes raios de luz oblíqua passavam entre os troncos. O ar era verde e doirado.
- Que bonita floresta! - exclamou a mulher.
- Que bonita floresta! - exclamou o homem.
Aqui e além estalava um ramo seco. Às vezes uma pinha caía do alto. Ouvia-se o murmúrio da brisa nas folhas altas. Ouvia-se o canto dos pássaros escondidos. Ouvia-se o silêncio dos musgos e da terra.
E embalados na beleza, na música e no perfume da floresta, o homem e a mulher seguiram de mão dada pelo carreIro.
Até que ouviram ao longe um som de machadadas.
Foram andando e foram-se aproximando do som.
- Vem dali! - disse a mulher.
E saindo do carreiro meteram à direita.
Encontraram um lenhador a rachar lenha.
- Estamos perdidos - disse o homem -, andamos à procura do caminho para a estrada.
- Ide sempre a direito pelo carreira - disse o lenhador - e encontrareis a estrada.
- Obrigado - disse o homem.
E voltaram os dois para trás.
Mas não encontraram o carreiro.
- Como é que o perdemos? - disse a mulher.
- Vamos pedir ao lenhador que nos guie - disse o homem.
Voltaram ao lugar onde tinham falado ao lenhador. Mas só encontraram lenha rachada. O lenhador tinha desaparecido.
- Foi-se embora - disse a mulher.
- Não deve estar longe. Vamos chamar.
Repetidas vezes chamaram. Mas nenhuma voz, nenhum rumor humano lhes respondeu. Só ouviam cantos de pássaros, sons de ramos secos estalando, murmúrios de brisa nas folhas.
- Vamos escutar calados - disse o homem. - Ele não pode ainda estar longe, talvez se possa ainda ouvir o barulho dos seus passos.
E escutaram calados.
Mas só se ouviam os barulhos da floresta.
- Sei uma maneira melhor de escutar - disse a mulher.
E pôs-se de joelhos e encostou, primeiro um, depois outro, os ouvidos à terra.
Mas só ouviu o silêncio palpitante da terra.
- Só oiço a terra - disse ela.
- Vamos para a frente - respondeu o homem.
E seguiram.
Encontraram uma sebe carregada de amoras.
- São maravilhosas! - disse a mulher.
O homem colheu um punhado de amoras e estendeu-as a palma da mão à mulher. Ela provou e tomou a dizer:
- São maravilhosas!
Rindo, começaram os dois a colher amoras e, tendo reunido uma grande quantidade, sentaram-se no chão a comer. A luz oblíqua da tarde passava entre os troncos escuros e acendia o verde das ervas. Quando acabaram de comer, o homem disse:
- Temos de ir. Temos de encontrar a estrada e a terra para onde vamos.
- Como havemos de encontrar essa terra, se nem sabemos onde estamos?
- Temos de procurar - respondeu o homem.
Levantaram-se para partir.
- Espera - disse a mulher. - Quero levar amoras.
E, desatando o nó do lenço que trazia ao pescoço, abriu e estendeu o lenço no chão. Começaram os dois a colher amoras e reuniram uma grande pirâmide dentro do lenço. Depois ataram duas a duas as quatro pontas.
- Vamos - disse o homem passando o dedo entre os dois nós.
E retomaram o seu caminho.
Iam de mãos dadas através do ar doirado e verde. Esta floresta é linda! - disse a mulher.
- É - disse o homem -, mas não encontrámos ainda a estrada.
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
A Viagem (1). Sophia de Mello Breyner Andersen
A estrada ia entre campos e ao longe, às vezes, viam-se serras. Era o princípio de Setembro e a manhã estendia-se através da terra, vasta de luz e plenitude. Todas as coisas pareciam acesas.
E, dentro do carro que os levava, a mulher disse ao homem:
- É o meio da vida.
Através dos vidros, as coisas fugiam para trás. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as árvores e os rios fugiam e pareciam devorados sucessivamente. Era como se a própria estrada os engolisse.
Surgiu uma encruzilhada. Aí viraram à direita. E seguiram.
- Devemos estar a chegar - disse o homem.
E continuaram.
Árvores, campos, casas, pontes, serras, rios, fugiam para trás, escorregavam para longe.
A mulher olhou inquieta em sua volta e disse:
- Devemos estar enganados. Devemos ter vindo por um caminho errado.
- Deve ter sido na encruzilhada - disse o homem, parando o carro. - Virámos para o Poente, devíamos ter virado para o Nascente. Agora temos de voltar até à encruzilhada.
A mulher inclinou a cabeça para trás e viu quanto o Sol já subira no céu e como as coisas estavam a perder devagar a sua sombra. Viu também que o orvalho já secara nas ervas da beira da estrada.
