depois que de Tróia destruiu a cidadela sagrada.
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muito no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar.
Não, pereceram devido à sua loucura,
insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hiperíon,
o Sol - e assim lhe negou o deus o dia do retorno.
Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus.
Nesse tempo, já todos quantos fugiram à morte escarpada
se encontravam em casa, salvos da guerra e do mar.
Só àquele, que tanto desejava regressar à mulher,
Calipso, ninfa divina entre as deusas, retinha
em côncavas grutas, ansiosa que se tornasse seu marido.
Mas quando chegou o ano (depois de passados muitos outros)
no qual decretaram os deuses que ele a Ítaca regressasse,
nem aí, mesmo entre o seu povo, afastou as provações.
E todos os deuses se compadeceram dele,
todos menos Posídon: e até que sua terra alcançasse,
o deus não domou a ira contra o divino Ulisses.
Homero, Odisseia. Canto I. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa, Livros Cotovia, 2003, p. 25.
"O mundo de Ulisses já não é o mundo heróico. Quando regressa a casa, não quer contestar o céu: é devoto, modesto, receia os deuses, embora esteja longe deles. Os enganos, de que tanto se orgulha, não excluem a piedade e a veneração por eles, ao contrário dos enganos de Egisto. Renuncia a qualquer esperança de imortalidade: não quer o leito imortal de Calipso, quer o leito mortal da esposa. Creio que o antigo ouvinte da ODISSEIA se sentia muito próximo de Ulisses, enquanto Aquiles lhe parecia irremediavelmente longe. Ulisses era um homem como ele. Tinha uma casa, tinha bens, viajara muito, como ele viajava e traficava, em meados do século VII. Os deuses já estavam longe, já não havia guerras heróicas, os mundos utópicos tinham sido destruídos. Só lhes restava guardar o seu jardim: a casa, os rebanhos, a despensa cheia de ouro e de vinho dulcíssimo."
ResponderEliminarPietro Citati, ULISSES E A ODISSEIA. A MENTE COLORIDA, Lisboa, Livros Cotovia, 2005, p.92.