Lembrei-me então da tal noite: (barcos varados na areia, bojos vermelhos adornados, como grandes barrigas atestadas. O chape-chape da água a cocegar o paredão, um paquete iluminado no meio do rio, a ponte de luzes, aquela suspensão de estrelas, e o nosso caminhar e o nosso sonho ao longo do cais...)
Um factor, com uma bela corneta de ouro a imitar lata, e uma lanterna preciosa, olhou para mim, e assim a modos de quem olha uma mercadoria que é imprescindível despachar em grande velocidade para casa do diabo.
- O comboio vem com um pequeno atraso de quatro horas.
Não se agradecem notícias destas. Abri uma das malas, tirei o colchão pneumático de praia, soprei-o e deitei-me tranquilamente. Depois acendi um desses cigarros que são exclusivamente filtro e fiquei de papo para o ar, pensando que entre a terra e o céu se passam coisas maravilhosas (a recordar que no topo do outro cais se mantinha uma luz acesa. Uma luz amarela numa casa que não se via. Recortada, a silhueta de um homem curvado, a comer. A seguir, o homem levantou-se e foi pôr o prato não sei aonde. Nesse instante destacou-se uma figura de mulher. Um quadro amarelo de Gaughin. Tudo tão simples e tão grandioso no meio de uma escuridão feita de noite e de rio).
Santos Fernando, "Fantasia em colchão pneumático", in Os Grilos Não Cantam ao Domingo. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1969, p. 177-178.
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