- Vamos - disse ela.
O homem virou o volante, o carro deu meia volta na estrada e voltaram para trás.
A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, encostou a cabeça nas costas do banco e pôs-se a imaginar o lugar para onde iam. Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso.
Ela pensou que a casa devia ser silenciosa, cheia de paz e branca, rodeada de roseiras; e pensou que o jardim devia ser grande e verde, percorrido de murmúrios.E alguém lhe tinha dito que no jardim passava um rio claro, brilhante, transparente. No fundo do rio via-se a areia e viam-se as pequenas pedras limpas e polidas. Nas margens crescia erva fina, misturada com trevo. E árvores de copa redonda, carregadas de frutos, cresciam nesse prado.
- Logo que chegarmos - disse ela -, vamos tomar banho no rio.
- Tomamos banho no rio e depois deitamo-nos a descansar na relva - disse o homem, sempre com os olhos fitos na estrada.
E ela imaginou com sede a água clara e fria em roda dos seus ombros, e imaginou a relva onde se deitariam os dois, lado a lado, à sombra das folhagens e dos frutos. Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.
Através dos vidros, campos, pinhais, montes e rios fugiam para trás.
- Devemos estar a chegar à encruzilhada - disse o homem.
E seguiram.
Rios, campos, pinhais e pontes. E meia hora passou.
- Já devíamos ter chegado à encruzilhada - disse o homem.
- Com certeza nos enganámos no caminho - disse a mulher.
- Não nos podemos ter enganado - disse o homem -, não havia outro caminho.
E seguiram.
- A encruzilhada já devia ter aparecido - disse o homem.
- O que é que vamos fazer? - perguntou a mulher.
- Seguir em frente.
- Mas estamos a perder-nos.
- Não vejo outro caminho - disse o homem.
E seguiram.
Encontraram rios, campos, montes; atravessaram rios, campos, montes; perderam rios, campos, montes. As paisagens fugiam, puxadas para trás.
- Estamos a perder-nos cada vez mais - disse a mulher.
- Mas onde há outro caminho? - perguntou o homem.
E parou o carro.
À esquerda havia uma grande planície vazia; à direita uma colina coberta de árvores.
- Vamos subir ao alto da colina - disse o homem. - De lá devem avistar-se todos os caminhos em redor.
Subiram ao alto da colina e não avistaram estradas; mas avistaram um cavador a cavar numa horta.
Caminharam para ele e perguntaram-lhe se sabia o caminho para a encruzilhada.
- Sei - disse o cavador -, é para além.
- Podes guiar-nos até lá?
- Posso, mas primeiro tenho de acabar este rego para a água passar. Demoro pouco.
- Nós esperamos - disse o homem.
- Tenho sede disse a mulher.
- Além, atrás dos penedos - disse o cavador, apontando -, há uma fonte. Ide lá beber enquanto eu acabo o rego.
Caminharam na direcção que o cavador apontara e atrás dos penedos encontraram a fonte.
A fonte caía do alto e espetava-se na terra, direita, limpa e brilhante como uma espada.
Ali beberam e ficaram com a cara e os cabelos todos salpicados de gotas, riram de alegria na frescura da água, esqueceram o cansaço, o caminho perdido, a viagem. A mulher sentou-se numa pedra coberta de musgo, o homem sentou-se ao seu lado e os dois permaneceram alguns momentos de mãos dadas, imóveis e calados.
Depois, um pássaro poisou perto da fonte e o homem disse:
- Temos de ir.
Levantaram-se e tomaram o caminho da horta, à procura do cavador.
Mas quando chegaram à horta o cavador não estava lá. Viram a água a correr nos regos; viram a salsa e a hortelã crescendo lado a lado; mas não viram o cavador. .
- Não quis esperar - disse o homem.
- Porque é que nos mentiu?
- Talvez não quisesse mentir. Talvez não pudesse esperar. Ou talvez se esquecesse de nós.
- E agora? - perguntou a mulher.
- Vamos voltar para o carro e vamos seguir na direcção que ele há pouco apontou. Subiram e desceram a colina em direcção ao carro, mas quando chegaram à estrada o carro tinha desaparecido.
- Devemos estar enganados; devemos ter vindo noutra direcção.
- Ou alguém nos roubou o carro.
- Onde estará o cavador?
- Talvez tenha ido à fonte à nossa procura.
- Temos de encontrar alguém - disse a mulher. - Vamos outra vez à fonte; com certeza o cavador foi lá ter.
E puseram-se de novo a caminho.
Subiram e desceram a colina; atravessaram a horta. Cheirava a hortelã e a terra regada. Mas do outro lado dos penedos não encontraram a fonte.
- Não era aqui - disse o homem.
- Era aqui- disse a mulher. - Era aqui. Tenho medo. Vamos voltar depressa para a estrada.
E foram pela estrada à procura do carro.
- Que vamos fazer? - perguntou a mulher.
- Alguém há-de passar - respondeu o homem.
Seguiram pela estrada. O Sol continuava a subir no céu.
- Estou cansada - disse a mulher.
- Quando chegarmos à terra para onde vamos, descansarás, estendida na relva, à sombra das árvores e dos frutos.
- Temos de encontrar depressa o caminho - disse a mulher.
Ao longe, entre pinhais, surgiu uma casa.
- Vamos até lá - disse o homem. - Talvez lá esteja alguém que nos saiba ensinar o caminho.
Havia uma ligeira brisa e os pinheiros ondulavam.
Bateram à porta da casa. Ninguém respondeu.
Escutaram e pareceu-lhes ouvir vozes. Tornaram a bater. Ninguém respondeu. Esperaram. Bateram de novo, com força, espaçadamente, nitidamente, devagar. As pancadas ressoaram. Ninguém respondeu.
Então o homem avançou o ombro direito e arrombou a porta. Mas a casa estava vazia.
Era uma pequena casa de camponeses. Uma casa nua, onde só estavam escritos os gestos da vida. Havia uma cozinha e dois quartos. Num rebordo da parede de cal estava
colocada uma imagem; em frente da imagem ardia uma lamparina de azeite; ao lado, alguém poisara um ramo de flores bentas na Páscoa.
Não havia ninguém na cozinha. Não havia ninguém nos quartos. Não havia ninguém nas traseiras, onde as roupas secavam, dependuradas no arame, gesticulando na brisa.
No forno a cinza ainda estava quente e em cima de uma mesa havia vinho e pão.
- Tenho fome - disse a mulher.
Sentaram-se e comeram.
E, dentro do carro que os levava, a mulher disse ao homem:
- É o meio da vida.
Através dos vidros, as coisas fugiam para trás. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as árvores e os rios fugiam e pareciam devorados sucessivamente. Era como se a própria estrada os engolisse.
Surgiu uma encruzilhada. Aí viraram à direita. E seguiram.
- Devemos estar a chegar - disse o homem.
E continuaram.
Árvores, campos, casas, pontes, serras, rios, fugiam para trás, escorregavam para longe.
A mulher olhou inquieta em sua volta e disse:
- Devemos estar enganados. Devemos ter vindo por um caminho errado.
- Deve ter sido na encruzilhada - disse o homem, parando o carro. - Virámos para o Poente, devíamos ter virado para o Nascente. Agora temos de voltar até à encruzilhada.
A mulher inclinou a cabeça para trás e viu quanto o Sol já subira no céu e como as coisas estavam a perder devagar a sua sombra. Viu também que o orvalho já secara nas ervas da beira da estrada.
- Vamos - disse ela.
O homem virou o volante, o carro deu meia volta na estrada e voltaram para trás.
A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, encostou a cabeça nas costas do banco e pôs-se a imaginar o lugar para onde iam. Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso.
Ela pensou que a casa devia ser silenciosa, cheia de paz e branca, rodeada de roseiras; e pensou que o jardim devia ser grande e verde, percorrido de murmúrios.E alguém lhe tinha dito que no jardim passava um rio claro, brilhante, transparente. No fundo do rio via-se a areia e viam-se as pequenas pedras limpas e polidas. Nas margens crescia erva fina, misturada com trevo. E árvores de copa redonda, carregadas de frutos, cresciam nesse prado.
- Logo que chegarmos - disse ela -, vamos tomar banho no rio.
- Tomamos banho no rio e depois deitamo-nos a descansar na relva - disse o homem, sempre com os olhos fitos na estrada.
E ela imaginou com sede a água clara e fria em roda dos seus ombros, e imaginou a relva onde se deitariam os dois, lado a lado, à sombra das folhagens e dos frutos. Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.
Através dos vidros, campos, pinhais, montes e rios fugiam para trás.
- Devemos estar a chegar à encruzilhada - disse o homem.
E seguiram.
Rios, campos, pinhais e pontes. E meia hora passou.
- Já devíamos ter chegado à encruzilhada - disse o homem.
- Com certeza nos enganámos no caminho - disse a mulher.
- Não nos podemos ter enganado - disse o homem -, não havia outro caminho.
E seguiram.
- A encruzilhada já devia ter aparecido - disse o homem.
- O que é que vamos fazer? - perguntou a mulher.
- Seguir em frente.
- Mas estamos a perder-nos.
- Não vejo outro caminho - disse o homem.
E seguiram.
Encontraram rios, campos, montes; atravessaram rios, campos, montes; perderam rios, campos, montes. As paisagens fugiam, puxadas para trás.
- Estamos a perder-nos cada vez mais - disse a mulher.
- Mas onde há outro caminho? - perguntou o homem.
E parou o carro.
À esquerda havia uma grande planície vazia; à direita uma colina coberta de árvores.
- Vamos subir ao alto da colina - disse o homem. - De lá devem avistar-se todos os caminhos em redor.
Subiram ao alto da colina e não avistaram estradas; mas avistaram um cavador a cavar numa horta.
Caminharam para ele e perguntaram-lhe se sabia o caminho para a encruzilhada.
- Sei - disse o cavador -, é para além.
- Podes guiar-nos até lá?
- Posso, mas primeiro tenho de acabar este rego para a água passar. Demoro pouco.
- Nós esperamos - disse o homem.
- Tenho sede disse a mulher.
- Além, atrás dos penedos - disse o cavador, apontando -, há uma fonte. Ide lá beber enquanto eu acabo o rego.
Caminharam na direcção que o cavador apontara e atrás dos penedos encontraram a fonte.
A fonte caía do alto e espetava-se na terra, direita, limpa e brilhante como uma espada.
Ali beberam e ficaram com a cara e os cabelos todos salpicados de gotas, riram de alegria na frescura da água, esqueceram o cansaço, o caminho perdido, a viagem. A mulher sentou-se numa pedra coberta de musgo, o homem sentou-se ao seu lado e os dois permaneceram alguns momentos de mãos dadas, imóveis e calados.
Depois, um pássaro poisou perto da fonte e o homem disse:
- Temos de ir.
Levantaram-se e tomaram o caminho da horta, à procura do cavador.
Mas quando chegaram à horta o cavador não estava lá. Viram a água a correr nos regos; viram a salsa e a hortelã crescendo lado a lado; mas não viram o cavador. .
- Não quis esperar - disse o homem.
- Porque é que nos mentiu?
- Talvez não quisesse mentir. Talvez não pudesse esperar. Ou talvez se esquecesse de nós.
- E agora? - perguntou a mulher.
- Vamos voltar para o carro e vamos seguir na direcção que ele há pouco apontou. Subiram e desceram a colina em direcção ao carro, mas quando chegaram à estrada o carro tinha desaparecido.
- Devemos estar enganados; devemos ter vindo noutra direcção.
- Ou alguém nos roubou o carro.
- Onde estará o cavador?
- Talvez tenha ido à fonte à nossa procura.
- Temos de encontrar alguém - disse a mulher. - Vamos outra vez à fonte; com certeza o cavador foi lá ter.
E puseram-se de novo a caminho.
Subiram e desceram a colina; atravessaram a horta. Cheirava a hortelã e a terra regada. Mas do outro lado dos penedos não encontraram a fonte.
- Não era aqui - disse o homem.
- Era aqui- disse a mulher. - Era aqui. Tenho medo. Vamos voltar depressa para a estrada.
E foram pela estrada à procura do carro.
- Que vamos fazer? - perguntou a mulher.
- Alguém há-de passar - respondeu o homem.
Seguiram pela estrada. O Sol continuava a subir no céu.
- Estou cansada - disse a mulher.
- Quando chegarmos à terra para onde vamos, descansarás, estendida na relva, à sombra das árvores e dos frutos.
- Temos de encontrar depressa o caminho - disse a mulher.
Ao longe, entre pinhais, surgiu uma casa.
- Vamos até lá - disse o homem. - Talvez lá esteja alguém que nos saiba ensinar o caminho.
Havia uma ligeira brisa e os pinheiros ondulavam.
Bateram à porta da casa. Ninguém respondeu.
Escutaram e pareceu-lhes ouvir vozes. Tornaram a bater. Ninguém respondeu. Esperaram. Bateram de novo, com força, espaçadamente, nitidamente, devagar. As pancadas ressoaram. Ninguém respondeu.
Então o homem avançou o ombro direito e arrombou a porta. Mas a casa estava vazia.
Era uma pequena casa de camponeses. Uma casa nua, onde só estavam escritos os gestos da vida. Havia uma cozinha e dois quartos. Num rebordo da parede de cal estava
colocada uma imagem; em frente da imagem ardia uma lamparina de azeite; ao lado, alguém poisara um ramo de flores bentas na Páscoa.
Não havia ninguém na cozinha. Não havia ninguém nos quartos. Não havia ninguém nas traseiras, onde as roupas secavam, dependuradas no arame, gesticulando na brisa.
No forno a cinza ainda estava quente e em cima de uma mesa havia vinho e pão.
- Tenho fome - disse a mulher.
Sentaram-se e comeram.
domingo, 3 de novembro de 2013
sábado, 2 de novembro de 2013
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
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